Eu confesso que eu não sabia bem o que esperar quando, depois de passar por dezenas e dezenas de edições individuais de X-Men, New Mutants e X-Factor, cheguei no primeiro evento mutante sob o comando de Chris Claremont: O Massacre de Mutantes.
O arco é um clássico inquestionável dos personagens, já tendo sido republicado em tudo que é forma, lá fora e aqui no Brasil. Meu primeiro contato com a história já foi num encadernado especial lançado pela Abril no final dos anos 90, reunindo toda a storyline em um lugar só. "Massacre..." acontece simultaneamente nos 3 títulos mutantes citados acima, além de reverberar nas HQs do Demolidor, Thor e do Power Pack (ou Quarteto Futuro). De memória, no entanto, eu lembro que, por mais que meu eu adolescente tenha se sentido satisfeito ao terminar a leitura, confesso que também havia.... não sei se "frustração" era a palavra. Talvez "confusão" represente melhor meus sentimentos naquele momento.
Na minha cabeça, eventos de quadrinhos tinham uma estrutura bastante segura: você tem o título principal, normalmente uma mini-série, onde o corpo da história se desenrola, e os tie-ins, onde os títulos mensais já publicados reagem e se adaptam às consequências daquela saga. E o Massacre de Mutantes é..... "quase" isso.
Publicada em 1986 e abrangendo as edições 210 a 214 de UXM, 9 a 11 de X-Factor, 46 de New Mutants, 238 de Daredevil, 373 e 374 de Mighty Thor e 27 de Power Pack, a história, concebida por Claremont e Louise Simonson, mostra a comunidade mutante reagindo ao tal "massacre" do título, onde os Morlocks são caçados e exterminados por um exército mutante conhecido como os Marauders, agindo sob as ordens de uma figura misteriosa.
Reli as edições compilando o evento pela primeira vez em anos e desta vez, tendo lido também os números prévios dos títulos mutantes que convergiam para este momento, o que me deu certa perspectiva que minha visita original ao "Massacre" não tinha. E, mais importante, entender o papel da saga dentro do cenário que o autor queria criar em UXM.
Novamente: eventos de quadrinhos tem começo, meio e fim. Crise nas Infinitas Terras, Guerras Secretas, Guerras Secretas II. Normalmente, os estragos sofridos nestas tramas reverberam por alguns meses nos títulos principais, mas salvo alguma mudança grande aqui e ali, esse é o ciclo vital de tais arcos. Não no caso do "Massacre". Dizer que ele é um evento de "cauda longa" seria um eufemismo.
Lembrando que ele é o primeiro destes eventos de resolução de plot lançados anos antes pelos criadores, o que é uma marca deste momento nos discípulos de Xavier. Claremont é um mestre em desenvolver storylines de longa duração, lançando tramas que só viriam a ser concluídas - e satisfatoriamente concluídas, devo ressaltar - meia década depois. Os Morlocks aparecem pela primeira vez na edição 169, para se tornarem o motor da história nesta aventura, publicada 40 números, mais de 3 anos depois.
De volta àquela sensação de confusão inicial: É um arco onde os vilões não são particularmente desenvolvidos. Os Marauders matam Morlocks porque a) esta é a ordem recebida e b) eles gostam do que fazem. A violência não é exatamente gráfica, mas texto e arte sabem vender seu peixe, garantindo que a tensão permaneça alta o tempo todo. O que é apenas "sugerido" aqui já é poderoso o suficiente para garantir que possamos entender o quanto os riscos são altos. Além disso, nenhum lado termina como "vitorioso". Os vilões são derrotados mas fogem para "lutar num outro dia". Mas os heróis? Eles terminam quebrados, com 3 dos seus membros inutilizados (Noturno e Colossus em coma, Kitty aprisionada em seu estado etéreo). Warren termina tendo que optar por amputar suas asas ou morrer de infecção generalizada. O Power Pack e os NM não saem com feridas físicas, mas, novamente, estes times formados por crianças são expostos a horrores que vão lhes marcar para sempre. Mesmo Thor não sai sem cicatrizes do evento, e tudo que pode garantir aos mortos é um "funeral" digno. O que nos traz ao ponto principal do evento: os heróis FALHAM. Eles salvam alguns Morlocks, mas uma fração pequena quando comparada ao número de mortos, entre eles mulheres e crianças.
O que nos ajuda a responder uma pergunta atrelada a tal confusão da qual venho falando: sobre o que é o "Massacre de Mutantes"? Chris Claremont é um escritor que já provou ser digno de nossa confiança neste momento, depois de quase uma década escrevendo UXM e NM, então, se os vilões são rasos, provavelmente é porque o autor não quer que prestemos atenção a eles. E de fato, o foco da história não é na dicotomia "heróis X vilões". Quando os combates acontecem, boa parte do estrago já está feita.
Um momento da trama, uma passagem que poderia passar despercebida, me ajudou a entender sobre o que o criativo queria falar.
Os personagens descobrem que os habitantes dos esgotos estão sendo exterminados e, diante desta revelação absurda, Wolverine questiona Ororo "a gente se envolve?".
"A gente se envolve?". Imaginem isso: diante do extermínio de qualquer minoria, o segundo em comando de uma organização de defesa deste grupo específico chega para seu líder e pergunta a mesma coisa. Percebem o bizarro? É uma questão de humanidade, não apenas de super-heroísmo. Que em algum momento Logan tenha sentido a necessidade de perguntar se o grupo se envolveria, principalmente considerando que Ororo É, de fato, a líder dos Morlocks, é algo notável. O quão distantes estes "heróis" estão, a ponto de isso ser uma questão? Tempestade responde com um "é claro", mas ainda assim, Deus e o demônio vivem nos detalhes. Um dos principais temas deste arco é o papel dos líderes mutantes. Liderança num geral. O que é ser, de fato, um líder? Daniela, Scott e Ororo, os líderes dos 3 times principais, são levados ao seu limite na guerra contra os Marauders. Mesmo Alex, o "líder" do Power Pack, termina inseguro. Magneto termina considerando uma aliança com o clube do inferno. Força através dos números. Os paradigmas precisam ser revistos
Nem tudo é horror: o time principal termina com 3 novas adições em suas fileiras: Psylocke, Cristal e Longshot (inclusive, a mini em que ele aparece pela primeira vez também vai ganhar texto aqui, logo, logo). Mas no geral, os heróis terminam quebrados, suas convicções em crise e seu papel diante da nova realidade enfrentada, em dúvida. E nesse momento, a tal confusão se desfez, porque ficou claro o que os autores queriam. O motivo da estranheza que o "Mutant Massacre" causa vem de uma confusão do leitor e não da inabilidade dos artistas no comando: a história é menos, de fato, um evento e mais um marco na jornada, um ponto de ruptura. Começamos este momento específico da HQ achando que estávamos diante de um gibi de super heróis, de uma saga de tons aventurescos quando, na verdade, estes 17 anos de Chris Claremont nos x-gibis é uma missão de resgate e, mais que isso, uma saga de origem.
De tempos em tempos, roteiristas entendem que o resto da Marvel é formado por super-heróis mas os mutantes são uma besta completamente distinta. Como eu já disse antes, a equipe criativa do quadrinho tem injetado política e "mundo real" desde o final da fase Claremont-Byrne, com a introdução de elementos como os próprios Morlocks e o Hellfire club. Mas o fato de ser um gibi da Marvel, introduzido num contexto voltado a adolescentes, poderia nos levar a crer que, apesar do tom punk, X-Men ainda era o que inicialmente pretendia ser em sua origem nos anos 60: algumas alegorias mas, no geral, escapismo. A fase de Claremont é uma tentativa de resgatar os personagens dessa postura e transformá-los em símbolos de fato e para isso, a lógica de "heróis e vilões" precisa ser superada
Num artigo científico que li recentemente, enquanto pesquisava para a confecção deste texto, Neil Shymisnky afirma que os X-men durante anos adotaram o discurso de líderes e funcionaram como alegoria para minorias em geral mas que, de fato, o grupo pode ser descrito como "contra-revolucionário", servindo para garantir a continuidade do status quo dos humanos diante de possíveis ameaças de grupos de mutantes subversivos.
Claremont, portanto, tenta recondicionar estes símbolos e este discurso e de fato, torna-lo parte da estrutura fundamental deste universo. Por isso a discussão de lutas de classe no gibi. Por isto o distanciamento da fase de uniformes coloridos. Por isso o afastamento da dicotomia simplista de bem e mal. Não era apenas uma questão de colocar a Tempestade de moicano para adotar a indumentária punk mas transformar o título em algo o mais contra-cultural possível. A Irmandade de mutantes trabalhava do lado da lei. Os heróis da "vida real" são líderes políticos que não hesitaram em adotar a desobediência civil como arma, sendo chamados de subversivos e anti-´patriotas em mais de uma vez e não raramente, terminando mortos por defender tais convicções. Neste momento, os heróis terminam, como parte da ação dos inimigos, caindo em desgraça sob o olhar público, mas futuramente, no arco de Genosha, eles vão, de fato, por escolha própria, desafiar a soberania de uma nação para defender a comunidade mutante local. O papel se inverte e os heróis se tornam, para todos os efeitos legais, os "vilões", dispostos a trazer o sistema abaixo em prol da sua causa.
O "massacre de mutantes" e a pesada derrota sofrida na série é o primeiro passo fundamental nessa direção, mostrando aos heróis que sua alienação e a tentativa de funcionar "segundo as regras" estabelecidas vai resultar apenas em morte, real ou metafórica. No nosso mundo, todas as minorias já tentaram em algum momento, funcionar "dentro do sistema". Aquilo de "quer ser viado, seja dentro do quarto, não na frente de todo mundo".
Em sua série documental Killer Mike abre o episódio de estréia com uma das frases mais potencialmente desastrosas da história: "a segregação racial nos EUA foi ruim, mas...." mas passa os próximos minutos esclarecendo que a única coisa boa da severa divisão racial legalizada que houve durante a primeira metade dos séc. XX é que, neste contexto de estabelecimentos comerciais que só poderiam atender negros quando geridos por negros, o dinheiro acabava circulando dentro daquela comunidade, o que gerava um contexto auto-suficiente e, dentro das limitações da época, estável. Isto permitia, por exemplo, o surgimento de oásis como Tulsa, trazida aos olhos públicos na série de Watchmen. A cidade do estado de Oklahoma começou a atrair empreendedores e comerciantes negros e a se tornar um polo econômico local da comunidade, em virtude do enriquecimento local depois da descoberta de poços de petróleo nessa área. Enriquecimento que também atingiu algumas famílias negras que ali residiam. Essa prosperidade e a predisposição a "jogar dentro das regras do capitalismo' não salvou a comunidade local quando os brancos racistas usaram um episódio isolado como desculpa para uma onda de massacre que, segundo notícias, pode ter resultado em dezenas ou centenas de mortos, onde os negros foram as principais vitimas e, numa distorção de justiça típica - não apenas daquela época -, considerados responsáveis. Malcolm X afirmava que "não existe capitalismo sem racismo". Indo mais longe, não existe capitalismo sem racismo, sem homofobia, sem machismo, sem xenofobia.
Mesmo na ficção, Blade Runner e Matrix mostram que a convivência pacífica do diferente e de qualquer alteridade que possa ameaçar o hetero-patriarcado dentro do contexto capitalista NÃO é uma opção, sendo tolerada até um certo ponto.
Obviamente, existe um limite até onde o criativo do título pode levar o gibi nessa direção, mas ninguém pode dizer que o time responsável não forçou essa barra até onde deu. Não existiria "New X-men" sem a fase de Claremont, da mesma forma que não existiria a fase atual, sob o comando de Jonathan Hickman, sem esse período como guia. Momentos em que os artistas no comando da série podem abandonar a estética super heróica e admitir que os mutantes são - e deveriam ser - "mais que isso". São experimentos fadados a falhar, porque existem num contexto de mídia de massa voltada para o publico médio, dentro de uma corporação que, como todas, é fundamentalmente conservadora. Mas, novamente, é algo que existiu e sorte nossa que estes momentos existam.
Eu oscilei entre títulos para esta seção do blog. Durante um tempo, confesso que tinha carinho pela sonoridade lisérgica de "Set the controls to the heart of X". Mas de fato, estamos numa jornada. Krakoa atualmente é esse símbolo de uma soberania mutante, de fato criando ondas e afetando o mundo ao seu redor, não mais se adaptando às regras do opressor, mas ditando novas regras, sem se preocupar com o quão confortáveis elas vão soar ao ouvido dos humanos. O arco que comento neste texto é uma de suas pedras fundamentais.
"O massacre de mutantes" é a derrota essencial, aquele choque de realidade que os heróis precisavam para abandonar a própria letargia. A época de lutar entre si acabou. O inimigo real paira sobre heróis e vilões, esperando para exterminar ambos. Uma era sombria espera os mutantes e agora, cientes disso, só lhes resta mudar e adaptar-se a elas ou morrer. Seguir lutando, no entanto, oferece sua cota de riscos. Sobreviver demanda se tornar algo diferente, melhor e para isso, era fundamental estabelecer o papel que estes personagens pretendiam exercer e, no processo, o que eles NÃO queriam ser.
Claremont acreditava que a figura do "super herói" não era o bastante. Era hora dos X-men de fato, abandonarem velhos paradigmas confortáveis e se tornarem algo superior.
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