quarta-feira, 31 de agosto de 2016

"We're a happy family": This damned band #1 a #6




"Surrender"


Existem pelo menos 3 possíveis leituras (ou macro-temas, se preferirem) permeando as páginas de "This Damned band", hq publicada pela Dark Horse ano passado e que conta com Paul Cornell no roteiro e Tony Parker na arte. 
A primeira é como "sátira sócio-histórica" que, tal qual o mockumentary "This is Spinal Tap", mostra um grupo de documentaristas acompanhando uma mega banda dos anos 70 em toda sua jornada orgiástica de excessos. Eu chamo de "sócio-histórica" pq as piadas não são apenas com os tropes e clichês associados a uma banda de rock (de forma mais ou menos apropriada, dependendo da banda de que estamos falando) mas também com os elementos ridículos da época em que a história se passa, desde a hippie eternamente prisioneira do "sonho" e dos conceitos de mundo melhor concebidos nos anos 60 até aquela sensação de niilismo para as massas que surge com o final da década e aproximação dos anos 80, época famosa por sepultar o sonho da geração flower power sob toneladas de cocaína, laquê e blusas com enchimento nos ombros.


A segunda leitura possível é como uma alegoria sob o poder das histórias, tema querido deste blog. Mas com um twist: dessa vez, a crítica é sobre o perigo inerente contido nas narrativas, contos e mitos que construímos coletivamente e da mesma forma propagamos pela eternidade.
A terceira, é uma crítica a um conjunto de valores masculinos que passaram a ser discutidos e problematizados nas últimas décadas, feita através de um dos maiores símbolos de "macheza" já concebidos pela cultura pop: a vida de um rockstar (de objetos de palco e decoração do local onde estão gravando, passando pelas onipresentes guitarras e não esquecendo das espadas penetrando o demônio no logo da banda, tudo passa por símbolos fálicos). 


Sobre a trama: sabem todas as lendas ligando bandas como Led Zeppelin, Kiss, Ac/Dc, entre outras, com o demônio, o lafranhudo, o pé cascudo, o tinhoso, o capiroto, etc, etc, etc...? 

E se tais histórias fossem verdadeiras? 

"Let the music be your master"

Começamos a primeira edição sendo introduzidos a nossos protagonistas: Justin, Alex, Colin, Bob e Kev, membros da "the hottest thing of rock" que vcs puderem pensar: MotherFather. Estamos falando de Led Zepellin big, ok? Rolling Stones big. Pink Floyd no seu momento de proporções mais "Kaijuescas". Cheap Trick no Budokan big (não coincidentemente é na lendária arena/estádio japonesa que a banda está se apresentando quando a hq começa). 



Além deles, tb conhecemos Browley, o manager do grupo e as groupies, elemento indispensável quando pensamos em grupos de rock, lideradas por Summerflower

A história abre com o já citado show no Japão e o grupo de filmmakers apresentando os membros da banda: descobrimos o ego gigantesco ainda que ligeiramente inseguro de Justin, único membro não original da banda. Colin, o fundador e a epítome do "gênio amargurado" (ainda que escondendo isso sob uma montanha de postura). Bob é o mais pé no chão da banda, mas quando vc tá inserido num monumento das proporções do grupo, isso não quer dizer nada. Alex é um womanizer asqueroso e Kev... well... Não sei dizer se todos os membros do MotherFather são inspirados em figuras célebres do gênero. Enquanto Justin e Colin são visivelmente Plant e Page e Alex é idêntico à Bun E. Carlos, Kev e Bob me parecem mais personificações de clichês associados ao estrelato que reinterpretações de alguém, mas posso estar errado. 

Bun Carlos
As coisas começam a dar errado quando após o consumo de doses obscenas de cogumelos alucinógenos, o grupo se vê diante de um fã inusitado: o capeta em pessoa. Os eventos desse dia são interpretados pelos rapazes como fruto da lisérgica trip em que se enfiaram. No entanto, a banda acha curiosa a obsessão de Colin em colocar o tinhoso na imagem de capa do próximo disco deles. A partir daí, a banda se isola numa mansão sinistríssima para começar as gravações de seu novo álbum e é claro que é aí que tudo vai pro caralho. 

"I am a traveller of both time and space"

Retomando esse elemento de registro histórico, é bem legal notar que a banda pinça aqui e ali momentos icônicos da historia da musica pra compor a trama: a já comentada apresentação no mesmo estádio japonês onde o Cheap Trick gravou seu famoso álbum ao vivo, a escolha de uma mansão macabra pras gravações do próximo trabalho (evocando, só pra ficar num exemplo que eu conheço, quando Trent Reznor ou Marilyn Manson se enfiaram dentro da  mansão que fica em 10050 Cielo Drive, local onde a família Manson matou entre outras pessoas, Sharon Tate, sendo esse evento um dos geralmente listados como marco do fim de uma época e uma das pás de cal jogadas em cima do sonho da flower generation). 

Conforme a história anda, todos os clichês que nos são apresentados vão sendo, devagarzinho, desconstruídos um a um. Alex aparece sempre do lado de pilhas e pilhas de cocaína mas, hey, drogas não surgem por geração espontânea e a cabeça do rapaz está em jogo. 


Dormir com várias groupies pode ser bem legal mas Kev percebe que se casar com uma delas num momento de impulso pode não ter sido a mais brilhante das idéias. 

Por outro lado, a vida de uma groupie pode não ser tão legal quanto pode parecer (algo que Cameron Crowe já tinha mostrado em seu clássico "Almost Famous") e aquelas moças aparentemente fortes e confiantes tem sua cota de sombras com as quais devem lidar.




Cornell e Parker nos lembram o tempo todo que eventos sobrenaturais estão agindo ali mas alguns dos demônios com os quais os membros da MotherFather (e sua entourage) tem que lidar possuem caráter menos literal. 

"Someone told me there's a girl out there with love in her eyes and flowers in her hair"

Com o desenrolar da trama, vemos um tema se manifestando com força que é o ganho de poder que as mulheres da história ganham. 



Várias groupies começam a desaparecer e devagar as gurias percebem que algo sinistro está ocorrendo. Com os homens do grupo ocupados demais perdidos dentro do próprio ego, cabe a Summerflower, Alice e as demais investigarem não apenas os desaparecimentos mas os demais eventos estranhos que passam a fazer parte do dia a dia deles. 

Inicialmente, preciso confessar, não estava muito interessado no sub plot estrelado pelas groupies, antes de saber que a HQ era sobre bem mais que apenas "a jornada de autodestruição" de uma rock band. E é legal como Cornell sabe que, pelo simples fato delas serem mulheres, elas vão ter que brigar pra conseguir serem ouvidas. Percebam como as personagens femininas estão sempre tendo que forçar o grupo de documentaristas (que, obviamente, estão lá pra representar a visão do leitor) a prestar atenção nelas e no que elas tem a dizer. 




A gente está tão imerso nessa imagem de pseudo-glamour da vida de um artista de sucesso que qualquer coisa orbitando ao redor destes periga se perder, tal qual um satélite que se solta do corpo celestial que originalmente circundava (não coincidentemente elas são as primeiras a descobrir o que havia de errado). 

"Does anybody remember laughter?"

O tom do gibi vai cada vez mais dark. Não é sem querer que o cenário da gig onde ocorrem os eventos que concluem a trama emula a trágica apresentação dos Stones em Altamont, outro evento considerado marco da transição entre o mundo dos anos 60/70 e dos anos 80. 


E também não me passou despercebido o detalhe dos nomes das mulheres que sumiram, como se elas simbolizassem o desaparecimento daqueles valores que tentam personificar. 


O papel da arte aqui, tanto desenho quanto colorização, é fundamental pra dar o tom da coisa. Percebam como o tom mais leve do começo, mesmo numa cena tensa como o do confronto com os traficantes exigindo o pagamento de Alex vai dando lugar a traços mais carregados e realistas. Ou como as cores mudam de tons alegres para tons mais escuros, variando entre predominantemente o preto e o vermelho, como se a euforia e a paleta caleidoscópica do começo desse lugar á bad trip da conclusão. A primeira aparição da mansão na França onde os eventos vão se concentrar é extremamente sinistra, com destaque para a estátua que parece chocada com os eventos atrás dela que, microcosmicamente, representam o mundo. 



O que antes era "give peace a chance" agora é "my only friend, the end". The dream is dead. Woodstock? Altamont. Free Love? Nope, Aids. Um só mundo? Diga isso pros guris morrendo no Vietnã. Os filhos do sonho dos 60's vendo seu cadáver apodrecido e dançando melancólicos nas trevas (os góticos), bufando raivosos (os punks) ou simplesmente capitulando diante dos poderes que valem (os yuppies). "Não existem anjos ali"e mesmo Deus quer se distanciar do que vai começar a se desenrolar naquele ambiente. 



"You can't always get what you want"

Apesar do final feliz, achei curioso que Cornell deixou um elemento de tragédia que reforça o papel de "registro histórico" da trama: Entre a violência e os símbolos de poder masculino e a ascendente valorização de conceitos associados ao feminino, o que resolve a trama é a boa e velha negociação, como se todos esses conceitos e ideologias só pudessem existir se subordinados ao capitalismo e a interpretação de pessoas, vidas e idéias como comodities



Sejam os valores do flower power, a ira confrontacional punk ou mesmo valores ligados à ideologias mais ou menos politicas, estas mesmas também são narrativas contando histórias. 


E arte, seja um filme, um hq ou uma música, pode nos libertar e nos levar ao confronto contra a ordem estabelecida mas também pode servir propagandisticamente para manutenção e continuidade desse status quo. Grupos minoritários só são vistos com relativa - e BEM relativa - tolerância quando são reconhecidos como nichos de consumo que podem ser capitalizados. Ou seja, mesmo os gritos de protesto só podem ganhar espaço quando submetidos à vontade e vistos como fonte de potencial vantagem - material ou não - daqueles que detêm o poder. 



Final feliz? Mais pra uns do que pra outros, kemosabe. 


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