Fazem pouco mais de 24 horas desde que li o derradeiro volume de 20th century boys (ou, pra ser mais preciso, o de 21st century boys) e eu ainda não sei muito bem o que pensar.
Inicialmente eu não tinha gostado e já estava preparando um texto bem menos simpático que este, com uma ou duas referências a LOST só pra dar o clima e tals.... mas confesso que a conclusão do mangá (22 edições da série principal com dois volumes que fecham a trama) ficou cravada na minha mente e tô cada vez mais gostando dela, conforme vou digerindo.
Publicada entre Setembro de 2009 e Abril de 2006, o mangá segue, já que citei o seriado da Ilha misteriosa de Cuse e Lindelof, a mesma estrutura de um mistério gigantesco girando ao redor das vidas de um grupo de pessoas. E tb, tal como Lost, a história é totalmente não linear, funcionando em pelo menos 3 épocas distintas: a infância de um dos núcleos de protagonistas, nos anos 70, os eventos principais, com esses mesmos personagens já adultos, na virada dos anos 2000 e uma década e meia depois.
Kenji, Yoshitsune, Otcho, Maruo, Keroyon e mais alguns amigos se reúnem na "base" do seu grupinho e, entre várias brincadeiras, criam um guia para uma história perfeita. Mais que isso, um livro de profecias a se realizarem dentro de alguns anos, onde um homem surgiria pra salvar o mundo de uma crise. Crise essa causada, secretamente, por esse mesmo "messias". Cortamos pra algum tempo depois e diversos incidentes bizarros que parecem seguir os eventos descritos nesse livro de profecias começam a ocorrer de fato, levando a morte de milhares de pessoas. Cabe a Kenji e a seu grupo de amigos descobrir quem teve acesso ao livro de profecias que apenas aquelas pessoas sabiam que existia e pq alguém estaria usando uma brincadeira infantil pra desencadear o fim do mundo.
Superficial? sim, sou obrigado. Eu não diria de forma alguma que a série se sustenta APENAS nos mistérios, mas eles são um elemento importantíssimo da história e adiantar tais desenvolvimentos da trama seria estragar a graça delas pra quem não leu.
Mas também não vou conseguir falar da história e do que gostei e não gostei sem alguns spoilers pesados então, pra quem não leu o gibi, é isso, fiquem por aqui, tchau e voltem quando tiverem lido.
.....sério, eu sei como a cabeça de vcs funciona, sempre tem um que, tipo, "Ah, eu sou um golfinho bonitinho, sou um floquinho de neve que não se importa com spoilers, spoilers me motivam a ler e bla bla bla", mas sério, se vcs souberem antecipadamente os eventos, grande parte do impacto da história vai se diluir.
pros que ficaram, já sabem que o que temos adiante é a mais pura chuva de....
......ainda aqui, crianças? Ok.
So........... Minha impressão final de 20th century boys é bem positiva, mas com ressalvas. Pra um mangá que recebe a quantidade de elogios que recebe, confesso que alguns probleminhas me incomodaram um pouco, como o excesso de conveniências de roteiro que surgem aqui e ali na vida dos personagens. Personagens que se encontram nos momentos e locais mais improváveis do planeta. Coisas do tipo. Por exemplo: na cena em que Kanna, exausta, decide aceitar carona de um grupo de estranhos que, coincidentemente, são praticantes de racha e tem um radio pegando a frequência da polícia no exato instante em que os vilões estão indo interceptar um aliado da moça. Manjam? e isso acontece BEM mais de uma vez no decorrer da história. Em Lost, dá pra aceitar isso de boa pq descobrimos que existe uma força ativamente interconectando a vida destas pessoas. Mas aqui? A não ser que aceitemos que é Deus tentando salvar a humanidade, por isso, inter relacionando a vida de todo mundo aqui, só nos resta admitir que é apenas uma falha por parte de Urasawa.
O que é uma pena pq o gibi tem varias qualidades absurdas. A arte do mangaká é linda, uma das mais bonitas e expressivas de que me lembro. E o autor sabe criar tensão. Devorei os últimos 8 volumes da série em menos de um dia, tamanha a ansiedade pra ver a conclusão da história. E além disso, há o equilíbrio entre a hq ser plot driven e character driven. Sim, os personagens as vezes são entortados tal qual as colheres de Manjoume e Uri Geller (quem leu sabe do que tô falando) pra narrativa fluir mas se, como eu afirmei acima, não se trata APENAS de um gigantesco "whodunnit" de proporções planetárias, é pq nos importamos com aquelas pessoas envolvidas. Sobretudo no caso da verdadeira protagonista da história, Kanna, uma adolescente de 16 anos elevada á condição de líder rebelde e inimiga pública nº01. Além disso, as histórias focando o dia a dia dos sobreviventes da praga liberada pelo "Amigo" são de cortar o coração. São raros os momentos em que o núcleo principal se permite um momento de fragilidade diante dos horrores testemunhados mas quando o baque vem, ele vem com força e o desespero também é compartilhado com os leitores.
Com relação ao final propriamente dito, ele tem acertos e erros. Se citei LOST anteriormente, agora vou referenciar o ultimo filme da trilogia do Homem Morcego de Nolan, The Dark Knight rises": cuidado com quem vc coloca na posição de herói. Ou messias.
Nestes complicados dias que vivemos, com sua cota de Bolsominions e Malafaias e Youtubers falando qualquer merda e ganhando a atenção de milhares de pessoas, podemos enxergar "20th century boys" como um grande cautionary tale a respeito do risco de dar voz as pessoas erradas e transformar farsantes em ídolos. O plano do "Amigo" só funciona pq, mesmo com os sinais claros de seu charlatanismo, as pessoas estão tão iludidas a seguir os ditames de qualquer um com certo dom de retórica que, como se estivessem isoladas no escuro, estão oferecendo a mão a qualquer figura de autoridade que pareça, ainda que ilusoriamente, saber o que está fazendo. Neste aspecto, loas para Urasawa pq ele tem as manhas de, em determinado momento, traçar paralelos entre a fé cega no "amigo" e a que os protagonistas, e nós por tabela, temos na messiânica figura de Kenji. As alegorias aproximando o guitarrista frustrado com uma imagem divinal estão lá pra quem quiser ver: o elemento de morte e retorno num momento de necessidade, o isolamento em determinado momento, em busca de iluminação (os 3 dias que Kenji passou nas montanhas chorando lembram os 40 dias de Cristo no deserto, ou as tentações que Buda sofreu enquanto meditava na floresta ou Odin preso ao freixo do mundo. O messias se isola e é martirizado pra voltar com o conhecimento a ser compartilhado com o mundo) e a subserviência deste ícone à uma força imaterial maior que ele próprio (Jesus servia à Deus e Kenji serve à arte, por meio da sua música). Mas este elemento vem junto de um certo pé atrás: considerando que toda a bagunça começou por causa da necessidade coletiva por um salvador, seria leviano acreditar que o misterioso guitarrista que surge do nada e vem balançando as estruturas de poder estabelecidas pelo falso messias é o verdadeiro libertador e abraça-lo instantaneamente. E Urasawa sabe disso, o que pode ser percebido pela forma como ele segura ao máximo a confirmação de aquele é realmente Kenji, ressurgido dos escombros dos eventos ocorridos na virada do século*.
Se o começo e o meio da história são muito bons, o final......é....................hã............altos e baixos.
eu disse que a revelação final não é APENAS o que sustenta a história mas isso não torna menos irritante a quantidade de vezes em que o autor segura a informação da identidade do vilão, onde alguém vai finalmente dizer quem ele é......apenas para cortar a cena para um evento ocorrendo simultaneamente em outro lugar. Também me incomodou um tiquinho como, depois de tudo que vemos no decorrer da série, Kenji acaba surgindo como um deus ex machina que enfraquece um pouco a importância dos esforços de Otcho, Yoshitsune e da própria Kanna. E, aliás: não fosse pelo ultimo volume de 21st century boys, os poderes psíquicos da moça teriam importância zero pra trama, não?
bom, se vcs estão lendo isso aqui, é pq já sabem: O "friend", o "amigo", o "tomodachi" é, na verdade Fukubei que é morto em determinado momento da história e substituído por um segundo misterioso homem. E esse homem é......um personagem cuja principal característica é ser "invisível" socialmente, sendo ignorado por tudo e todos, inclusive Kenji e os demais. Isso ocorre por um evento de infância ocasionado pelo líder do grupo de crianças e vai desencadear o desejo por destruir a Terra neste.
Ok....... Como já disse, inicialmente achei o final frustrante, até pq em momento nenhum vemos o rosto de Katsumata. Mas confesso que a conclusão da história foi crescendo e melhorando na minha cabeça. Enquanto as motivações dos dois homens atrás da máscara do "amigo" ainda me soam confusas, admito que a revelação do segundo "tomodachi" já é algo que gosto, inclusive com a não revelação do seu rosto me soando algo bastante esperto por parte do mangaká. No único momento em que somos apresentados a seu rosto, descobrimos que este fez operações plasticas pra ficar parecido com o Friend original, Fukubei. Katsumata nunca "teve um rosto" durante a infância e faz todo sentido que ele tenha continuado assim pelo decorrer da vida, inclusive negando a nós, a possibilidade de conhecer suas feições originais. O rosto do menino é a mascara de national kid que usa enquanto crianças e a do tomodachi, quando adulto. O máximo que nos é concedido (e a ele próprio) é um nome que, pra todos os efeitos, não significa nada pra ninguém lendo, mas que é, ao menos, um reconhecimento de algo próximo a uma identidade sendo concedida para o garoto.
Corajoso, pra dizer o mínimo. E até mais estruturado, em termos de desenvolvimento de personagem, que no caso de Fukubei, cujas motivações pro extermínio global planejado nunca me pareceram sólidas o suficiente.
No final 20th century boys tem sua cota de problemas mas termina como uma experiência bastante satisfatória. Vai deixar saudades.
Ainda sobre:
* confesso que eu fiquei um pouco frustrado, inclusive, quando é confirmado que o misterioso andarilho é mesmo Kenji, já que pensei que seria revelado ser o "Amigo" ressuscitado. Portanto, sendo um elemento de anti-clímax e crítica ao próprio leitor vendo isso e, provavelmente, naquele momento, pronto pra abraçar a figura como o "herói da história que voltou para salvar o mundo". Mas, sendo justo: o efeito disso seria devastador pra gente e mais ainda praqueles personagens então, vou simplesmente aceitar que eles passaram por sua cota de sofrimentos pessoais e admitir que mereciam o final feliz.
- Boy, eu sou uma bitch pra metalinguagem, então, adorei os personagens mangakás que aparecem no decorrer da história, lembrando o quanto, PRINCIPALMENTE em momentos de crise, são as histórias que vão nos oferecer alívio, escapismo e esperança. Não é pra menos que o Superman surgiu á luz da crise da bolsa de 29 e pouco mais de duas décadas depois do final da primeira guerra mundial. E não é pra menos o boom de filmes de super heróis atualmente, à luz do 11 de Setembro e das sinistras consequências sociais e políticas da derrubada das Torres Gêmeas.
- coincidência divertida ter lido esse gibi tendo, dois dias antes, maratonado Stranger Things. As duas séries tem elementos parecidos que remetem tanto à Spielberg (pensem em "Goonies" e "E.T".) quanto à Stephen King ("Stand by me", "It" e, obviamente, "The Stand").
- coincidência divertida ter lido esse gibi tendo, dois dias antes, maratonado Stranger Things. As duas séries tem elementos parecidos que remetem tanto à Spielberg (pensem em "Goonies" e "E.T".) quanto à Stephen King ("Stand by me", "It" e, obviamente, "The Stand").
- O trabalho de ambientação desse gibi é algo de impressionante, principalmente pra alguém como eu, que gosta da cultura japonesa mas não tinha ciência do impacto de coisas como o glam rock e os movimentos culturais dos anos 60 e 70 no país.
- Pra quem quiser ler um pouco sobre a importância das profecias de Nostradamus e dos mitos apocalípticos cristãos na cultura japonesa (dois elementos fundamentalmente importantes em 20th century boys), deixo esse texto bacana aqui.
- Pra quem quiser ouvir, Urasawa gravou uma versão de "Bob Lennon", a música que "salvou o mundo".
- E claro, como não poderia faltar....
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