segunda-feira, 13 de junho de 2022

Em rumo a Krakoa: Sobre homens e super-homens

 "I prefer a real villain to a false hero"

                                        Killer Mike

Continuando nossa jornada retratando a saga dos mutantes da Terra 616 e sua longa odisséia até o momento atual onde a nação mutante de Krakoa tenta se tornar uma força permanente no universo Marvel, vamos passar por duas edições, uma saga "de respiro" entre dois arcos grandes. As aspas aqui se dão porque eu sinceramente acho que a trama que passa pelas edições 215 e 216 de Uncanny X-Men (roteiro de Chris Claremont e arte de Alan Davis e Jackson Guice) narra um dos momentos mais importantes e interessantes da caminhada dos homo superior e do seu principal time de defensores em busca da própria identidade. 

Mais de uma vez eu defendi aqui que o grande meta-tema que permeia toda a era Claremont e os melhores momentos da história dos X-Men após o fim desse período é que o grupo precisava evoluir para além do trope dos super heróis. Os Vingadores são super heróis. O Homem Aranha é um super herói.

Os X-Men são algo maior. Toda vez que eles tentam agir como super-heróis, com seus uniformes e patrulhas e grandes sagas em defesa dos fracos e oprimidos, eles falham. Se não com os humanos que defendem, com as vítimas da própria raça, deixadas em segundo plano enquanto eles tentam ganhar as graças dos sapiens. Em nenhum outro momento isso fica mais claro do que na saga que foi o foco do texto mais recente desta série de posts aqui no blog: O Massacre de mutantes. 

Os personagens, ali, tentaram usar a lógica super-heróica contra seus inimigos e o que conseguiram foi salvar uma meia duzia de gatos pingados, 3 dos membros de seu time gravemente feridos e a confiança geral entre eles, abalada em um nível quase irrecuperável.


Começamos esse mini-arco com o time ainda lambendo as feridas da guerra contra os Carrascos. Colossus, Noturno e Kitty, fora de ação e um número gigantesco de feridos. Ororo e Wolverine decidem enviar um grupo para a Escócia, para as instalações de Moira MacTaggert, onde os convalescentes tem uma melhor chance de se recuperarem graças as instalações médicas da ilha Muir e da distância com seus adversários. Enquanto isso, os dois co-líderes do time, em solo americano, vão investigar um incidente ocorrido na residência da família Grey. Depois de uma série de eventos que separam os dois personagens e deixam Tempestade inconsciente, ela acorda cativa em uma cela. Rapidamente, graças as suas habilidades como ladra, adquiridas na infância, ela consegue se soltar das algemas e vai investigar. 

Neste momento, somos apresentados aos antagonistas da trama, os 3 "super heróis" de nome Super-Sabre, Stonewall e Crimson Commando.  



Uma primeira análise da mansão onde eles vivem passa a impressão de serem heróis e, de fato, o discurso e os uniformes dos personagens indicam que eles foram, quando jovens, justiceiros que usaram seus poderes na luta contra "o mal", inclusive sendo parte da ofensiva americana contra os nazistas na Segunda Guerra. 

Nesse momento, começamos a entender quais são os temas que o time criativo quer desenvolver nesse arco e como ele encaixa naquele macro-tema que falei alguns parágrafos acima.  Os 3 justiceiros se apresentam como "heróis", mas seu discurso retrógrado define como vilões quaisquer grupos que não encaixaram na sua perspectiva antiquada. Comunistas, subversivos, grupos de esquerda, punks. 





Inicialmente, o tom extremado do discurso pode indicar que eles são um ponto fora da curva; vilões que se enxergam como heróis. Mas paremos pra pensar por um segundo: Qual a diferença do grupo que eles determinam como inimigo e das pessoas que, até uns anos atrás, os super heróis enfrentavam? Além dos super vilões, o padrão era ver Batman, Superman e demais indo atrás de traficantes, ladrões, gangues e coisas do gênero e normalmente, estes grupos tinham certas características físicas e culturais muito distintas. Negros, punks, anarquistas. Aquele trope da gangue de motoqueiros que realiza crimes. 

Homem aranha prendendo batedores de carteira e deixando-os para a polícia com direito à bilhete com dedicatória. O inimigo era o ladrão, o traficante, o desajustado social. Meia duzia de socos desferidos e pronto. O mal tinha sido punido. 

Hoje, no entanto, sabemos que isso é só uma ponta do problema e que o batedor de carteira, o ladrão, o traficante, são um sintoma de um mal muito maior, frutos de um sistema que reservou esse lugar para eles e dos quais, eles não devem sair. Mais que isso: o sistema PRECISA desses grupos desfavorecidos executando tal papel para que as engrenagens que mantem essa máquina ativa continuem girando. 

Inteligentemente, Claremont deixa as linhas morais da trama um pouco mais turvas, com Ororo tendo que proteger não apenas ela própria (que aliás, só está enfiada nessa situação por ser vítima de profilling racista, com o perdão pela redundância), mas também uma outra garota, vítima do julgamento do trio de justiceiros. E, complicando tudo ainda mais, ela não é uma pobre vítima, como a mutante controladora do clima, no lugar errado e na hora errada, mas é alguém concretamente de índole ruim: Priscilla é uma menina rica que, por nada além do mais puro tédio, decidiu, junto com o namorado, traficar drogas. Ela não é fruto de um grupo desfavorecido. Ela não é, sob nenhuma perspectiva, uma pessoa boa. Ela possui sede de sangue e, conforme a história demonstra, um comportamento de tons sociopáticos. 



Tempestade se vê diante da questão de que, sozinha, ela teria mais chances de sobreviver aos eventos que seguem: os justiceiros dão algumas horas de vantagem para que as duas fujam floresta adentro. Se chegarem até a estrada mais próxima, podem seguir livres. Do contrário, serão mortas. 

No entanto, mesmo Priscilla sendo um indivíduo desprezível além de quaisquer tons de cinza, Ororo não a deixa para trás por causa de seu conjunto de crenças e moral. 



Obviamente, no entanto, a caçada vai colocar tais crenças sob extrema pressão. 

Wolverine só vai voltar para a história já no final, mas também vai ter suas crenças fundamentais no seu papel enquanto super herói estremecidas. 




Claremont não é discreto nos temas dessas duas edições. As noções de super-heroismo precisam ser estudadas e revistas, principalmente considerando a forma como a percepção pública enxerga os X-Men. O discurso dos 3 justiceiros parece extremo, mas essa noção de proteger um passado glorioso, próximo da fantasia que os americanos tem do "american dream" e da família americana formada por papai e mamãe (brancos), pais de uma família com casa com cercado e tals, ainda tem seus defensores mesmo hoje em dia, quase 30 anos depois da data de publicação das histórias aqui comentadas. 

Lembremos que foram décadas e décadas do Superman defendendo a "verdade, justiça e o sonho americano" e que heróis defendendo causas sociais ainda é algo novo a ponto de gerar celeuma entre o fandom de hqs, toda vez que algo ligeiramente progressista é tentado. Novamente eu me valho daquela frase: o que os 3 velhos personagens dessa história defendem é algo que eu vejo como algo próximo do inferno, mas que uma parcela gigantesca dos leitores chamaria de "paraíso". Vide toda a choradeira dos fanboys a cada mudança nas hqs, a cada personagem de grupo minoritário colocado como protagonista, a cada vez que o capitalismo, e não um batedor de carteiras tentando sobreviver como pode, é retratado como o real vilão. 

Uma tendência recente no x-fandom, é apontar as falhas do sonho original de Charles Xavier. 

A idéia da "convivência pacífica entre humanos e mutantes" parece algo utópico em um primeiro momento, até notarmos que, aos moldes originais e considerando o papel dos X-Men na Terra da Marvel, isso implica manter o status quo reinante. Ou seja: manter mutantes e seus anseios, enquanto minoria perseguida, em silêncio para não ferir os delicados ouvidos humanos.

O sonho de Xavier - até Krakoa, pelo menos - era algo assimilacionista, que implicava calar quaisquer necessidades do grupo perseguido de forma que possam permanecer invisíveis e serem vistos como inofensivos pelos seus opressores. Basicamente, a idéia do professor X chegava perigosamente perto do sonho do "superior de alma sapiens", adaptando o "preto de alma branca" que você ouve como algo supostamente elogioso vindo das pessoas (e que eu já ouvi sendo proferido da boca de parentes MUITAS vezes, naquelas  reuniões familiares que, graças aos céus, foram diminuindo com o tempo). 

Existir, apenas, não é uma opção e essa é uma percepção que os X-Men foram, a duras pedras, aprendendo, não apenas durante a era Claremont, mas durante todos os anos posteriores e que vai resultar catarticamente na atual fase pós Jonathan Hickman e pós House of X/Powers of X.  

Mas me adianto: toda quebra de paradigmas é dolorosa pq pressupõe a destruição de crenças tidas como verdades até então. É nessa transição de crenças que Ororo e Logan se encontram durante o decorrer das duas partes dessa história. 





A humanidade de Ororo para com Priscilla é uma qualidade ou um defeito? Proveniente de um conjunto de valores éticos dignos de serem defendidos ou frutos de ego e ingenuidade que podem, a longo prazo, comprometer não apenas sua competência como líder mas também a própria causa que ela defende?

Ao final, a inação de Storm e Logan custam vidas, tiradas não pelos 3 velhos soldados, mas por Priscilla, enquanto ela tentava garantir a própria sobrevivência. O que, de fato, foi aprendido e conquistado ao final da aventura? Mais pessoas morreram, ainda que os culpados pelo menos tenham sido punidos (ou não?)*. 

Os personagens não terminam com nenhuma resposta, apenas com mais perguntas inconvenientes, que botam em questão inclusive qualquer sensação de conclusão ou catarse obtida com a captura dos seus 3 adversários e o fato de terem sobrevivido ao julgamento deles. 




Novamente: os X-Men não são heróis. Mas líderes. E como tais, eles devem funcionar como linha de frente para todo um grupo de seus iguais. A consagração com a origem da nação de Krakoa ainda está distante, e a caminhada não vai ser fácil. Pelo contrário, uma quantidade insana de sangue, lágrimas, tragédias e traumas os esperam. Este, no entanto, foi mais um passo, se distanciando do papel confortável de "super heróis" e indo em direção a algo maior, mais adequado e, definitivamente, superior. 

Mais alguns centavos de opinião: 

- Não me passou despercebido que Ororo, uma mulher negra e bissexual, esteve em combate com um inimigo chamado Stonewall. 

- O que me passou despercebido por todos esse anos, admito, e que eu só fui aprender enquanto pesquisava pra esse post, é que uma das protagonistas da revolta de Stormwall, ocorrida 53 anos atrás, e que foi um marco das lutas pelos direitos LGBTQ+ foi uma outra mulher, também líder entre seus iguais, também negra, lésbica, chamada Stormé Delarverie.

* Qualquer sensação de catarse se perde quando você lembra que Commando e Stonewall "caem para cima" e são recompensados por suas ações com um convite para se juntarem à Força Federal, grupo de mutantes liderados pela Mystique e que operam com autorização e a serviço do governo americano, como "braço coercitivo super-humano". Too real?

- Toda mudança geralmente traz sofrimento e o tom de desespero das tramas nesse período é quase palpável. E para vocês que estão comigo nessa jornada, fica aviso: daqui pra frente, só piora. 

A seguir: A queda dos mutantes. 

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