Aí eu tava lendo e refletindo sobre a notícia de que, nessa onda (que espero em Deus, esteja em vias de explodir de vez) de séries e filmes de super heróis, vão investir num seriado adaptando Watchmen...
Mano..... o filme do Zack Snyder é o argumento provando, vejam bem, PROVANDO que Watchmen é inadaptável.
Mas mesmo que não fosse um filme ruim, fazer "um filme de Watchmen", um seriado de Watchmen, qualquer adaptação transmidiática de Watchmen é um erro pq, no momento em que vc tira o clássico de Alan Moore e Dave Gibbons do papel, vc tá matando o conceito da coisa. Watchmen é um gibi sobre os tropes de gibis e como eles não funcionam no mundo real. De como vc não pode ter um mundo como o nosso numa realidade em que super humanos (ainda que UM super humano) exista. A presença de um Superman, um Thor, um Dr. Manhattan surgindo é tipo uma cicatriz na realidade, a qual não pode ser ignorada. Tipo Cristo, dividindo o mundo em antes e depois dele.
E pra contar essa história, Moore utiliza a linguagem dos quadrinhos em toda sua gama de possibilidades: a ordem dos quadrinhos, as cores, posicionamento de páginas, o número e disposição de quadros numa página, etc, etc, etc.
Sim, a TRAMA de Watchmen pode ser transposta sem grandes dificuldades pra tela, do mesmo jeito que a trama de Doop ou Asterios Polyp tb pode. Mas vc perde os experimentalismos que fazem que aquele gibi seja daquele jeito e de um jeito que nenhum filme, série ou desenho possa ser.
Não é questão de se pode ou não ser uma boa adaptação: a simples idéia de ADAPTAR Watchmen pra outra mídia já é uma idéia tacanha pq vc perde todos aqueles elementos que fazem das hqs uma mídia unica com elementos que não podem ser replicados por qualquer outra, do mesmo jeito que o cinema tem elementos que não podem ser copiados (ou podem, mas porcamente), do mesmo jeito que livros, games, etc, etc, etc.....
E exatamente por isso que existe UMA coisa que eu acho digna de elogios no filme de 2009.
Vejam bem, aquilo foi um erro, não redimido por esse pequeno elemento, mas pelo menos, PELO MENOS, mostra que o criador da porra toda tinha certa ciência da natureza da obra adaptada, e creiam-me, é o ultimo elemento que vcs imaginariam ser digno de elogios naquilo:
Prontos??
Tem certeza?
Aqui vai:
Yep..... os mamilos no uniforme do Ozymandias. Eu poderia citar a camera lenta, as cenas de ação ridiculamente grandiloquentes ou a paleta sombria, mas nenhum sumariza mais perfeitamente o espírito de uma adaptação "correta" de Watchmen do que os mamilos do Adrian.
"Vc está bebado, urso?"
Veja bem, little John: Watchmen é um gibi que usa os tropes de gibi pra criticar e desconstruir o lore dos quadrinhos de super heróis.
Se é preciso realmente, REALMENTE, e eu me pergunto qual a maldita necessidade disso, mas ok, já que existe gente se coçando pela possibilidade de uma versão live action de Watchmen, o único jeito CERTO de fazer isso, é que seja uma versão transmídia usando a história do gibi pra comentar os tropes dessas adaptações. O que, ok, sejamos honestos, pode ser uma idéia interessante num momento em que (finalmente) ouvimos falar da saturação desse tipo de filme (apesar de Marvel e DC já terem planos pra filmes até, sei lá, 5 minutos antes do sol virar uma super nova, daqui a uns 5 bilhões de anos, mais ou menos). Um filme de Watchmen teria que usar a trama pra criticar os tropes de filmes de super heróis: roteiros rasos, a própria necessidade de um "universo cinemático", a quase unanime ausência de um terceiro ato nesses filmes que não enfraqueça a obra como um todo exatamente por ter que abraçar o "ridículo" (grossas aspas aqui) do fato de ser um "super hero movie", a profundidade digna de uma folha de A4. Desconstruir filmes de super heróis por meio de um filme de super herói.
Scott Mccloud explicando alguns elementos não verbais que são típicos dos quadrinhos |
Por isso os mamilos de Adrian Toomes me parecem sinais de que Snyder tinha a cabeça no lugar certo durante a confecção desse filme: um dos elementos mais chamativos e, ainda assim, um dos menores males dentre os que acometiam os filmes do Batman dirigidos por Joel Schumacher (ainda que, hoje, eu consiga apreciar a natureza camp dos dois longas), os mamilos nos uniformes do Batman e de seu sidekick são, até hoje, um dos elementos mais infames que marcaram a passagem do diretor de “Lost Boys” e “Um dia de fúria” pela obra cinematográfica do vigilante noturno. Resgatar isso em seu filme é um piscar de olhos interessante , não exatamente desconstruindo os tropes de filmes do tipo, mas assumindo que os dois filmes e suas cores e neon contrastando com as trevas do que conhecemos do personagem tb são partes fundamentais do que pavimentaram a estrada daquilo que chamamos hoje em dia de “filme de super heróis”, quase como se fosse um gênero em si. O Batman do Schumacher é diferente do de Tim Burton, e este tb era único se comparado com o de Christopher Nolan e todos estes diferem do Batman da série de 66, mas todos ainda são o Batman e, ainda que com defeitos, todos são leituras validas, ainda com completamente distintas entre si, e todos com elementos que poderiam ser resgatados como forma de tecer um comentário sobre os erros e acertos de adaptações transmidiáticas.
De novo, gibis são gibis, filmes são filmes. Vc adaptar obras que tem um caráter muito único por utilizarem o fato de serem quadrinhos para enriquecer a trama ali sendo contada sempre vai me soar falho, diminuindo as hqs (como vc adaptaria Promethea, por exemplo, pras telas de cinema?). Gibis não são storyboards apenas esperando a transposição quadro a quadro pra outra mídia. Se perdem os elementos estruturais da linguagem dessa mídia, desde o fato de ser tinta numa folha de papel, os balões, quadros, até aquele elemento imaterial do raciocínio participativo que vem do leitor, tornando aqueles quadros separados desenhados na página em algo contínuo.
Mas se é inevitável que se faça, pelo menos que seja feito direito.
Doop é um personagem cujo superpoder mutante é viajar no tempo e espaço pulando de um quadro de página pra outro, viajando pelo "espaço branco entre as páginas". |
Não é pra menos que Scott Pilgrim é um dos unicos exemplos, talvez o único, que eu consiga lembrar quando penso em adaptações de hq feitas direito, exatamente pq ele não tenta emular o gibi, mas usar aquilo que faz o cinema funcionar enquanto mídia como forma de enriquecer aquela história (a edição desse filme é particularmente espetacular nesse sentido. Ou então, a luta de Pilgrim contra os gêmeos, um dos momentos que eu menos gosto na hq original, que ganha uma vida toda nova e fascinante no longa EXATAMENTE por fazer algo impossível em sua contraparte em papel e tinta).
E aliás, Scott Pilgrim é uma obra tão especial e única e uma perolazinha tão bacana que o game inspirado no gibi também usa o fato de ser um jogo inspirado num quadrinho que, por sua vez, bebe dos games de 8 e 16 bits clássicos de Mega Drive e Super Nintendo pra brincar com os próprios tropes e elementos de linguagem típicos dessa mídia (em um determinado momento, a tela fica toda pixelizada, tirando onda com o glitch que costumava rolar quando os cartuchos estavam com poeira dentro)
E essa natureza auto crítica e extremamente consciente é o que faz de Scott Pilgrim um exemplo a ser seguido pra qualquer um que se meta à adaptar hqs em geral e ESPECIALMENTE Watchmen: se bem feito, cada transposição vai celebrar a fonte ao mesmo tempo em que mostra o que de único ela pode agregar à experiência original daquela obra, celebrando e tornando melhor tanto o material original quanto à nova interpretação dele.
Se não..... bom, se não, a relação vai continuar sendo essa meia bomba que temos aí: filmes esquecíveis, em que seus trailers parecem extrair mais emoção genuína do fandom do que o longa metragem resultante em si, em que o melhor elogio a ser feito é "é legalzinho mas não espera muita coisa" (não, desculpa, gibis de super herói mainstream já deram ao mundo Kingdom Come, A Ultima caçada de Kraven, Asilo Arkham, Flex Mentallo, entre outros. Eu não preciso me contentar com um filme "divertidinho"). E gibis sendo tratados como mero insumo pra uma "mídia mais séria".
*Esse texto foi resultado das reflexões resultantes da leitura da tal notícia sobre a série de Watchmen, da bombástica notícia da compra da Millarworld pelo Netflix (que muitos celebraram mas que eu vejo com péssimos olhos) e desse texto maravilhoso da Thaís Weiller sobre a discussão de videogames como arte e de um parágrafo específico nele onde ela lembra que comparar uma mídia com outra apenas serve pra diminuir ambas. Ela tá falando de games mas o ponto debatido funciona perfeitamente para as histórias em quadrinhos. Texto erudito sem ser pedante e extremamente fácil de ler, então, vão lá.
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