quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Twin Peaks S01e00 - Pilot: "what goes around comes around. Round and round"

Antes de Westworld, antes de Lost, BSG, Breaking Bad, Babylon 5. Antes de The Wire, The Sopranos e mais algumas outras séries blockbusters. Antes de ilhas misteriosas, homens que são o perigo, "violentos prazeres que tem violentos finais", e outras questões igualmente perturbadoras, a pergunta que fez o público norte-americano (e não só ele) coçar a cabeça ansioso em busca de respostas foi: Quem matou Laura Palmer? 



Os mais velhos lendo esse texto podem comprovar: parte integral do domingo, pelo menos por um período, era esperar pela exibição da série, logo após do Fantástico. E uso esse exemplo só pra evidenciar o sucesso que a série fez. Numa época pré internet, um negócio desses atingir o publico fora dos EUA dessa forma é algo digno de nota. Claro que, já tendo visto a série inteira, eu sei que o mistério sobre o assassinato da filha de Leland e Sarah Palmer é só o começo de algo muito mais sinistro, mas....first things first.

Twin Peaks. Duas temporadas, uma com 8 e a segunda e final (well....) com 22 episódios, totalizando 30 ep., exibidos entre 90 e 91 e com mais um filme, "Fire Walk with me: the last days of Laura Palmer", de 92. O programa foi criado por Mark Frost e David Lynch, após um projeto fracassado de uma adaptação da biografia "Goddess", focado na vida de Marilyn Monroe, ter sido rejeitado pelo estúdio responsável. A idéia era registrar a vida "real" do povo americano, com o assassinato de Laura em primeiro plano apenas no inicio da série e, gradativamente, mudar o foco pro dia a dia da população da cidadezinha que serve de título pro show. Obviamente as coisas não seguiram exatamente dessa forma, ou pelo menos não como pretendido, originalmente: Lynch foi obrigado, pelos executivos da ABC à revelar a identidade do(a) assassino(a) de Laura e, após isso, abandonou a série.  


Curiosamente, durante esse período, realmente o show passou a ser exclusivamente sobre o cotidiano local em Twin Peaks.....e isso foi um erro monstruoso, corrigido com a volta de Lynch pra série pros dois episódios finais e com o subsequente longa produzido no ano seguinte.

FBI Special Agent Dale Cooper: You know why I'm whittling?
Sheriff Harry S. Truman: Okay, I'll, I'll bite again. Why are you whittling?
FBI Special Agent Dale Cooper: Because that's what you do in a town where a yellow light still means slow down, not speed up.

Vamos tirar uma coisa do caminho de uma vez: Twin Peaks é uma trama de assassinato, mas que, ao invés de usar o formato de procedural policial, prefere brincar com os tropes e clichês de soap operas norte-americanas e aqui eu faço uma pausa - Se vcs acham que as novelas brasileiras e mexicanas são terrivelmente escritas e com atuações que beiram a tortura (e são), creiam-me: vcs precisam tentar as novelas americanas. Nossas novelas pelo menos TENTAM ter uma estrutura minimamente coesa a ponto de não ofender demais a inteligência de quem está assistindo. Mas as americanas? oh boy.
De novo: os mais velhos vão lembrar que Dallas já foi exibida aqui, durante os anos 90. Se não me falha a memória, "Dynasty" tb ganhou versão dublada exibida por algum canal de TV aberta. Pessoal que assistia Friends e lembram das piadinhas envolvendo o Dr. Drake Ramorray, personagem de Joey, dentro da sitcom? Naquele nível. É nego supostamente morrendo pra aparecer viva uns episódios depois, justificando o desaparecimento com um coma e uma operação plástica para mudar completamente o rosto. é filho perdido que convenientemente aparecer de volta numa virada de circunstancias que beira o milagre. Não vejo novela faz um tempo mas, se me lembro bem, a unica novela nacional ruim, mas ruim mesmo, mas eu quero dizer, e me perdoem se me repito, ruim NESSE NÍVEL era aquela dos mutantes da Record. Mas novamente, não sou exatamente um fanboy de novelas (parei naquela uma da Nazaré Tedesco). O ponto é: romances EXTREMAMENTE, DIABETICAMENTE românticos, intrigas rocambolescas e uma capa de breguice grossa a ponto de quase poder ser partida ao meio com uma faca. É nesse ambiente supostamente de sonhos que Lynch e Frost vão contar sua trama, ao ponto de que o clima onírico desse tipo de formato vai ser corrompido até o sonho se transformar num pesadelo lisérgico. Começando com um cadáver encontrado a beira de uma praia. "Wrapped in plastic"


The Log Lady: Welcome to Twin Peaks. My name is Margaret Lanterman. I live in Twin Peaks. I am known as the Log Lady. There is a story behind that. There are many stories in Twin Peaks - some of them are sad, some funny. Some of them are stories of madness, of violence. Some are ordinary. Yet they all have about them a sense of mystery - the mystery of life. Sometimes, the mystery of death. The mystery of the woods. The woods surrounding Twin Peaks. To introduce this story, let me just say it encompasses the all - it is beyond the "fire", though few would know that meaning. It is a story of many, but begins with one - and I knew her. The one leading to the many is Laura Palmer. Laura is the one.


Quando eu falo de intrigas rocambolescas em Twin Peaks, eu não estou brincando: Laura, que está morta, namorava Bobby que a traía com Shelly, que é esposa de Leo, mas o traía com ele. A mesma Laura que, por sua vez, traía Bobby com James que era um bom moço e não a traía com ninguém.
Shelly, por sua vez, trabalhava no Double R Diner, restaurante de propriedade de Norma, esposa de Hawk e que tinha um caso com Ed, dono do posto de gasolina local e que é casado com a insuportável Nadine.  Percebem? E eu poderia preencher mais ums dois parágrafos só com gente que é casada com gente mas tem um caso com mais gente casada que por sua vez....... E essa é uma estrutura típica de novela. Mesmo um assassinato não é um elemento tão estranho assim nesse tipo de folhetim. Paulo Autran afirmava que havia parado de atuar em novelas de TV pq as tramas podiam ser resumidas em basicamente 2 tipos: "quem mata quem e quem vai casar com quem". No entanto, mesmo com todos esses elementos geradores de conflitos, esse tipo de estrutura narrativa ainda DEVERIA ser um lugar pra onde gostaríamos de ir, por sempre, apesar de aos trancos e barrancos, retratar uma vida ideal, em que no final, o mocinho termina com a mocinha e o vilão morre ou é preso (ou os dois). E é aí que mora a magia de Twin Peaks. 

FBI Special Agent Dale Cooper: Who's the lady with the log?
Sheriff Harry S. Truman: We call her the log lady.

Enfim, a série abre mostrando o grande protagonista do show: Twin Peaks, a cidade. Vemos as florestas, a placa de entrada e a serralheria dos Packard, um dos eixos de sustentação financeiros da população residente. em seguida, vemos um dos donos do local, Pete, saindo pra uma pescariazinha matinal inocente, quando de repente, não mais que de repente.



E pronto...... nada ali vai ser como antes. Num podcast sobre a série, o Twin Peaks rewatch, um dos apresentadores destaca como parece que, na real, não estamos vendo o piloto de uma série, mas que caímos no meio de um programa com anos de história e tramas e a sensação é bem essa. Tal qual incêndio numa floresta, a notícia da morte de Laura vai se espalhando com uma velocidade absurda e, a partir da reação daquelas pessoas, vamos tomando ciência da importância da garota naquela comunidade. O comércio para, as aulas são canceladas, vemos pessoas de todas as idades absolutamente chocadas. Uma forma bastante inteligente de ambientar o público que, mesmo sem saber como funciona aquela dinâmica de relações, pelo menos se vê apto a entender que o assassinato vai deixar cicatrizes profundas naquele agrupamento de pessoas. A estrela da cidade, o orgulho local, a principal jóia de Twin Peaks, a namorada que todos os adolescentes queriam ter, a amiga que todas queriam ter e a filha ideal para quase todos os adultos dali. Não apenas morta mas morta violentamente. E estuprada, repetidas vezes. A partir da informação da morte da guria, somos apresentados à "fauna local": o casal Sarah e Leland Palmer, pais dela. Leland, trabalha para Benjamin Horne, figurão local e dono de quase toda a cidade, exceto pela área onde fica a Serralheria dos Packard, de propriedade de Josie Packard e administrada por Cat e Pete Martell. Na escola, conhecemos Bobby e Mike, dois adolescentes rebeldes, Donna e Audrey. Bobby, namorado de Laura na época em que o crime ocorreu. Donna, a melhor amiga da garota e Audrey......well....Audrey não era particularmente próxima de Laura, mas vale a menção. E ela é filha de Benjamin e, ela própria, um espírito particularmente inquieto. Abrindo o escopo ainda mais: temos os já citados Shelly, esposa de Leo, Ed, marido de Nadine e Norma, dona do restaurante local. Investigando o caso, temos o xerife Truman e seus ajudantes deputy Hawk e o sensível Andy, que por sua vez, tem um namorinho com Lucy, secretária da delegacia (e dona de uma voz infantil a ponto de eu desconfiar de qualquer homem que, após ouvi-la falar, ainda tenha intenções de entrar em conjunção carnal com a moça). Acho que é mais ou menos isso. A morte de Laura é um dos dois catalisadores da gradual desintegração da estrutura novelesca da série, que vai se metamorfosear pra algo mais.....sinistro. Pq, lá pelos 30 minutos do ep. piloto, somos apresentados ao segundo elemento responsável por esse elemento mercurial do roteiro, e o temo mercurial aqui é absolutamente preciso, considerando a quem ele se refere: o agente do FBI Dale Cooper. 



FBI Special Agent Dale Cooper: Diane, 11:30 a.m., February Twenty-fourth. Entering the town of Twin Peaks, five miles south of the Canadian border, twelve miles west of the state line. I've never seen so many trees in my life. As W. C. Fields would say, I'd rather be here than Philadelphia. Fifty-four degrees on a slightly overcast day. Weatherman said rain. If you could get paid that kind of money for being wrong sixty percent of the time, it'd beat working. Mileage is seventy-nine thousand three hundred forty-five, gauge is on reserve, riding on fumes here, I've got to tank up when I get into town. Remind me to tell you how much that is. Lunch was, uh, six dollars and thirty-one cents at the Lamplighter Inn, that's on Highway Two near Lewis Fork. That was a tuna fish sandwich on whole wheat, slice of cherry pie, and a cup of coffee. Damn good food. Diane, if you ever get up this way that cherry pie is worth a stop. Okay. Looks like I'll be meeting up with the, ah, Sheriff Harry S. Truman. Shouldn't be too hard to remember that. He'll be at the Calhoun Memorial Hospital. I guess we're going to go up to intensive care and take a look at that girl that crawled down the railroad tracks off the mountain. When I finish there I'll be checking into a motel. I'm sure the sheriff will be able to recommend a clean place, reasonably priced. That's what I need, a clean place, reasonably priced.

Cooper, chamado depois da aparição de uma segunda vitima que pode estar relacionado ao caso envolvendo Laura, é VISIVELMENTE um elemento fora do lugar nessa história. Amável ao extremo mas dono de uma presença impressionante (as nuances na cena do interrogatório de Bobby deixam claro que, apesar do sorriso constante - ou exatamente por causa dele - aquele não é um homem que vc quer zangado contigo). Culto, racional mas também extremamente impulsivo. Desde o primeiro momento podemos perceber como Dale parece desconectado daquele mundo (claro que só futuramente vamos descobrir o quanto). Ao encontrar a pista escondida dentro de uma das unhas de Ronnete (a segunda vítima), temos a certeza: o mesmo homem que matou Laura foi responsável pela tortura de Ronnie e por um assassinato parecido que precede ambos. 



Existe um serial killer solto em Twin Peaks e, como o agente do FBI lembra numa reunião com os habitantes da cidadezinha, "muito provavelmente é um de vcs ou alguém que vcs conhecem." Um outro momento de brilhantismo do agente é ao notar o detalhe na moto refletindo num dos olhos de Laura, outra situação pra mostrar ao público o personagem como o "herói" da trama. 

Devagarzinho, os primeiros suspeitos vão surgindo. Bobby, quase imediatamente descartado. James, que como já estabelecido, tinha um "lance" com a garota assassinada e que é o dono da outra metade do amuleto em formato de coração encontrado no local em que a filha dos Palmer foi torturada e morta. Leo, de quem, confesso, inicialmente suspeitei, por nenhuma outra razão além dele ser um gigantesco cretino. Dr. Jacoby, o psicólogo que Laura via, sem conhecimento dos pais dela e que, com certeza, sabe mais do que aparenta. Mas claro que, com o tempo, todos ali vão parecer culpados em potencial. Até o momento em que, talvez de forma demasiadamente tardia, Dale vá se dar conta de que o crime ali não é a coisa mais estranha que aquela cidadezinha aparentemente normal esconde. 



Alguns outros detalhes que me merecem comentário:
- A cena em que Sarah percebe que a filha morreu continua sendo uma das coisas mais perturbadoras de que me lembro.
- Eu nunca tinha notado isso antes, mas prestem atenção quando Sarah diz ouvir algo vindo do quarto de Laura e um dos policiais afirma ser só um agente investigando o dormitório. Guardem essa informação pra quando certos detalhes forem trazidos à tona.
- aliás, já tendo visto a série inteira e sabendo dos detalhes, não pude não notar como a morte da moça parece trazer à tona uma depressão que já estava lá há tempos. Talvez um sinal de que as coisas já não vinham sendo tão tranquilas quanto pareciam na casa dos Palmer?
- O cara sem um braço que sai do elevador quando Dale e Truman vão indo ver a autópsia do corpo da Laura? Outra figura que vai ser particularmente importante no futuro.
- Pra quem tá vendo a série pela primeira vez e já tem certeza de quem é o assassino, em virtude do comentário de James pra Donna de que "Bobby" já matou antes: percebam que, só nesse ep. aparecem duas pessoas com esse nome. E ainda tem mais um vindo e talvez, apenas talvez, esta "presença" vá afetar a forma como os senhores enxergam essa trama
- Cocaína nos pertences de Laura. A foto de Ronnete numa revista de garotas de programa. A cidade começa a dar sinais de que nem tudo é o comercial de margarina que aparentava inicialmente ser.


- Na minha cabeça, o plano é ir seguindo com esses textos sobre a série inteira, mais o filme e o livro "O diário de Laura Palmer" numa velocidade que me permita encerrar a cobertura de todo esse material o mais próximo possível da estréia, ano que vem, da season 03 da série. A periodicidade é aquela de sempre dos textos aqui do Groselha on the rocks, no caso, "quando Deus quiser". 

[taping a message to Diane]
Dale Cooper: Diane, it's 4:10 in the afternoon at the scene of the crime. Here's something we haven't seen before: a mount of dirt. Approximately a foot and a half in diameter. On the top is a gold necklace with a gold heart. Correction, half a gold heart. At the base of the mount of dirt is a torn piece of news print. Written with the words, which appear to be in blood: 'fire walk with me'.


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