quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

"O gigante enterrado" de Kazuo Ishiguro


Tem uma história sobre as origens de Dark Souls  que ressoou na minha mente durante quase toda a leitura de "O gigante enterrado". No "Design works book" da série, um dos artistas responsáveis pelos concepts dos personagens estava encarregado de criar um dragão zumbi e a primeira idéia do sujeito foi fazer o bicho o mais gore possível, com pus e carne putrefata. Ao ver o resultado final, o diretor do jogo, Hidetaka Miyazaki não gostou e sugeriu o seguinte: 

“This isn’t dignified. Don’t rely on the gross factor to portray an undead dragon. Can’t you instead try to convey the deep sorrow of a magnificent beast doomed to a slow and possibly endless descent into ruin?"

A versão final do Undead Dragon
Se eu tivesse que descrever o clima constante do mundo que serve de cenário para a obra de Kazuo Ishiguro, eu usaria o termo "decadente". Um dia, aquele lugar foi lindo, mágico, encantador. Mas então veio "a visita cruel do tempo" e o que sobrou foi apenas um pálido reflexo daquele universo glorioso. Ou, pros fãs de Adventure Time: sabem a profunda sensação de melancolia causada ao final do episódio "Lemonhope part II", quando a princesa Bubblegum canta "the song of lemonhope" e assistimos à cenas do futuro de OOO, onde só sobraram cinzas e monumentos abandonados do que um dia foi um reino vivo e divertido? Mesma coisa. 


É bem essa a ambientação da obra. Cada página é uma adaga cravada no coração do leitor que estiver minimamente envolvido com a trajetória daqueles personagens adoráveis. Os protagonistas são o casal Axl e Beatrice. A dupla, já de avançada idade, se vê numa perigosa e exaustiva jornada através da Inglaterra medieval para encontrar seu filho, que se encontra numa cidade vizinha. No caminho, eles encontram o jovem Edwin e o cavaleiro Wistan, além de algumas personagens menores e outros deuteragonistas cujo nome vou me abster de mencionar apenas pq seria um puta spoiler.  Por todo o país, uma névoa sinistra nebula a memória das pessoas e logo, os personagens acima vão se ver numa road trip tentando investigar a origem de tal miasma. 

Quando eu digo "dark fantasy" qual a imagem vem imediatamente na cabeça dos senhores? Berserk? A supra citada série Souls? Eu diria que a associação funciona aqui. Não, apesar de existir sua cota de ação e violência, não esperem as cenas épicas do mangá/anime protagonizado por Guts. E não, apesar de criaturas fantásticas fazerem parte do cotidiano dos moradores das ilhas britânicas que protagonizam essa história, não esperem colossus descomunais ou titãs enraivecidos. Aliás, abandonem qualquer hipérbole ou adjetivo grandiloquente. 
Não existe "épico" aqui. Apesar dos personagens encontrarem conflitos cada vez mais complexos durante sua jornada, mesmo a aventura aqui é despida de seu caráter "maior que a vida". As espadas aqui não reluzem ao sol, que aliás mal aparece, obscurecido sob uma camada constante de sombrias nuvens, mas apenas se mostram embaçadas de talhos de guerra e ferrugem do sangue coagulado. Uma figura da mitologia britânica, constantemente descrita como heroica e quase messiânica, é mostrada como uma homem falho e capaz de decisões extremamente cruéis em nome do "Bem maior", aquele mesmo que vem justificando montanhas cada vez maiores de corpos de inocentes empilhados por todo o decorrer da história humana. 



Sério: eu acho que, com esse blog existindo desde o longínquo ano de 2008, vcs já devem estar cientes de que eu gosto de histórias sem final feliz, sombrias, tristes ou simplesmente trágicas. É aquilo: meu passado de adolescente gótico sempre manda lembranças, permitindo que eu facilmente encontre beleza no grotesco, no bizarro e na tragédia. Isso posto, eu levei quase um ano lendo esse livro. Por que ele é arrastado? De forma nenhuma. Eu diria que em uns 3, 4 dias, uma pessoa com hábito de leitura razoável consegue terminar a obra. O lance é que: eu tinha um profundo carinho por todos os personagens ali, então, voltar pra ler "o gigante enterrado" era sempre algo difícil, quase torturante, por vc, antes da metade do tomo, saber que o que vem pela frente não vai ser bonito ou justo, apenas inevitável. 
Mais do que melancolia ou tragédia, o grande tema do livro é a memória.
O efeito dela e da sua ausência. As verdades que ela esconde e as nada bonitas feridas que ela expõe e que são inescapáveis, não importa quanto tempo passe. Em um determinado momento, todos ali vão ter que escolher entre se manter na confortável letargia do esquecimento ou trazer a verdade de volta, doa a quem doer e mesmo sabendo que diante dela, amizades e amores vão desmoronar diante do peso do rancor, ressentimento e ódio. 
O livro nunca perde o ritmo, inclusive com Ishiguro mudando, aqui e ali, o estilo de escrita, alternando entre primeira e terceira pessoa de forma muito confortável. Legal como ele também brinca com o tempo através dos capítulos.

Kazuo Ishiguro
Num livro sobre memória e a falta desta, é fascinante como mais de uma vez o autor apresenta um fato ainda não ocorrido para, apenas algumas páginas depois, descrever a origem daqueles eventos citados. Pelo menos duas vezes, durante a leitura, me peguei pensando que havia esquecido quem era algum personagem ou que havia pulado alguma página, apenas para descobrir depois que a gênese daquele acontecimento ainda não havia sido mostrada. Novamente, apropriado as hell. 
Mas no final, por mais que os estilismos do escritor sejam bem legais, o que nos mantém preso ali até o melancólico final é o apego por todos aqueles personagens, cada um em sua via crucis pessoal. 
E a dúvida sobre se vale a pena construir um mundo melhor ainda que erigido sob o cadáver escondido de um golias ou se o mais humano a se fazer é despertar certos gigantes enterrados, independente da dor e das toneladas de sangue derramado que isso pode causar.*
O mundo desse livro é exatamente como a árvore que figura em sua capa: majestoso em algum momento longínquo, mas melancolicamente reduzido a fragmentos pela implacável ação da entropia e de erros gigantescos demais para serem esquecidos.


*Pra gente aqui no Brasil, o título do livro faz tanto, mas TANTO sentido. No final, o gigante do livro não é muito diferente do nosso, o tal gigante que "acordou" lá pelos idos de 2013 e que vem despertando em diversos países do mundo desde mais ou menos a mesma época. Um gigante menos ficcional do que a gente gostaria......

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