quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Em rumo a Krakoa: uma reflexão.


Só recentemente me ocorreu que em momento algum eu esclareci aqui o porquê do meu interesse por cruzar pelas turbulentas águas que compõem as 4 décadas de cronologia mutante em seus altos e baixos. 

No primeiro post eu comentei bem "en passant", mas só. Bom, senão vejamos: a próxima sentença não vai surpreender ninguém mas, os mutantes são um universo à parte dentro do 616. Em retrospecto, e essa é uma percepção que só me veio recentemente, enquanto pensava neste post, meus personagens favoritos da Marvel NÃO são super-heróis. 

Pensem no Hulk, principalmente na fase clássica do personagem. O que de heróico havia ali? Ele não estava saindo em patrulhas caçando criminosos, estando mais interessado em cruzar o país anonimamente e, por acaso, numa sequência de coincidências absurdas, sempre terminando em locais onde criaturas piores que ele próprio engenhavam seus planos de dominação mundial.

O Motoqueiro Fantasma é um caçador de demônios. Pantera Negra é um monarca lutando pelos interesses de seu reino. O quarteto é o "Doctor Who" do universo 616, um bando de imaginautas caçando aventuras. O Demolidor é um personagem noir que, por acaso, se veste como um demônio. 

E, sendo honesto: os Vingadores, por anos meu time favorito, era a exceção que comprovava a regra.

O que nos traz aos discípulos de Charles Xavier. Como já dito, os mutantes são uma "aberração" dentro da Marvel Comics, um universo quase independente, correndo em paralelo com o restante das criações da editora, o que tinha vantagens e desvantagens. Por um lado, quando os personagens ganharam o mundo em meados dos anos 80, o editorial soube surfar nessa onda. Por outro, no entanto, eles precisavam funcionar dentro dos limites de um quadrinho de super heróis mainstream e suas limitações, o que sempre pareceu tolher um pouco as asas dessas criaturas. 

Publishers inteiras construíram seus universos em torno de cópias dos alunos do Instituto Xavier, com resultados, no mínimo curiosos. De cabeça, me ocorre o universo Wildstorm, que de uma cópia sem um pingo de personalidade (WildCats), conseguiu fazer surgir um dos experimentos mais curiosos dos quadrinhos recentes (a versão 3.0 do gibi, encabeçada por Joe Casey). 

"Black", assinada por Kwanza Osagyefo, é outro que usa a premissa de figuras nascidas com poderes super humanos como forma de discutir questões de sci-fi e metáforas sociais interessantíssimas. 



Antes e depois da criação dos X-Men, a idéia de indivíduos com mudanças genéticas de nascença foi utilizada com níveis variados de sucesso. Mas o que chama a atenção no universo mutante é esse caráter transgressor numa mídia mainstream e como seus criadores souberam transformar essa percepção pública e as metáforas ali contidas em algo com um valor e importância social absurda. Não acredito ser exagero comparar o lore dos mutantes, desta exata forma, destacado do resto da editora, sozinho, com o de outras criações famosas da cultura pop como Star Trek ou Star Wars. E por mais que os germes do que faria o título algo único estavam lá desde sua concepção, foi a partir do final dos anos 70 que estas faíscas viraram um incêndio com a grandiosidade de uma estrela e se tivéssemos que apontar o crédito disto para alguém, invariavelmente o nome que todos vão apontar como consenso é o de Chris Claremont. 

Seja em sua parceria com John Byrne, seja voando solo, em seus altos e baixos, o autor definiu a cara que o título teria nos anos seguintes e talvez, para sempre. É em seu período no título que os "homens-x" se afastam dos tropes de um quadrinhos de super heróis e passam a ser sobre algo... maior. 

O arqui-inimigo dos Vingadores podem ser vários, de Thanos a Kang. Do Homem-Aranha: Venom, Octopus, o Duende Verde. Do Capitão América: Caveira Vermelha, Zemo, etc. Quando voltamos nossos olhos para os Homo Superior, no entanto, estas linhas ficam um pouco mais nubladas. Inicialmente, esse papel era de Magneto, mas na fase de Claremont, o mestre do magnetismo ganha nuances e profundidade e o que era um vilão caricato, com longos discursos sobre como ele era "maligno", se torna um outro polo ideológico, se contrapondo a Xavier. Daí vem a comparação com Luther King e Malcolm X. 

Já no início de suas quase duas décadas escrevendo títulos "X", Claremont pega o título, que vinha de vendas baixas, portanto com o editorial aberto a tentar abordagens menos tradicionais, e insere idéias que parecem subversivas mesmo sob o olhar contemporâneo. A Fenix e posteriormente a Fenix Negra. O confronto inicial com a Tropa alfa. Os primeiros confrontos com os aliens da Ninhada. O Clube do Inferno e todos os demais elementos dos quais falo mais adiante. As poderosas metáforas sobre alienação, a busca por pertencimento e reconhecimento social e os riscos do poder absoluto. 

Voltando à pergunta feita no começo deste texto, este elemento notável dos mutantes, não apenas se comparados com o resto do panteão da Marvel mas mesmo da concorrente DC, é um dos motivos pelos quais decidi mergulhar nas 4 décadas de lore dos x-títulos.

Uma segunda resposta seria: porque eu gosto de substância, mesmo em minha arte escapista e gosto do tom político que o gibi sempre tentou, em níveis variados de sucesso, ter. Uma vez estabelecido que os gene-X eram uma metáfora para as minorias do nosso mundo, era difícil não injetar mensagens políticas mesmo nos momentos mais "super heróicos" e descerebrados destas criações.


A terceira resposta é a aberração que foi a forma como a Disney tratou esse lore riquíssimo depois da aquisição da "casa" de Lee e Kirby, no final dos anos 90. A editora beirava a falência, nunca tendo se reerguido depois do fiasco da bolha de quadrinhos da ultima década do século XX, e terminou sendo adquirida pela mega-corporação do Mickey Mouse, mais interessada de fato naquelas criações como fonte de licenciamento para outras mídias do que nos quadrinhos em si (o que, de fato, é a principal fonte de renda vinda da Marvel hoje. Entenderam porque tudo que é publisher hoje em dia quer porque quer o seu "universo cinematográfico" e porque temos um boom de séries de tv, live action ou animadas, em exibição atualmente?). Com os anos 2000 e o sucesso de adaptações cinematográficas baseadas em HQs, os executivos viram uma fonte de lucro em potencial e decidiram surfar na onda. Se por um lado, isto tornou os últimos 20 anos algo fascinante para os Vingadores e o Homem Aranha, por outro, sofreram aqueles que não podiam ser licenciados da mesma forma, em especial os X-Men e o Quarteto Fantástico (vendidos para a Fox).

O time de Reed Richards, de fato, terminou por um tempo na geladeira, sendo trazido de volta só depois que a aquisição da Fox já era uma realidade. Mas os mutantes eram grandes demais para serem encostados. Não que a "Casa das Idéias" não tenha tentado. O que, novamente, nos traz ao meus fascínio por estas criaturas. Párias e odiados dentro do universo ficcional em que vivem, agora eles também eram mal vistos pelos empresários que eram proprietários de sua imagem. Bem-vindos à "década perdida" dos X-Men. Os títulos não podiam ser cancelados, mas os personagens eram periferia dentro do universo. Já na década de 2010, a ordem editorial era transferir este papel de "humanos nascidos com poderes especiais" dos gene-X para os Inumanos, o que, simbolicamente, pode ser descrito como.... "problemático"... para dizer o mínimo. Os Inhumans são uma raça alienígena engenhada pelos Celestiais (resumindo bastante, imaginem um bando de deuses aliens), portanto, sendo frutos de um tipo de "eugenia cósmica". Substituir os mutantes pelos filhos de Attilan era algo que, metaforicamente, soava mais perigosamente perto de "gentrificação racial" do que a editora gostaria, o que explica porque essa transição sempre foi mal vista por criativo e fãs e feita sempre de uma forma ultra delicada. Por fim, tais planos foram por terra com a já citada compra da Fox (porque, afinal, monopólios são bons para nós, nunca nos esqueçamos disto. Corporações são suas amigas, kemosabe) e depois de longo e tenebroso inverno, os filhos de Xavier tem seu lugar de volta.

Por causa dos fatores acima, além do fato de que os x-comics sempre tiveram nomes interessantes ligados a eles (Claremont, Romita Jr., Morrison, Fraction, Brubaker, Peter Milligan, Jonathan Hickman), era meio inevitável que eu acabasse voltando meus olhos para esse lore. 

Respondido?

Este era para ser um texto começando a falar de minhas impressões sobre as x-leituras recentemente feitas (40 edições de Uncanny X-Men lidas, 40 de New Mutants e 9 de X-Factor) mas acabou ficando grandinho demais então, vai virar uma reflexão a parte. 

No próximo, falo sobre os gibis em si. 

Okay?

Okay. 

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