quarta-feira, 20 de julho de 2022


 

"The great white god": "Moby Dick" de Christophé Chabouté.

 Revirando minha caixa de e-mails, achei um texto meu de uns anos atrás que fiz para uma entrevista de emprego. Foi pedido uma resenha crítica de um livro. Como eu não sou exatamente famoso por meu amor pela literatura, decidi dar leve trapaceada e falar sobre a adaptação quadrinhística de um clássico: Moby Dick. 

Em retrospecto, foi uma escolha infeliz. Não pela decisão de falar de uma hq, mas pela obra escolhida, já que o local da entrevista de emprego era uma universidade católica e obra de Herman Mélville tem certo caráter...hã.... "sacrílego". Não ajudou também, provavelmente, o fato de eu usar termos como "mitologia cristã" no texto em questão, além do tom soturno que a resenha tem, não só pela obra na qual eu foco mas pela natureza... hã... "não exatamente festiva" pela qual eu sou conhecido, mas que seja. Não queria a vaga mesmo (imagino que os senhores já tenham antecipado esse detalhe, mas obviamente eu não consegui o trabalho). 

Pelo menos rendeu um texto legal e um post aqui no blog. 


“Moby Dick” de Christophé Chabouté



Desde o início da história humana, histórias tem tido o objetivo de nos educar, de nos orientar diante de situações desconhecidas, de trazerem intrinsecamente uma forte carga de significados e mensagens. Desde o conto de Lúcifer e sua queda, passando pelo fogo de Prometeus, a queda da Torre de Babel e alguns episódios da mitologia greco-romana, como os protagonizados por Ícaro e Aracne, o imaginário coletivo tem alertado a sociedade dos riscos da hubris, da arrogância humana e dos perigos de nos tomarmos como o centro simbólico do universo. 

Nesse aspecto, “Moby Dick”, obra de 1851 de autoria do escritor inglês Herman Melville, se insere como mais um olhar sobre os efeitos nocivos das ambições humanas e o custo pessoal que tal busca pode cobrar de quem se aventurar em demasia nelas. Por sua vez, a adaptação para as HQs de 2014 criada por Christophe Chabouté ressignifica a obra acentuando o elemento de horror que já se fazia presente no livro que lhe serviu de base. Em suas 255 páginas, o quadrinista francês transforma a narrativa existencialista num conto de terror expressionista, bebendo de forma intensa dos elementos do expressionismo alemão, movimento cinematográfico surgido na década de 1920 e que tinha como característica a distorção da imagem, através de maquiagem, efeitos de câmera e cenários, de forma a acentuar a maneira como os realizadores viam o mundo. O artista, responsável tanto pelo roteiro adaptado quanto pela arte, utiliza o recurso do desenho em preto e branco, o traço detalhista e a escolha por expressões exageradas, como forma de acentuar o horror da jornada empreendida pela tripulação do navio baleeiro Pequod, barco de caça de baleias, animais cuja gordura era utilizada como combustível, lubrificante para máquinas, entre outros usos. A partir da perspectiva de Ismael, ex membro da marinha mercante britânica e em sua primeira viagem num barco de caça, vemos a grandiosidade e o horror da obsessão do Capitão do Navio, Ahab, em sua busca por vingança contra Moby Dick, a baleia que lhe custou diversas cicatrizes e a perda de uma perna. 

Chabouté, um mestre na mídia em que trabalha, opta por abrir mão de passagens mais descritivas e áridas do livro de Melville, como as que se debruçavam sobre detalhes da engenharia naval, e utiliza a graphic novel para empreender em um conto moral e um estudo de personagem centrado no velho lobo do mar que lidera a expedição. 

A trama adota um tom intimista e um ritmo lento, onde podemos experienciar, junto com o protagonista, a compassada decadência moral do Capitão e o efeito dela no resto da tripulação. 

A adaptação, se concentrando, como já dito, nos aspectos psicológicos da jornada, adota o duplo, a duplicidade e o efeito do embate dicotômico entre esses aspectos como norte simbólico que vai guiar a trama até seu final. Inicialmente, vemos essa dualidade personificada de forma literal entre Ismael e seu colega de quarto, o “selvagem” Queequeg. Em seguida, vemos o conflito do jovem marinheiro entre o familiar, o mundo que deixa pra trás, e o desconhecido, o convidativo mar que o chama de forma sedutora e que ele enxerga de forma romantizada, apesar dos avisos de homens com maior experiência em viagens navais. 

A seguir, já cientes da real natureza da missão do Pequod, temos o confronto entre o homem e a natureza, simbolizada de forma literal e de forma prática na aventura que os espera, mas também, de forma metafórica, no embate entre o homem e Deus. A história já prenuncia suas raízes na mitologia cristã na cena anterior ao embarque, quando numa igreja, Ismael e Queequeg assistem a uma missa onde um padre menciona a passagem envolvendo Jonas e a Baleia. A seguir, eles são interpelados por um marinheiro chamado Elias e avisados do custo que a missão custaria a suas almas. No decorrer da trama, diversas citações e alegorias vão remeter ao cristianismo: a consagração profana da lança de Ahab para o demônio, o relâmpago que cai no mastro que queima como uma cruz, os brados do capitão que se declara o Deus daquele barco, entre outras. Durante a viagem, o Pequod cruza com um navio chamado Raquel – nome de uma personagem bíblica – liderado por um capitão que teria perdido seu filho em uma embarcação enquanto este caçava baleias e este implora pela ajuda da tripulação, recebendo uma recusa como resposta. Essa passagem simboliza o ultimo julgamento moral daquelas pessoas e sua resposta acaba por selar seus destinos.

Outros duplos encontrados: 

- masculino versus feminino, simbolizados nas duas únicas figuras que são referidas pelo pronome feminino durante a história: A embarcação “raquel” e a própria baleia, a quem Ahab chama de “ela”

- vida e morte: Chabouté opta por, na maioria esmagadora das vezes, representar cenas abertas com o barco e o mar em preto sem cenários. A viagem daqueles homens, portanto, é, de forma simbólica, um adentrar no limbo, um infinito branco sem fronteiras. Esse limbo sem limites, eterno, é uma das representações clássicas do purgatório bíblico. Aquela jornada, portanto, seria um estado de não-viver, um vácuo existencial onde aquelas figuras foram cooptadas pela sede de sangue do comandante da embarcação.

- Destino versus lívre arbítrio através da figura de Feddelah, descrito no quadrinho como “a sombra de ahab”, temos a inserção dos poucos elementos metafísicos de fato da história, com o sujeito mencionando três profecias a respeito do futuro do capitão. Se por um lado, portanto, a morte parece certa, já que prevista, ela também depende das decisões daquelas trágicas personagens para sua completude.

- Natural versus artificial: Podemos vislumbrar que a adaptação toma certo cuidado em mencionar, ainda que de forma breve, a forma preconceituosa que o “selvagem” arpoador Queequeg, único homem negro da trama, é representado, assim como uma ainda mais curta passagem envolvendo marinheiros chineses. No entanto, o africano é representado como um dos poucos centros de fortitude moral da história. É ele que sugere ao amigo que vão à igreja local, antes de embarcarem. Ele também é quem sugere a criação de um caixão quando, após um trágico acidente, aquele grupo descobre que as bóias que deveriam servir de salva vidas para potenciais náufragos estão apodrecidas demais para executarem sua função. Antevendo o trágico final daquela empreitada, Queequeg sugere criarem um caixão para servir de bóia e que, caso ele morra, deve ser usado como sua morada final. E, não coincidentemente, ao fazer isso, ele demonstra certa presciência do quão futil é aquela incursão, já que de certa forma, o quadrinho acena para o leitor o fato de que todos os navegadores do Pequod nada mais são do que futuros cadáveres singrando pelo infinito em um gigantesco caixão de madeira, nada mais do que uma versão em larga escala do pequeno ataúde criado pelo caçador.

Ao final da história, ocorre o catártico encontro entre Pequod e Moby Dick e o resultado é trágico para os humanos, com o mamífero marinho destruindo o navio, causando a morte de quase todos ali, com exceção de Ismael, que sobrevive ao se agarrar ao caixão feito por Queequeg alguns momentos antes. O grande julgamento da história foi feito e, com exceção do protagonista, ninguém ali foi absolvido. Em sua jornada ensandecida, Ahab acaba concretizando as profecias das quais tentava fugir. Com sua trágica conclusão, o livro e a graphic novel encerram seu conto moral e sua crítica à obsessão humana, lembrando que, apesar de nossas ambições, a vontade humana ainda é insignificante diante da natureza fria. E ironicamente, o artista francês encerra seu conto sobre a corrupção do espírito humano utilizando brilhantemente a mídia em que ela se insere para representar a baleia que acaba por terminar com a vida do seu algoz, mostrada em painéis pelas páginas de forma igualmente fria. Não como um deus ou demônio que veio do firmamento ou do inferno apenas para medir forças de forma épica contra seu nêmesis, mas um animal que existe apesar de qualquer significado simbólico que lhe seja depositado por homens a procura de um propósito maior que eles próprios.