terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Capote in Kansas



Tal qual Truman, eu tb estou "apavorado com a idéia de me ver diante de uma folha em branco" e igualmente preocupado em "fazer justiça" a história que se apresenta diante de mim. Mas, comecemos com o começo, que pede certo contexto: nosso ponto de origem é.....esse blog.
Eu dei origem ao Groselha pq eu tava cansado de certo estilo de texto que eu normalmente achava em "sites nerds". Aliás, certos estilos: ou a "hard news", fria e impessoal, ou o tipo de texto que parece escrito por um fanboy adolescente de 15 anos de idade. Vejam bem: este blog tem quase uma década de existência. Pode não parecer mas 2007 está há duas eras geológicas no que tange à internet. Justiça seja feita: meu "círculo de relações virtual", se podemos chamar assim, é que era bem limitado, mas..
Bom, surge o blog e, depois de idas e vindas, hiatos e momentos em que ele quase morreu de vez, decidi "brincar sério". Pra isso, eu teria que ter mais do que apenas banca. Então, fui estudar quem fazia isso em nível profissional. Corta a cena e eu estou saindo da livraria cultura com livros e mais livros que constam em qualquer listinha de "livros que vc precisa ler para desenvolver suas habilidades". Gay Talese, Fabio Massari, Alex Ross (o estudioso da música, não o desenhista), Lester Bangs, material gringo sobre jornalismo de games (tenho a impressão de que essa área é uma com os melhores escritores hoje em dia, talvez exatamente pela dificuldade que é transmitir em palavras uma experiencia tão unica e pessoal quanto a de jogos eletrônicos. E também pela quantidade de dinheiro envolvido nessa industria, mas divago..). E aí, inevitavelmente... Truman Capote



Deixemos claro: À sangue frio não é de forma nenhuma uma leitura fácil. E é possível sentir o quanto o autor deixou de si (e perdeu de si) a cada linha."In cold blood", inicialmente publicado em 66, narra os assassinatos da família Cutler, habitantes da pequena cidadezinha de Holcomb, no Kansas. Após ler um artigo sobre o crime publicado no NY Times, Capote decidiu que seu próximo livro seria uma obra de não ficção descrevendo os detalhes do massacre. O resto é história.
O livro é uma das pedras fundamentais do que conhecemos como "jornalismo literário", em que fatos são descritos com certa preocupação formal com a prosa e onde, normalmente (mas não obrigatoriamente), o escritor é um personagem ativo (outro nome fundamental dessa escola literária é Hunter Thompson). O custo pessoal pro autor no processo de elaboração do tomo foi tal que, inevitavelmente, o processo de confecção da obra acabou virando objeto de fascínio tal qual o livro em si. 
Corta a cena e avançamos alguns anos. Em 2005, é lançado o aclamado "Capote", filme protagonizado por Philip Seymour Hoffman e dirigido por Bennet Miller. No ano seguinte, novo longa contando a mesma história, "Infamous", com Toby Jones personificando o escritor e direção de Douglas McGrath.
E numa dessas coincidências cósmicas, ao mesmo tempo, o roteirista Ande Parks, após concluir Union Station, trabalho anterior que o colocou sob os holofotes na industria, decidiu tomar pra si a missão de também recontar os dias de Truman pelo Kansas, suas andanças por Holcomb e sua relação com todos os envolvidos naquela comunidade, incluindo os investigadores responsáveis pelo caso e, obviamente, os dois homens responsáveis pelo crime (Richard Hickock e Perry Smith). 



Cada versão da saga pessoal do escritor no processo de concepção de sua obra prima tem sua devida cota de liberdades. No texto que fecha a graphic novel, Parks justifica algumas escolhas que poderiam vir a incomodar um fã mais purista do livro. As duas mais ousadas: Eliminar da trama Harper Lee, também escritora e amiga pessoal de Capote. Lee, na vida real, foi também responsável pelas entrevistas e conversas com alguns locais, parte importante do processo de pesquisa e investigação do autor. Mas aqui, pra obra funcionar, ela é tirada de cena antes do que de fato ocorreu.
A segunda liberdade é a presença de Nancy, filha mais velha dos Cutler e uma das vítimas do crime, como uma espécie de "confidente imaterial" do protagonista. Entendo se alguns leitores tiverem problemas com a decisão mas achei que funciona maravilhosamente aqui, conferindo drama e densidade à trama, tornando a jornada do autor ainda mais dolorosa. Truman vendia o livro como "imaculadamente factual", mas varias vozes viriam, com o tempo a discordar, dizendo que muita coisa ali realmente aconteceu como descrito mas que houveram também certos momentos de licença poética de forma a embelezar a prosa. E sendo este o caso, é até apropriado que cada olhar sob a intensamente pessoal aventura de Capote acrescente também sua cota de liberdades criativas, desde que de forma a conferir novas texturas e camadas ao doloroso processo de fazer artístico que envolveu a gênese do livro original.



A arte em preto e branco, é absolutamente linda. Econômica mas extremamente expressiva. Truman era conhecido pela personalidade "maior que a vida" e Chris Samnee consegue transmitir essa grandiloquência através de olhares e pequenos gestos, sem cair na caricatura. A passagem de tempo, sempre uma coisa complicada de se representar em qualquer obra com intenções de descrever um grande período cronológico, é transmitida através de pequenos detalhes. Uma ruga nova aqui. Uma nova linha de expressão acolá.  Certa calvície se apresentando entre uma cena e outra. Sempre muito sutil mas muito eficiente.
A escolha pelo preto e branco foi bastante feliz, não apenas pra conferir o caráter noir à HQ, mas também pq o jogo de claro e escuro conferem intensidade quando o gibi precisa ser intenso e ao mesmo tempo, serenidade quando esta é pedida pela trama. E além disso, a arte representa perfeitamente bem o quão solitário é o período em que Capote se permitiu imerso no cotidiano daquela comunidade traumatizada. 
Se eu tivesse que escolher uma palavra que, não apenas define essa hq e o livro que a inspira, mas que paira feito um fantasma sobre a obra, essa palavra seria "respeito". Por mais do que qualquer outro motivo, mesmo que não inicialmente, respeito foi o que manteve Capote buscando a conclusão de "À sangue frio". Respeito à vida dos Cutler e pela sua história. Respeito por aquela comunidade fragmentada. Respeito por Perry Smith, conferindo à devida gravidade a seu crime mas sem vilaniza-lo ao ponto da caricatura (a cena imediatamente após o veredicto, provavelmente um dos climaxes da hq, demonstra isso de forma indiscutível). Da mesma forma, é o profundo respeito de Parks e Samnee pelo livro de Truman que os motivou à fazer essa graphic novel, a se envolver nessa história de tragédias e tragédias (basta dizer que o livro foi o ponto alto da carreira de Capote, que não conseguiu publicar nada, posteriormente, que se igualasse ao trágico memorial da família Cutler). É sobre fazer justiça à História e às histórias ali narradas e a todas as perdas ali testemunhadas. E como diria Capote, o personagem, na frase que fecha a trama, é uma pequena oferenda para celebrar a vida dos amigos perdidos. 


*A graphic novel já ganhou versão em português, que atualmente se encontra esgotada, mas que vcs acham em sebos e sites como o estante virtual. As cópias que encontrei tavam com preço decente (nenhuma mais cara do que 40 reais), então, vão lá, crianças. A original, publicada pela Oni Press, vcs encontram fácil no Comixology. 

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