quarta-feira, 19 de abril de 2023

Em Rumo a Krakoa: "Bem vindo a Genosha. Uma terra verde e agradável"


Então, chegamos em uma nova era para os mutantes. Dados como mortos por boa parte do planeta e agora, com base na Austrália e acesso a qualquer lugar do planeta via Gateway, os discípulos de Xavier tem uma nova chance de concretizarem o sonho de Charles Xavier.

Seria de se esperar que, pelo menos por um tempo, as coisas fossem ficar relativamente tranquilas para os mutantes, naquele período de lua-de-mel com o novo status quo que obtiveram como recompensa de Roma após ajudar a entidade em sua guerra contra o Adversário. 

No entanto, uma ou duas histórias depois, as coisas voltam a complicar. Afinal, quando é que algo veio de forma fácil para os mutantes? 

Muito rapidamente, Claremont deixa claro que as feridas deixadas mentalmente nos personagens depois do quão duras foram as batalhas recentes, ainda estão longe de se fechar. 

A promessa do novo começo se esvai rápido e o que fica é a missão que os mutantes tem, o sonho do Prof. X e o custo que lhes é cobrado. 

Um tema recorrente desse período dos gibis X é o lento deslocamento dos X-Men da posição de super heróis para algo maior. Ao final de "The Fall of mutants", Roma usa o termo "lenda" para descrevê-los. E de fato, os efeitos do sacrifício dos personagens não foi perdido, com eles sendo alçados a condição de mitos. 

Mas essa é uma via de mão dupla. Qualquer ativista, qualquer pessoa que dedica seu tempo a trabalhar tentando ajudar grupos indefesos e desfazer injustiças sabe que essa é uma jornada PROFUNDAMENTE dolorosa, uma jornada igualmente formada por luzes intensas e densas sombras. 

E em nenhum momento, exceto talvez no "Massacre de Mutantes", a mais dolorosa derrota sofrida pelos protagonistas dessa série, vamos testemunhar sombras mais assustadoras do que no arco de quatro partes que leva os personagens até a cidade nação de Genosha. 

Não sei se intencionalmente esse arco se pretendia como tal, mas considerando como Inferno foi feito à contra-gosto do Claremont e o que sabemos de seu arco inacabado envolvendo o Shadow King, ao final de sua fase nos roteiros do título, é fácil declarar que esse é um dos reais momentos de catarse desse período. Talvez, uma das histórias mais importantes de toda a história dos filhos do átomo. E uma das últimas duras lições reservadas a ele nesta transição de heróis para líderes de toda uma raça. 

Por que dessa vez, os vilões não são sentinelas, abstrações psíquicas sencientes, burocratas extra-dimensionais ou deidades cósmicas. Dessa vez, os vilões somos nós. Sem intermediários. 

Apenas humanos ruins. Indivíduos usando de sua ideologia racista para subjugar todo um grupo de pessoas. 

Mas hey, ainda bem que é só ficção, certo?

Nosso primeiro contato com Genosha, na verdade, vem na edição anterior. Ao final da história, há uma caixa de texto com os dizeres: "A seguir: uma terra verde e aprazível".

E de fato, quando abrimos a edição nº235, primeira das 4 cobrindo essa história, nosso primeiro contato é uma placa gigante com esses exatos dizeres nela. 


"Esperança". "Oportunidade". "Liberdade".

No entanto, na frente dessa imagem, vemos um homem e um bebê. O homem ofegante, parece em fuga. Mesmo ainda sem saber de quem se trata, nada na forma como ele fala com a criança em seu colo nos dá a impressão de que ele é um vilão ou algo do tipo. 

"Lá é onde a liberdade vive".

É preciso notar também que essa cena remete ao começo do Massacre de Mutantes, onde também vemos duas pessoas, um casal, fugindo dos Marauders. Da mesma forma, o homem sem nome e o bebê seguem fugindo de seus captores. Ele coloca o bebê em um avião e volta para atrair a atenção de quem quer que esteja atrás deles. 


Um pai amoroso que lança seu filho em uma jornada sem rumo como única forma de protegê-lo. Familiar?

Após oferecer alguma resistência, ele é fuzilado e morto. E finalmente, como ele nota em seus últimos momentos de vida, ambos, ele e o bebê, finalmente estão livres. 



Cinco páginas. Não mais que isso para estabelecer que há algo errado na cidade nação de Genosha. 

A seguir, continuamos acompanhando um grupo de pessoas que, até o momento, não conhecemos mas podem, bem provavelmente, ser vilões, indo atrás do bebê desaparecido. Além disso, eles também almejam capturar Jenny Ransome que, por motivos que ainda não nos são dados, deve ser levada de volta para Genosha. 

Termos como "responsabilidades" e "dívida" são usados para falar da moça e do porque é tão importante resgatá-la. 

No processo de capturá-la, eles acabam causando alguma celeuma no aeroporto Australiano e, mais importante pra nós aqui, capturando Madelyne Prior no processo. Finalmente, temos o motor da história que vai levar os x-heróis até a ilha Genoshana e o que eles encontram lá é... well. Novamente: depois do massacre dos morlocks, esse é o golpe mais duro da história dos mutantes. 

Espertamente, e eu só notei isso relendo a série pra poder fazer esse texto, a gente termina essa primeira edição com grandes cenas de batalha e Wolverine e Vampira sendo levados para a ilha que vai servir de cenário - e vilão - desse arco. Mas ao mesmo tempo, apesar da série de eventos que acabamos de ver, saímos desse número sem idéia do que está acontecendo. Sabemos que existe um lugar chamado Genosha que está enviando um exército de pessoas fortemente armadas a ponto de oferecerem resistência a mutantes treinados, para resgatar uma fugitiva. Sabemos que parte dos protagonistas são levados para lá, contra a vontade deles. Mas só. Os detalhes mais carnudos a respeito da trama viriam só na edição seguinte. 

Novamente: 4 páginas de ação, sem muita informação do que está acontecendo - até ali, poderia ser só outro grupo de vilões mutantes - e finalmente a trama se revela pra gente. Não com um boom, com uma explosão, mas da forma mais serena possível.




O uso da frase famosa por sair da boca do Tio Ben e que seria a fonte de todo o ethos ao redor do qual a vida do sobrinho da Tia May gira não é discreto. Ou Phillip, filho do dr. Moureau, se referindo ao ...."servo" ... ali, com o termo "boy". 


Chamar um escravo de "garoto", "menino" ou outra palavra parecida, independente de quem estava falando e da idade da pessoa para quem o termo se dirigia, era um dos meios de desumanização famosos durante a escravidão americana e também no período da segregação. 

Mutantes escravizados. Uma fachada de liberdade e modernidade, mas construída em cima do sofrimento de um grupo inteiro. O grotesco dessa situação, experienciado por aqueles imersos nesse contexto como algo cotidiano e corriqueiro. 

A partir daí, é ladeira abaixo. 

Claremont não é sutil de forma alguma. Genosha nada mais é do que uma ilha construída a base de escravidão. As referências são obviamente o apartheid africano e o próprio passado americano, também construído a base da escravidão africana. 

Ou também, o caso do Brasil, construído por mãos negras. Como vi alguém dizendo outro dia, os negros construíram as paredes erguidas para deixa-los do lado de fora. 

Na melhor filosofia do "entendeu ou quer que desenhe?", Claremont, Rick Leonardi e Marc Silvestri não tem pudor em remeter a imagens que, por sua vez, referenciam alguns momentos mais sombrios da história humana.


Aqui não é o momento para mensagens ambíguas ou subtextuais. Aqui é jab atrás de jab. Não é uma trama de "maçãs podres", de "pessoas ruins em meio a pessoas boas". O sistema que sustenta Genosha só existe porque ele é partilhado por todos, independente de sua posição dentro dele. Um monte de "gente de bem" que fecha os olhos pra crueldades perpetradas diante deles e em nome deles. 







Philip é o mais próximo de um personagem com a função de ser o nosso olhar dentro da história, mas ele só sofre seu momento de realização a respeito dos horrores acontecendo LITERALMENTE no seu quintal quando Jenny, sua namorada, é descoberta mutante e precisa passar pelo processo destinado aos portadores do gene X nascidos em solo Genoshano: um processo de recondicionamento mental muito próximo da lobotomia. Nova identificação, onde lhes é negado o direito a um nome e passam a ser referenciados apenas por números de série. E, dependendo de seus poderes, uma função. Um uniforme que vai proporcionar conforto suficiente apenas para que possam trabalhar mais. E um campo de concentração onde vão ser mantidos após o horário de trabalho, longe dos olhares da sociedade local. 

Com o auxílio de um colaborador mutante, os poderes de Rogue e Logan são apagados e resta a eles usarem apenas seu treino para poderem fugir, até a inevitável reunião com o resto do time. 

Novamente: não há nada de redentor em Moreau, o Genengenheiro, e no sistema escravocrata que ele ajudou a criar. Sob a pecha de ser algo legal ali e de que é pelo "bem coletivo", indivíduos são torturados, escravizados e mortos. 









Outro dos grandes temas, não apenas desse período do gibi mas de toda a sua história, é o quanto os X-Men são um grupo de NÃO-humanos, pelo menos em termos literais já que são uma nova espécie, mas que através do seus atos de heroísmo e sacrifício, repetidamente tentam fazer com que os humanos reconheçam neles, a humanidade que carregamos dentro de nós mesmos. 

Recentemente, um diálogo do Magneto abriu meus olhos para um detalhe que me passou batido pela vida inteira: o primeiro grupo de antagonistas dos X-Men era "a irmandade de mutantes malignos".

Parece só um nome cretino, não? Mas um recente retcon acrescenta algumas camadas ao grupo. De acordo com Magneto, apesar de ocuparem posições opostas na luta pelos direitos mutantes, ele e Xavier conseguiam enxergar objetivos em comum um no outro. Quando veio a hora de batizar seu grupo, Erik escolheu esse nome porque sabia que a natureza humana seria de contrapor ambos, a irmandade e os X-men, de forma dicotômica. Somos uma raça simplista, dada a simplificações e polarizações reducionistas do tipo, para facilitar nosso processo de pensamento. E, bem, se seu grupo é de VILÕES e eles se auto-denominam de "malignos", por contraposição, os X-Men são "do bem". Ou seja, uma forma de internalizar na percepção coletiva o fato de que existem mutantes "benignos". 

E os discípulos da Escola Xavier sempre foram sobre isso. Lutar pela humanidade até que os humanos reconheçam nos Homo Superior tudo aquilo que há de mais nobre, sublime e glorioso neles próprios. Ou pelo menos, esse era o plano inicial de Xavier. 

Porque claro, essa é uma via de mão dupla. Batman tem o Coringa. O herói sisudo e de preto versus o palhaço colorido e sorridente. O Hulk tem o Líder. A montanha de músculos estúpida feito uma porta tem como inimigo um homem de corpo franzino mas mente brilhante. 

O herói e seu oposto. Da mesma forma, se os X-Men são não-humanos - novamente, em termos literais - dotados da humanidade típica dos melhores de nossa espécie, seus oponentes, o seu reflexo distorcido, são humanos destituídos de tais qualidades. Humanos desumanizados. 

Não coincidentemente, os grandes vilões dos nossos heróis, durante esse momento da era Claremont, são os Reavers. Ciborgues humanos com corpos aperfeiçoados tecnologicamente mas sem nenhuma humanidade restante no processo. 

Sem querer queimar pauta, mas os Reavers vão ser os responsáveis pela derrota mais brutal da vida desses personagens, até então.

E antes destes, os Marauders do Sr. Sinistro. Mutantes de laboratório. Meros construtos criados para serem as armas vivas de seu senhor. 

Mutantes malignos e humanos desprovidos de humanidade. E em ambos os casos, inimigos que não podem ser derrotados por "super heróis". Porque, lembremos, super heróis trabalham dentro de parâmetros estabelecidos por humanos. Por isso os Vingadores não resolvem o problema da fome mundial. Por isso o Batman não cura o câncer. Por isso o Superman não destrói o acervo nuclear do planeta. Porque super heróis existem para manter o status quo, não para quebrá-lo.

Essa sempre foi a maldição dos X-Men. Super heróis agem em resposta aos atos do vilão. Super heróis limpam o cenário do combate para que os efeitos da luta tenham o mínimo efeito no cotidiano dos passantes que ali residem. E super heróis NÃO derrubam governos estabelecidos, independente do quão cruéis eles sejam. Se eles conseguirem utilizar a lei a seu favor, devem ser deixados em paz, até que decidam provocar territórios vizinhos (apenas isso permite que Reed Richards possa, de tempos em tempos, sentar a porrada em Von Doom ou Namor).   


Quebrar o sistema Genoshano pede mais que heróis, do mesmo modo que salvar os Morlocks demandava algo maior que super heróis. E por tentarem serem heróis, eles falharam com o povo de Calisto. Mas não dessa vez. 

Ao final da trama, os X-Men conseguem se reunir com Rogue e Logan e, com a ajuda do filho do Genengineer, finalmente conseguem derrubar seus oponentes. 

Mas.... e agora? Os mutantes estão em posição de poder, com apoio local do grupo liderado por Philip e a promessa deste de que algo vai ser mudado, mas que tal mudança precisa partir de dentro daquela comunidade para poder ter efeitos transformadores de fato e permanentes. 

Os heróis partem, não com um sorriso esperançoso mas com a promessa um retorno. Não como cordeiros, mas como leões. E a ameaça de que ser nada for mudado, a dívida para com os mutantes será cobrada em sangue.



Como eu ouvi outro dia uma moça negra americana dizendo depois de outro crime de abuso policial? "Agradeçam a Deus que o que queremos é justiça e não vingança". 

Por estar em 2023, sabemos que o futuro não vai ser gentil com os mutantes ou com Genosha e que, é possível afirmar que a decisão de deixar o futuro da ilha nação nas mãos dos locais foi um erro. Um erro que voltaria a atormentar os protagonistas futuramente no arco "X-Tinction Agenda"

No mundo real de 2023, também temos ciência de que extinguir o racismo apenas contando com o melhor da humanidade pode ser conferir às pessoas mais crédito do que elas merecem. Seja em solo africano, seja nos Estados Unidos, onde recentemente, um garoto adolescente foi morto com um tiro na cabeça apenas por tocar a campainha da casa errada. Seja aqui no Brasil, onde cotidianamente, ações policiais abusivas ocasionam na morte de pessoas negras inocentes mortas. Onde o grosso da população prisional é de negros pobres. Onde partidos de direita e influenciadores financiados por estes defendem o direito da existência de partidos políticos que tem, no extermínio de minorias, uma de suas plataformas fundamentais. 

O que a população mutante precisa na Terra 616, tal qual o que NÓS aqui fora, no mundo real, precisamos, não são super heróis. Super heróis resgatam gatinhos de árvores e lutam contra monstros alienígenas. O que, eles lá e nós aqui precisamos, é de pessoas dispostas a afirmarem o óbvio: há algo de muito errado no mundo. O que existe é um sistema que precisa manter o mundo doente para que uma parcela mínima de pessoas possa viver confortavelmente. 

Alguém decidiu que a mesa farta é para alguns privilegiados e não para TODOS. 

Alguém transformou tais crenças em leis e se sustentam no poder graças a elas. 

Super heróis respeitam a lei e a defendem. O que precisamos é de revolucionários. De gente disposta a virar a mesa. 

Ainda vão ser anos até os mutantes repetidamente tentarem quebrar o sistema e criar algo novo. Cable e sua nação mutante, Providence. 

Magneto na mesma Genosha que explorava os gene-x.

Ciclope e sua ilha refúgio, Utopia.

E finalmente, a ilha nação mutante, Krakoa. Essa sim, uma quebra de paradigmas brutal. 

Mas ainda serão décadas até chegarmos aqui. Lições difíceis serão aprendidas no processo. 

E muitos sacrifícios serão feitos no caminho. 

Outros pontos: 

- Um momento importantíssimo aqui é o potencial estupro da Vampira. O próprio gibi tenta esclarecer que ela não foi exatamente estuprada, mas NO MÍNIMO, houve um abuso. Estupro é sempre um tema complicadíssimo quando usado na ficção. Aqui, no entanto, Claremont tratou dele com a devida sensibilidade. Aquele era o pior da humanidade, mantendo vivo alguns dos piores conceitos que a humanidade já criou. Claro que tais indivíduos, em seu processo de desumanização daqueles que exploram, não teriam pudores em viola-los de todas as formas possíveis. 





- Claremont, Leonardi e Silvestri espertamente mostram o papel da imprensa e da propaganda como meio de manter o sistema vivo. Nesse aspecto, as inserções de programas jornalísticos e comerciais vendendo o estilo de vida Genoshano me lembraram as vinhetas jornalísticas de "Cavaleiro das Trevas" e, mais ainda, de "Robocop". Menos um comentário sobre o status quo daquele lugar e mais um mecanismo de validação, um "normalizador" das atrocidades ocorrendo embaixo do nariz daquela população..Algo extremamente familiar para qualquer um vivendo no Brasil pós-Bolsonaro de rádios que são quase relações públicas do governo e de influencers capazes de repetir qualquer barbaridade que mantenha seus privilégios seguros. Mas claro, tudo em nome da "liberdade de expressão".

- Não vai ser tão pra logo, mas sim, eu vou comentar sobre "Programa de Extermínio" quando for a hora certa. 

A seguir: "Inferno".

4 comentários:

Alvaro F. disse...

Mano, sensacional tua leitura dessas fases dos gibis dos mutantes. Aguardando mais. Valeu

Hak, the bear disse...

Eu que agradeço. :-)

Alessio Esteves disse...

Mano, a repórter é IGUAL ao do Cavaleiros das Trevas, não?

Hak, the bear disse...

Caralho, eu não tinha notado, mas de fato. É idêntica!!!!!