Cara....a minha lista de melhores do ano acabou de sofrer um baque, já que nem de longe eu esperava que uma graphic novel francesa traduzida para o inglês fosse se tornar uma de minhas favoritas. E no entanto, eis-me aqui, traçando essas linhas, tentando descrever de forma que lhe faça justiça, o quanto Satania é incrível.
De autoria de Fabien Vehlmann e Kerascoët (não, eu nunca tinha ouvido falar de ambos até então), o gibi narra as aventuras de Charlotte, tentando resgatar seu irmão, perdido numa expedição em uma caverna alguns meses antes. A acompanham o Padre Monsore, Lavergne e mais uma cambada de minions red shirt. Falar desse gibi sem dar muito spoiler não vai ser um processo simples, mas apenas pq falar desse gibi, no geral, é um processo complicado, já que ele é uma criaturazinha muito unica.
Charlotte (ou Charlie) embarca nessa jornada atrás de seu irmão, Christopher, um cientista especialista em expedições em cavernas de grande profundidade e autor de uma teoria peculiar: a de que o inferno existe, mas não como uma dimensão metafísica criada por um Deus onipotente, mas como uma área física, no centro da Terra (ou muito abaixo da superfície) e que seus habitantes não são demônios, mas humanos primordiais, modificados pela seleção natural para se adaptarem ao ambiente em que se inserem, ganhando assim as feições que normalmente associamos às criaturas infernais.
Acho que não é nenhuma heresia (viram o que eu fiz aqui?) dizer que a jornada do grupo é muito parecida com uma versão pós modernista do périplo que Dante semelhantemente percorreu na "divina comédia". Conforme os exploradores vão se aprofundando em sua jornada, menos eles se parecem com pessoas propriamente ditas, e mais com conceitos, quase como os protagonistas sem nome do auto da barca do inferno ou de livros de Saramago. Charlie, a protagonista e unica mulher do grupo. Padre Monsore, o...bom...Padre. Lavergne, o tolo. Legoff, o louco. Christopher......well.... aqui as coisas se complicam....
A cada novo nível que o grupo desce, menos é possível aplicar conceitos lógicos para descrever o que eles encontram e, como consequência, o que nós sentimos ao acompanha-los nessa viagem, como se o objetivo real da jornada fosse despi-los de toda lógica cartesiana e pré conceito que possam ter e faze-los estabelecer uma nova persona, tabula rasa, para a reconexão com aquele contexto de puro impulso, pura selvageria, pura experiência sensorial. Aquele não é um reino humano e idéias humanas não funcionam.
Se apenas a descrição do negócio já parece densa, é pq os senhores não vislumbraram o belissimo trabalho gráfico da revista. Sério, a capa já impressiona, mas aí vc entra na trama e vê um traço nada feio mas bastante simples. Os cenários cavernosos são detalhados mas, pela própria natureza monocromática, não permitem muita experimentação visual. Mas aí novas camadas são aprofundadas, novos contextos são descobertos e vamos, através de painéis belíssimos, conhecendo aqueles cenários, ora paradisíacos, ora lovecraftianos. Kerascoet (que na verdade não é uma pessoa, mas um casal de artistas: Marie Pommepuy e Sébastien Cossat) utiliza as cores de um jeito brilhante, incluindo permitindo que o reflexo da luz ambiente nos personagens funcione como um indicativo do quão puros, corrompidos ou inumanos eles se tornaram.
O tecnobabble explicando como funcionam as regras naquele inferno nem sempre funciona, mas primeiramente, é um gibi e não um tratado científico. E segundo, isso serve pra desmontar os personagens e, no processo, nós leitores, de qualquer certeza e de qualquer segurança que o conhecimento estabelecido possa nos trazer dentro daquele universo absolutamente novo.
Satania é um gibi de terror, mas o terror vem menos de jumpscares e cenas gore, e mais daquele medo característico do já citado Lovecraft e de filmes como O enigma do Horizonte, Sunshine, e The Mist, no qual personagens se pegam num contexto que inutiliza qualquer racionalização e no qual somos lembrados do quão insignificantemente pequenos somos e quão pouco domínio temos sobre a natureza, de fato. Também é sobre loucura. Não é pra menos que Charlie é a protagonista. Não apenas ela é a mais jovem do grupo, portanto, mais aberta a novos conceitos e menos apegada a velhos dogmas, mas a garota também lida com certos fantasmas do passado que tornam sua percepção da realidade mais fluída, menos cravada em pedra, que a dos homens que a acompanham.
Satania é um puta gibi de horror e uma história sobre a humanidade tentando impor sua vontade sobre a natureza e ela reagindo de volta, não com ódio e raiva, mas com a mais aterrorizante frieza. E é sobre olhar pro abismo sem saber o que vai nos olhar de volta.
Absolutamente sublime.
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