Fazem 2 dias desde que vi Trainspotting 2 pela primeira vez e ainda me sinto digerindo o longa. Entendam: O original é meu filme favorito da vida, junto com outros dois que vão ser tema de textos aqui no blog num futuro bem próximo: Blade Runner e Fight Club.
3 filmes que ganharam sequencias recentes, bem elogiadas pela crítica (não sei se bem recebidas pelo publico, mas foda-se o publico. Afinal, foi esse mesmo publico que decidiu que ET, o extra terrestre era melhor que o longa do caçador de androides de Ridley Scott, condenando este ao fracasso nas bilheterias. Por sorte, a História corrigiu essa injustiça). Dos 3, 2 eu já consumi: o já citado t2 e Fight Club 2, mini série em quadrinhos em 10 partes, com roteiros de Chuck Palahniuk e arte de Cameron Stewart. Blade Runner 2049 ainda não estreou no dia em que escrevo esse texto, então, ainda não posso me pronunciar. Mas 2/3 desses filmes citados lidam, cada um a seu próprio modo, com o conceito de nostalgia e é sobre isso que eu quero falar: como os dois, e mais, e só pra ficarmos em exemplos de grandes propriedades intelectuais que adotaram a mesma politica em relação á nostalgia, a season 3 de Twin Peaks, se negam a mergulhar na fantasia de um tempo melhor, ainda que em graus diferentes.
“Unfortunately, the clock is ticking, the hours are going by. The past increases, the future recedes. Possibilities decreasing, regrets mounting.” ― Haruki Murakami, Dance Dance Dance
So, Trainspotting 2, de Danny Boyle e reunindo todo o elenco principal original. Voltam Ewan Mcgregor, Johnny Lee Miller, Robert Carlyle, Ewen Bremmer (respectivamente, Mark Renton, Sick Boy, Frank Begbie e Spud) com mais algumas participações especiais que eu não vou comentar de forma mais explicita pra não soltar spoilers demais. Sequencia do original de 96, levemente baseada no livro de autoria de Irvine Welsh, "Porno". Que eu não li, apesar de estar corrigindo esse erro. Mas o que sei é que, apesar de elementos que tomam pedaços do livro, T2 é uma besta completamente distinta. E aí?
Bom, existiam várias formas de fazer esse filme. Aliás, existem varias formas de fazer uma sequencia de um classico, principalmente com mais de duas décadas separando tais obras. Uma delas é sentar a mão na referência, praticamente tentar replicar a experiência original. Tipo MIB II. Dar tudo o que o publico espera, publico esse que, lembremos, já está ganho. Esse é um jeito.
Mas existe outro: negar tudo isso. Frustrar o publico que acha que vai reviver exatamente a experiencia primária. Não copiar os eventos da obra original, mas o feeling, o espírito da obra original. Twin peaks fez isso, mesmo correndo o risco de alienar uma parte do fandom que foi atrás da nova temporada achando que veria uma expansão do que experienciou 25 anos atrás. As sequencias de Matrix fizeram isso e pagaram o preço de serem mal vistas pelo fandom que queria outra coisa.
Trainspotting 2 ficou em cima do muro de um modo interessantíssimo: o filme não é nostálgico, mas seus personagens sim. A premissa básica: Mark volta pra Edinburgh depois de um divórcio tentando acertar as contas com o passado. Okay, boa idéia. Exceto pela parte de que isso não faz sentido algum pq,....nostalgia envolve o retorno pra um passado melhor. Senão vejamos: Mark e seus amigos eram viciados. Um de seus amigos mais próximos morreu depois de ser introduzido às drogas por ele. Pessoas próximas foram machucadas por Begbie, eternamente há 5 minutos de enfiar uma faca na garganta de seus colegas. A filha de seu melhor amigo morreu pq o pai estava ocupado demais chapado de heroína.
Oh, e cereja no topo do bolo, ele terminou roubando quase 20000 libras de seus colegas, dinheiro que usou para, em tese, se tornar uma "pessoa de bem". Agora, que parte desse festival de chorume acima parece soar para os senhores como "um passado melhor"?
Pois é. Mark parece perdido na propria juventude, como aliás, Sick Boy aponta para ele em alto e bom som em determinado momento no longa. Mas o filme lhe (e nos, no processo) nega a indulgencia e ao invés de uma "nova aventura com a turma do filme original", Mark é confrontado com o fato de que é impossível entrar no mesmo rio duas vezes. O filme já deixa claro que não vai ser uma viagem à memory lane quando ele nos nega o prazer de ouvir Lust for life, logo no começo. A msg é clara: nope. O filme é todo sobre gente tentando quebrar um ciclo enquanto se percebem hospedes da "visita cruel do tempo". Ainda que de forma torta, Sick Boy continua tentando "emplacar", quer seja cuidando do pub da família, quer seja em seus esquemas de chantagem. Spud, o mais consciente dos 4, vê um vislumbre de futuro ao perceber certo talento para a escrita (e confesso que é uma surpresa saber que Spud é alfabetizado). Frank só quer sair da cadeia e voltar para seus "negócios", dessa vez, tentando passar seus talentos para a próxima geração de Begbies. Tudo isso entra num hiato umbigo cêntrico e auto referencial quando Mark volta para a cidade inglesa.
A partir daí, os 20 anos separando o filme anterior deste meio que desvanecem e certas verdades inconvenientes voltam para atormentar o grupo.
Vou dizer que gostei pra cacete do filme por um motivo bastante simples: eu tinha a idade de Mark e os demais garotos quando vi o Trainspotting original.
E vi esse filme agora, às portas de fazer 38 anos, portanto, mais próximo da idade dos protagonistas neste filme do que da idade deles em 96. Só nunca fui nostálgico pq minha infância e adolescência foram ruins demais para me permitirem qualquer fantasia de passado mítico a esse respeito (bem aventurados meus pais e seu alcoolismo me salvando de qualquer punhetação falaciosa dos dias que se foram). Mas, EXATAMENTE por isso, reconheço a sensação de Renton de ver a adolescência, mesmo com toda sua cota de morte e drogas e traições, como, pelo menos, um lugar em que o potencial de mudança estava a sua frente. Quando vc tem 16 anos, vc pode se enfiar em privadas e tomar tonelitros de drogas, desde maconha á chá de pilha (isto não é uma confissão, caso estejam em duvida) pq o futuro é seu, uma caixa de Schrodinger a ser aberta com infinitas possibilidades de variações dentro. Na idade deles (e minha, apesar de eu ser 8 anos mais novo que Renton no longa desse ano) a sensação é que o melhor já foi, que o espírito do natal futuro virou o fantasma do natal passado (oS fantasmaS, aliás. vários voltando a nos assombrar de vez em sempre) e que ao invés de conquistar o mundo, o que nos resta é fazer o controle de danos e salvar o que der.
Achei extremamente sofisticado como a trilha sonora embala essa ego trip: ao invés de reutilizar as clássicas canções do filme anterior, Boyle prefere "atualizar" as mesmas, trazendo novas versões, novos arranjos e remixes delas. Ouvimos melancólicas notas de "Perfect Day" aqui. Uma versão slow mix de "Born Slippy" acolá. Uma cacofônica e quase industrial versão do clássico de Iggy Pop em outro momento. Igual mas diferente.
Já remotamente apaziguados, Renton e Sick Boy tentam conseguir verbas publicas para abrir um bordel/sauna juntos, com a ajuda da prostituta Veronika (a mais jovem do grupo, e, exatamente por isso, responsável pelos choques de realidade que os personagens principais precisam ouviram durante T2). Enquanto isso, Simon tem que se desdobrar, dividido entre a nova relação com Mark, a mágoa pelos pecados passados do moço e, paralelo, Begbie, livre da cadeia, na caça pela cabeça do guri.
Como eu disse, o filme abraça e renega a nostalgia.
Como eu disse, o filme abraça e renega a nostalgia.
A estrutura da trama inclusive bebe disso, já que o grande conflito de T2 gira em torno da mesma estrutura do original. Primeiro, o dinheiro. Então, a traição
"Dance,” said the Sheep Man. “You gotta dance. As long as the music plays. You gotta dance. Don’t even think why. Start to think, your feet stop. Your feet stop, we get stuck. We get stuck, you’re stuck. So don’t pay any mind, no matter how dumb. You gotta keep the step. you gotta limber up. You gotta loosen what you bolted down. You gotta use all you got. We know you’re tired, tired and scared. Happens to everyone, okay? Just don’t let your feet stop." — Haruki Murakami
O filme é tão bom quanto o original? A unica resposta aceitável dessa pergunta é: "não pq ele não quer. Ele quer ser algo diferente. E consegue". A experiencia é tipo ver Boyhood, ver onde estávamos e aonde chegamos. Se permitir distanciamento tal que podemos procurar por padrões, ciclos, círculos viciosos e tentar quebra-los. Eles conseguem?
Felizmente? Não. :-) Os personagens perdem mas o filme ganha com isso. Só tinha um final possível, bola essa que eu cantei pra Stella que viu o longa comigo, lá pela metade de suas quase duas horas de duração. E acertei. E ainda bem pq, tal qual ocorre com Mark e seus..."amigos", há um ciclo ali que não pode ser quebrado. Correntes com bolas de metal que nos prendem e a eles, sutilmente como no lance da trilha sonora que citei acima, ou de formas mais "na cara", como na cena que quase replica o clássico momento em que Renton é quase atropelado do filme de 96 (e aqui, o sorriso dele funciona como elemento de reconhecimento, como se ele soubesse que aquele é de fato um de seus greatest hits, no pun intended. :-)) ou na cena em que o protagonista volta pra casa dos pais e come à mesa na mesma formação que aparecia no original, mas com uma cadeira vazia pra indicar a insustentável, imaterial e constante presença da ausência da matriarca da família. Engarrafar o relâmpago passado é impossível. A cidade é diferente, as pessoas mudaram e mesmo as drogas já não batem como antigamente. O que resta? Se enfiar numa ego trip sobre o passado glorioso que nos espera numa fantasia de "retro futuro", como o grupo de ultra nacionalistas que a dupla de protagonistas encontra no bar durante suas andanças, eternamente presas olhando pra trás, tal qual o anjo do progresso de Walter Benjamin?
“Choose life
Choose Facebook, Twitter, Instagram and hope that someone, somewhere cares
Choose looking up old flames, wishing you’d done it all differently And choose watching history repeat itself
Choose your future
Choose reality TV, slut shaming, revenge porn
Choose a zero hour contract, a two hour journey to work
And choose the same for your kids, only worse, and smother the pain with an unknown dose of an unknown drug made in somebody’s kitchen
And then… take a deep breath
You’re an addict, so be addicted
Just be addicted to something else
Choose the ones you love
Choose your future
Choose life”
Citando Sandman, "mudar ou morrer". Spud, logo ele, vê a possibilidade de mudar o futuro.
Veronika parte, mesmo sem saber, recriando o ciclo do final do filme original, mas talvez com a possibilidade de quebra-lo.
Franco volta pra cadeia, incapaz de se soltar da jaula passada (prestem atenção no conto de Spud sobre um episódio do passado do personagem e percebam como ele também está, tal qual Sísifo, carregando sua própria rocha montanha acima, vez após vez, vítima de traições muito anteriores ao roubo das vinte mil libras). Sick Boy é mercurial, uma incógnita.
E Mark? Depois de passar pelas 4 fases do luto anteriores, em memória a um passado já sepultado, Renton chega á aceitação. Só resta à ele parar de arrastar os pés tentando parar a roda do tempo e se permitir seguir adiante. Finalmente ouvimos a música mais reconhecível do original. Uma canção sobre jovens fazendo merda. Mas diferente (num remix do Prodigy). Vida é sobre evolução e evolução é sobre mudança. Choose life. Choose the future. Choose to dance. Como se não houvesse o amanhã.
A seguir, na parte II: "Rize or Die". #TylerLives
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