segunda-feira, 15 de maio de 2017

"Um mundo melhor não quer dizer "melhor para todo mundo"" - Capitão América, Secret Empire e o fim do sonho americano



Nos meus 6 anos de vida acadêmica, existem poucos livros de fato que eu me lembro de ter devorado com tal voracidade que hoje, meia década desde que me formei, ainda consigo citar e lembrar passagens, ainda que de forma superficial.
Na verdade onde aí em cima vcs lerem "poucos", entendam "um".
E OBVIAMENTE não é relacionado a minha área (biblioteconomia) pq, convenhamos, pq diabos seria? Só escolhi esse curso pra não fazer dissertativa de geografia na segunda fase da FUVEST.
Oh, nope. O livro em questão é o clássico de Stuart Hall, "Identidade cultural na pós modernidade" e, confesso, fui atrás dele de novo depois de alguns anos em virtude da leitura de Secret Empire.



Mas quadrinhos são entretenimento vazio, né? Chupa essa, sociedade.

Anyways.... O livro de Hall desconstrói, página após página, modelos de construção identitárias e contrapõe os dogmas de tais visões com o nosso mundo pós moderno, da nossa, citando outro pensador moderno, sociedade líquida, fluída e em constante revisão de crenças e verdades. Nesse livro, um conceito constantemente abordado pelo autor é a visão de "identidade nacional" como uma narrativa, toda baseada em certos pressupostos, fundamentais pra que esta se sustente.
A idéia de uma nação soberana, com uma identidade nacional forte (o brasileiro é cordial. Os alemães são frios e austeros. Os ingleses são fleumáticos, etc...), tradições que, teoricamente, sempre existiram ("isso é assim pq sempre foi assim desde que o mundo é mundo") com elementos de gêneros e estratificações sociais estabelecidos, ainda que de forma não oficial (lembram da capa da Veja do "bela, recatada e do lar"?). 

Lembrei disso pq, de certa forma, em minha relativamente humilde opinião, Secret Empire não é sobre a corrupção do sonho americano, um desses elementos que são constituintes da identidade nacional norte americana, mas sobre como esse conceito já vem corrompido desde sua gênese.

A idéia do american dream foi cunhada com esse nome na década de 30 pelo historiador James Truslow Adams em seu livro "The epic of America" mas o conceito existe, não com esse nome, já nas origens do país. Na carta da constituição deles, tá lá escrito de forma clara e concisa: 

"We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness"

O tal sonho americano, o ethos que virou material de exportação pra qualquer paiseco de terceiro mundo do resto do planeta determina que se vc se esforçar e trabalhar de forma determinada, vc vai conseguir uma vida melhor naquele lugar. E quando todo mundo tiver uma vida melhor, o resultado final disso é um mundo melhor.

Mas............ melhor pra quem?

Pq como nos lembra brilhantemente Margaret Atwood

“Better never means better for everyone... It always means worse, for some.”




"The American Dream has run out of gas. The car has stopped. It no longer supplies the world with its images, its dreams, its fantasies. No more. It's over. It supplies the world with its nightmares now: the Kennedy assassination, Watergate, Vietnam." -  J. G. Ballard

Pode parecer estranho um preambulo tão "vida real" pra falar sobre a mais recente mega saga da Marvel mas o negócio é válido considerando que estamos falando do gibi mais político saído da casa das idéias desde que, não coincidentemente, o mesmo Capitão América que protagoniza essa saga, chocou o mundo ao quebrar o pescoço de um terrorista, logo após os eventos do 11 de Setembro, revelar sua identidade em rede nacional e meter o dedo na ferida jogando na cara do publico americano a culpa que o país cujas cores adornam seu uniforme carrega nessa mesma tragédia. 
O sentinela da liberade sempre foi, talvez mais até do que o Superman, o personagem perfeito pra criar histórias com base nas falhas e sombras da sociedade americana da vida real. Nem sempre isso é feito e isso não é necessariamente ruim. Lembremos que a atual fase foi precedida por uma onde Steve Rogers era enviado para uma outra dimensão onde tinha que lutar cotidianamente pra vencer um tirano sanguinário e seu exército de monstros mutantes e que tal saga era MUITO bacana.
Mas quadrinhos, como toda arte, refletem o contexto em que se inserem e, se é perfeitamente possível a maioria dos super heróis irem pelo lado do escapismo puro, extremamente necessário no mundo de tons cinzentos em que vivemos, por outro lado, não dava pro Capitão AMÉRICA, pelo menos, não se pronunciar. Principalmente no momento em que temos o primeiro afro-americano a usar a indumentária azul, vermelho e branca. 



well.....okay..... 

Oficialmente falando, já que....


Isaiah Bradley. #NEVERFORGET

O que Nick Spencer, Daniel Acuña e Jesus Saiz fazem nos dois gibis protagonizados pelas atuais versões do personagem (Sam Wilson é o protagonista em um, Rogers no outro) é falar dessa macro narrativa que chamamos de "sonho americano" e, em maior escala, "nação" e lembrar que uma mentira não se torna verdade por ser repetida infinitas vezes, que toda narrativa serve a um propósito e que essas tramas só são "imortais" até o momento em que os poderes que valem determinam que é hora de contar substituí-la por uma narrativa melhor. 

Mas...melhor pra quem mesmo? 

Ah, e nem preciso dizer, né:




No, I'm not an American. I'm one of the 22 million black people who are the victims of Americanism. One of the 22 million black people who are the victims of democracy, nothing but disguised hypocrisy. So, I'm not standing here speaking to you as an American, or a patriot, or a flag-saluter, or a flag-waver -- no, not I. I'm speaking as a victim of this American system. And I see America through the eyes of the victim. I don't see any American dream; I see an American nightmare - Malcolm X


Tudo começa pequeno, como sempre. Ou o mais "pequeno" que um evento pode ser num universo em que existem planetas sencientes e criaturas predando estes. 

Sam Wilson é o novo Capitão América. Ponto. Não UM Capitão América. "O" Capitão América. No mundo Marvel atual que emula o nosso, ou seja, pós-Kendrick Lamar, pós-alt right, pós-Ferguson (só pra ficar no caso de abuso de força policial contra um jovem negro mais fresco na memória).
E esse espelho funciona à perfeição pq, tal qual no nosso mundo, a Terra do universo 616 também se encontra dividida entre polarizações de direita e esquerda. A Hydra vem ganhando força não apenas entre o alto escalão governamental, mas também entre a população mais pobre dos EUA (alguém menciona em algum momento que existem estudos naquele mundo linkando os índices de baixa escolaridade e desemprego nos EUA e Europa aos altos números de pessoas se filiando à Hydra, que continua uma organização "secreta" mas....well..... ser nazista continua crime no nosso mundo, mas isso não impede as pessoas de o serem de forma discreta ou, simplesmente, tentarem rebatizar o movimento com um nome menos chocante pras massas, apesar de ser impossível distinguir um movimento do outro em termos ideológicos e práticos) o que achei um aceno interessante já que recentemente, John Oliver mencionou as eleições francesas em seu programa e seu papel como determinante pro futuro de uma europa pós-Brexit e citou estudos que vinculam de forma semelhante altos índices de desemprego com um numero cada vez maior para a candidata mais conservadora das eleições francesas, Marine Le Pen
Disposto a ser uma figura mais ativa naquele mundo, Sam decide fazer um discurso público anunciando suas visões de mundo e como elas se relacionam com seu novo status quo, discurso esse que não rendeu os resultados que o personagem provavelmente queria.....




...e criar uma linha direta pras pessoas entrarem em contato com ele, apresentando seus problemas e pedindo ajuda. E depois de toneladas e toneladas do mais puro chorume,



o ex-Falcão decide interceder a favor de uma senhora implorando pela ajuda do super herói após o desaparecimento de seu neto, Joaquin.



O rapaz desapareceu após deixar água e comida escondidas no deserto mexicano para possíveis imigrantes tentando cruzar ilegalmente a fronteira. Investigando o caso, Wilson descobre que o rapaz e todo um outro grupo de imigrantes estão sob a mira de armas de um bando de rednecks ligados a uma subdivisão da Hydra que emula em MUITO a KKK. 


Lembremos que, após um discurso onde Sam se posicionava politicamente diante dos eventos envolvendo abuso policial e do fortalecimento de uma direita americana extremamente conservadora, os níveis de aceitação do herói caíram drasticamente e, mais uma vez, interessante notar as semelhanças entre a escumalha reaça de lá e a daqui, onde os termos proferidos como "xingamentos" são basicamente os mesmos: chamar de comunista, mandar pra Cuba e alegar que estes servem a grupos estranhamente marxistas e satanistas ao mesmo tempo, como a Nova Ordem Mundial ou, no caso dos nossos conspirólogos brasileiros, do onipresente Foro de SP (grupo que, se eu entendi bem, pode envolver de comunistas até reptilianos, dependendo da fonte). Cada ato de Sam em sua nova persona é submetida ao escrutínio público, sempre sob o filtro da imprensa que, diga-se de passagem, não perdoa o coitado. Imprensa essa personificada aqui na figura de Harry Hauser, apresentador de TV sempre atacando o novo usuário do escudo de 3 cores, independente do que faça, não se diferenciando em nada de figuras do nosso dia a dia como , no caso dos americanos, Alex Jones ou Bill O'Reilly ou da nossa nada querida revista Veja ou figuras grotescas como os Datenas e demais apresentadores de programecos policiais que não poupam a mão no gore e na exploitation.



No número 3, Spencer vai na fonte do negócio e o Capitão América vai bater de frente com os lobos de Wall Street...



....o que carrega sua dose de ironia já que, em virtude de eventos ocorridos na saga anterior, Sam atualmente se encontra transformado num lobisomem. Aqui, Spencer introduz a nova sociedade da serpente, agora não mais um grupo de super vilões mas um serviço de consultoria super humana oferecendo seus serviços a grandes corporações, mais ou menos como uma Blackwater do universo super heróico. Mas com cobras. Tipo isso.



Sem brincadeira: Spencer vai sem dó direto na veia do problema. O discurso do Víbora justificando a natureza predatória (viram o que eu fiz aqui? :-) ) de grandes corporações é sedutor de tal forma que quase convence o leitor de que, pelo menos dentro da cabeça dele, eles fazem o que fazem para pavimentar a estrada para um mundo melhor, ainda que as custas de um rastro de sangue deixado para trás.




Claro que o roteirista não quer ser ambíguo demais ou parecer simpatizar com tais figuras e, só pra deixar o alinhamento de todo mundo perfeitamente claro, os vilões voltam a agir como vilões na primeira oportunidade possível mas é fascinante ver os criminosos se adaptando ao contexto e entendendo que as leis são flexíveis o suficiente pra permitirem aberrações como uma Sociedade da serpente funcionando de forma relativamente legal.

Malditos advogados.

Enfim, inimigos derrotados, o Capitão de volta à forma humana, Joaquin estabelecido como seu novo sidekick numa nova versão do Falcão. Chegamos à Pleasant Hill e tudo vai pros caralhos.


Avengers Standoff




A cidadezinha de Pleasant Hill não se conecta ao filme de nome parecido apenas pq o clima naquele lugar pode ser perfeitamente descrito como idílico mas também pq os moradores dali tb, tal como ocorre no longa de 98, se encontram ignorantes a respeito de uma verdade que pode mudar suas vidas.
No caso dos do filme, de que eles se encontram num programa de tv (sorry pelo spoiler). E aqui....bom, que todos os moradores do local são ex-super criminosos que tiveram suas memórias apagadas e que foram reintroduzidos numa cidade fictícia, na verdade uma super prisão. E isso tudo com sanção da SHIELD, personificada em sua diretora, Maria Hill.



Okay....falemos de nostalgia.

De novo vou citar Stuart Hall e o momento em que ele fala da idéia do "passado glorioso" como um dos ingredientes mais importantes para a construção identitária de uma nação: 



Qualquer movimento fascista, QUALQUER UM, vai, em algum momento, se vincular à idéia do passado glorioso. 
O novo fascismo americano personificado em Donald Trump? checked
Os Bolsominions e sua crença de que "na época da ditadura era melhor"? yep.
Ingleses e o Brexit? hell yeah
Franceses votantes de Marine Le Pen? Podem apostar.
Indo mais fundo.
O fascismo italiano de Mussolini

O fascismo alemão de Hitler?

O fascismo soviético de Stalin?

yep, yep e yep.

Acho que me fiz claro.

Demônios: até o integralismo de Carlos Lacerda queria retomar tempos gloriosos e resgatar uma tal de uma brasilidade perdida, lembram?

Quem lê esse blog há bastante tempo já sabe que eu sigo os ditames do meu quarto Marx favorito, o Karl (atrás por quilômetros e quilômetros de distancia dos outros 3 Marx mais legais: Chico, Harpo e, obviamente, Groucho) ao acreditar que o melhor é deixar "os mortos enterrarem seus mortos", you know? Exatamente pq, ao contrário dos citados acima, eu tento lembrar sempre que o tal passado glorioso não era tão limpinho e sanitizado quanto as pessoas se lembram. E legal como, retomando o gibi, Spencer cria esse crossover pra mostrar como o desejo por uma idéia de passado longínquo mascara nossa habilidade de só lembrar das coisas boas mas esquecer de toda a sujeira e podridão desse mesmo período. Todo mundo lembra dos gloriosos anos 60, das conquistas civis, do movimento hippie, MLK, Woodstock, o movimento Beat, Sargent Pepper
Ninguém saudoso lembra da familia Manson, da bala que mandou Luther King pra eternidade, de Altamont, do racismo e machismo dessa época, do Vietnã, do governo militar torturando gente por quase toda a parte de baixo do continente americano, da inflação galopante em decorrência de uma moeda fraca e de crises mundiais como a dos combustíveis no começo dos anos 80. 



O famoso discurso de Raoul Duke em "Medo e delírio em Las Vegas" por Troy Little em cima do clássico texto de Hunter fucking Thompson

Hill e Kobik (a criança que personifica o cubo cósmico, ela própria filha da "reprodução" de 8 fragmentos de cubo cósmico existentes nos arquivos da SHIELD até então) criam um vilarejozinho que não deixa nada a desejar a, por exemplo, a Stars Hollow de Gilmore girls. Ninguém é desagradável, toda casa tem seu cercadinho branco, todo mundo é feliz.

Até o momento em que as pessoas deixam de se-lo. Aí é unleash hell.



Como todo crossover, a qualidade oscila entre um gibi e outro. Por mim? Leiam os dois números de "Welcome to pleasant hill", as edições de Capitão América passadas no evento e mais o gibi dos New Avengers. O resto é perfeitamente descartável. 
É aqui que ocorre o momento de virada da trama de Spencer, quando Kobik rejuvenesce Steve Rogers e ele volta a ocupar o lugar de Capitão América, dividindo a identidade com Wilson. 
E é aqui que tudo vai pro inferno.

E se vcs precisam de mais motivos para ler essa mini-mega-saga, basta que saibam que nela, Anthony Stark é obrigado a construir um robô gigante pra enfrentar o supersoldado que o governo manda contra eles: um kaiju com a bandeira dos estados unidos tatuada no peito e que só consegue dizer U.S.A. 
Eu juro que não estou brincando.



A partir daqui, temos dois gibis mensais protagonizados pelos Capitães America e, não coincidentemente, duas perspectivas do sonho americano. A de Sam, que mostra a perspectiva de alguém marginalizado pelo sonho. Parte fundamental para que ele se concretize, mas paradoxalmente, excluído dele e tendo que conquistar cada vitória à força. E a de Steve Rogers, o ubermensch, do homem branco de olho azul, do macho alfa no topo da cadeia mas que, por estar onde está, teve que comprometer cada ideal que tinha após se encontrar na posição dos bastidores da história e cometer aquele erro de descobrir como política é feita. Lembram daquela frase que diz que existem duas coisas que as pessoas jamais deveriam saber como são fabricadas: salsichas e política? Bem isso. 

The Twist. 

E então, ao final da primeira edição de Captain America: Steve Rogers, vem a revelação que Spencer guardava na manga por todo esse tempo. Duas palavrinhas....



E a internet veio abaixo.
Fãs atuais reclamaram.
Não-leitores reclamaram.
SJWs reclamaram muito no twitter (e só, pq afinal, o que mais ativistas de sofá fazem senão espernear no conforto de seus lares, não?)

Então, crianças....O lance de mestre aqui: Kobik rejuvenesceu Steve. Nas palavras dela, fez ele melhor. O problema é que: um dos fragmentos do cubo cosmico que gerou a menina era o clássico cubo cósmico que já deu toneladas de problemas pros Vingadores em histórias clássicas. E, perdida como estava, Kobik, após nascer, foi em direção ao primeiro homem a utilizar da ferramenta no universo 616. O problema é que o homem em questão é ninguém menos que...



... yeah...

So, quando Kobik rejuvenesceu Steve, ela também reescreveu o passado deste, seguindo as instruções de Johann. E o resultado é um Capitão América que SEMPRE foi um agente da Hydra. Não é domínio mental, nem uma versão alternativa. Kobik apenas reescreveu o passado de Steve de forma que ele SEMPRE tenha sido um sleeper agent da organização terrorista. Percebam a diferença: nada disso invalida as histórias clássicas do personagem. Ele não era um espião terrorista naquela época. Só a partir do momento em que Kobik reformulou seu passado.



O que não muda o fato de que o maior herói do mundo marvel agora é também, o pior vilão de sua rica história de vilões, tiranos, déspotas, conquistadores, warlords, deuses loucos e devoradores de mundos. 

Se a história "real" é uma narrativa que pode ser revista e rebootada a partir dos desejos de quem quer que esteja no poder, pq vcs acham que a de Rogers, por si só uma narrativa fluida e já tendo recebido sua quase infinita cota de revamps e reboots, não estaria sujeita a mesma natureza mercurial?

Spencer já dava sinais do quanto as coisas são impermanentes no universo criado por Lee, Kirby, Ditko e tantos outros ao mencionar, através de um diálogo entre Jack Flag e Sam, as diferentes passagens na vida do herói, sua fase de armadura, o período em que virou um rogue agent dentro dos EUA e a bizarra vez em que ele concorreu à presidência.
Antes disso, o roteirista dava acenos pro passado transitório e pras constantes mudanças de status quo que o personagem e, em geral, as criações da marvel, dc e etc., passam em decorrência das mudanças de publico e contexto temporal. O Capitão América lobisomem, a vez em que John Walker usou o uniforme, quando Rick Jones foi o Bucky ou quando o ex-sidekick, por sua vez, também assumiu o manto e o escudo de seu mentor. Kobik mudando toda a realidade com um pensamento não é algo irreal num universo mutante nesse nível. E o autor espertamente não inventa nada, apenas utiliza elementos do lore gigantesco da editora e junta elementos que, até então, não tinham se conectado, junta pontas soltas e retoma eventos quase que totalmente esquecidos, exceto pelos marvel zombies que consomem tudo que a editora lança, para construir a colcha de retalhos que é a mega trama que ele vem burilando há quase 2 anos e que vai ter seu clímax em Secret Empire. 

Voltemos no entanto para meu título favorito dentre ambos e vamos falar da versão afro descendente do super herói.



Depois de uma edição particularmente cruel com Sam Wilson, em que o mundo se pergunta "qual a necessidade de um mundo com outro Capitão América agora que Steve Rogers pode reassumir o papel" (#givebacktheshield) e vermos alguns oásis de bom senso personificados em Misty Knight e num vilaozeco classe Z chamado Chance, um criminoso saído da galeria de bad guys do Homem Aranha e que foi uma das vitimas de Pleasant Hill, projeto criado pela mesma Maria Hill que é inocentada pelos eventos ocorridos no arco....



......, a equipe criativa ainda prepara terreno pra um novo jab no queixo do protagonista, através do começo da saga envolvendo os Americops.



Inspirado num personagem obscuro dos gibis dos anos 90 do primeiro Vingador, os Americops são uma força policial super humana (na verdade, homens com uma armadura que lhes dá força acima do normal) de orçamento privado criado por Paul Keane, CEO da corporação Keane. Depois de um run "supostamente" bem sucedido em algumas cidades americanas com a redução do crime local caindo pra casa dos dois dígitos, o senador Tom Herald tenta passar um projeto de lei permitindo recursos públicos para financiamento da iniciativa. Mas....e claro que há um mas....  os moradores das áreas suburbanas atendidas pelos agentes tem uma versão bem diferente do nível de "sucesso" do projeto, envolvendo, OBVIAMENTE, abuso de força, racismo (ou em inglês, profiling, não sei se tem tradução disso pro português) e assédio.



As edições 10 e 11 do gibi são tie-ins com aquela miséria de história que foi Civil War II e, preciso dizer, acho que são meus tie-ins favoritos do evento, com vários momentos awesome: 
- o discurso no funeral do War Machine
- Por sua vez, o discurso de Misty, que marca o fim da fase "de adaptação" de Sam em seu papel de símbolo pra, não apenas seu país, mas pro planeta como um todo (e considerando que estamos falando do universo Marvel, pra galáxia inteira). 
- Legal ver que os super heróis da comunidade negra do universo Marvel tem consciencia de seu papel simbólico e tentam manter contato entre si. aliás, a "câmera" dessa edição tá sempre procurando manter o foco em personagens "não-brancos", como Kamala Khan, o jovem Nova e Miles Morales.



- Sam mandando um "foda-se" lindo pra Capitã Marvel.
- E claro..... a introdução de Rage na trama. Rage é um personagem criado na década de 90, cuja identidade secreta é a de um menino que vivia nos suburbios de uma cidade americana. Um dia, Elvin, seu nome civil, foi submetido a um daqueles acidentes que ocorrem o tempo todo em gibis de super heróis e se torna uma montanha de músculos. ele adota uma máscara de lucha libre e o nome de Rage e passa a combater o crime na comunidade local. Com o tempo, ele se torna parte dos Vingadores e posteriormente, dos Novos Guerreiros. Pela origem humilde, Rage sempre foi o elemento pé no chão e politizado nos gibis em que aparecia e aqui não é diferente. Não é coincidência que um herói chamado Raiva seja a voz das comunidades que se levantam contra a brutalidade dos Americops. E o cenário está pronto pra tornar a situação de Sam Wilson ainda mais complicada. 

Chegamos ao número 12 e os "poderes que valem" decidem tomar um papel ativo e lidar com a questão envolvendo Sam de forma violenta. Fogo contra fogo e eles arregimentam pra missão ninguém menos que John Walker, o U.S.Agent. Pra quem é novo no lore de Steve Rogers e seus associados: John Walker foi o militar escolhido para assumir o manto de Capitão América depois que seu antecessor desistiu da função por não concordar com ordens recebidas de seus superiores no governo americano. Walker, com um perfil mais linha dura e menos humanitário que ele, era o homem perfeito pra função, de acordo com esses mesmos políticos. Depois de perder o controle em uma missão e deixar um punhado de corpos em seu caminho, Walker foi vencido por Rogers e este retomou sua função. Walker, no entanto, era poderoso e perigoso demais para ser deixado de lado e ele foi reintegrado aos militares, agora sob a identidade de Agente Americano e selecionado para missões tipo black ops, já tendo inclusive - por ordens governamentais - feito parte de algumas formações dos Vingadores. Se Rogers é, em tese, o lado bonito do sonho americano, o sonho de consumo vendido pro mundo e Wilson é a facção marginalizada do público deixada de fora deste mesmo sonho, Walker é o lado hostil dos EUA, seu braço militarizado, é os EUA que apoiaram a queda de governos democraticamente eleitos nos anos 80, os EUA do Irã-Contra, da segunda incursão ao Iraque em busca de armas químicas e biológicas que, surpreendendo a absolutamente ninguém, nunca foram encontradas. São os EUA da doutrina do Big Stick que determinava que vc deveria "falar manso mas sempre ter um porrete em mãos". O lado que ninguém quer ver, sujando as mãos de sangue.




Aqui temos as primeiras consequências do atual status quo de Steve Rogers na vida do novo Capitão. 

The plot thickens

Okay floquinho de neve barbudo, com camiseta com a foice e o martelo e que fez faculdade de humanas em universidade pública lendo isso. Eu sei o que vc tá pensando agora.
"Gibi esquerdista malhando a reaçaria". Certo? Já tá pensando que Sam Wilson tem uma mp3 com a internacional comunista tocando direto no celular sempre que vai patrulhar a cidade pra socar os exploradores da classe trabalhadora, certo?

Conheçam Flag Smasher:




Flag Smasher (ou Apátrida, em bom português) é o outro lado da moeda, e o momento em que, não contente em ter deixado a ala conservadora do fandom leitor de gibis putaça, agora é a hora de ofender também a esquerda norte-americana. E nem é a unica vez em que ele vai apontar a hipocrisia inerente da oposição. Flag Smasher e a organização a qual ele lidera, o Ultimatum, simbolizam o momento em que a oposição decide adotar os métodos dos "inimigos" e usa-los contra eles. O vilão prende meia duzia de bombas em um grupo de políticos reunidos em uma celebração e determina que, caso Rogers e Wilson não se juntem a ele, vai explodir uma bomba "informacional", liberando segredos militares para o mundo inteiro ver (entre eles, os códigos dos armamentos nucleares do exército estadunidense). Se o vilão e seu super grupo aqui personificam o momento em que a oposição mete os pés pelas mãos em uma iniciativa que vai, fundamentalmente, favorecer o lado adversário, no futuro, o roteirista vai alfinetar uma outra faceta da esquerda: na edição 17, uma intelectual ultra conservadora vai discursar numa universidade de alinhamento ideológico contrário e no meio de seu discurso, ela é interrompida por um grupo de justiceiros adolescentes auto-intitulados "The bombshells", que, sem brincadeira, aparecem dizendo o seguinte:



........ okay, um grupo de justiceiros querendo calar violentamente alguém em nome da liberdade de expressão e querendo garantir espaços de discussão seguros pra todo mundo, contanto que estes tenham as mesmas posições político-ideológicas.



Familiar? E tipo, só eu achei que o visual deles foi feito pra lembrar as meninas super poderosas? 



Justiceiros pop de discurso fácil e um pseudo ativismo torto mais prejudicial pra própria causa do que qualquer coisa.  A própria definição dos ativistas de rede social, não? 

Ofendidos? TOMARA.

Derrotados por um herói negro e seu ajudante mexicano, Rage segue sua vida, até que....bom....vamos dizer que essa edição foi o ultimo momento de leveza na vida dos personagens e que o próximo golpe é um sucker punch do qual nenhum dos envolvidos vai sair o mesmo. 

Let the rage flow




Okay, retomando: temos imprensa batendo sem dó em nosso protagonista. O senado americano, prepara um projeto de lei permitindo liberdade total pra Shield em situações emergenciais.
Maria Hill se apossou de um projeto de escudo planetário para impedir o acesso de aliens ao nosso planeta (se isso soou sutil de menos para vcs, basta dizer que em algum momento a frase "make the earth safe again" é dita de forma não irônica). Enquanto isso, há um continente de distancia, a Hydra derruba o governo de um paiseco da oriente europeu e se apossa de armas nucleares escondidas no local (e este braço da Hydra, vale ressaltar, está sob o comando do Caveira Vermelha). 
Enquanto isso, Nova Iorque é uma panela de pressão político social a beira de explodir e tudo entre a cidade e o abismo é o Capitão América. Me perdoem o clichê mas, as peças se posicionam no tabuleiro e o caldo está há minutos de entornar. Tudo que falta é uma gota d'água e Sam Wilson tem em mãos, uma mangueira de bombeiro em mãos: Sam tem o poder de poder realizar uma conexão mental com aves, permitindo que ele enxergue o que qualquer pássaro nos arredores estiver vendo, além de certo controle mental sobre os emplumados. Ciente dos efeitos práticos disto, o herói se submete a uma operação cerebral que, technobabble de gibi à parte, permite que ele possa gravar as imagens que ele enxerga num computador de forma remota. A edição anterior termina com Rage tentando deter um assalto e sendo equivocadamente preso no lugar dos reais ladrões. Lembrando: Rage é negro. Os vilões não. E ele foi preso pelos Americops. Aliás, isso emula uma cena algumas edições anteriores em que Steve é obrigado a ir até uma delegacia liberar Sam, então o Falcão e seu sidekick, após este ter sido preso no lugar dos criminosos que tentava capturar pq.....bom.... pq ele é negro e seus adversários não. História é um ciclo, não? 
Rage é violentamente espancado e o vídeo que Sam acessa de um pássaro nas proximidades não é considerado como válido judicialmente. 
Puto e cansado de evitar revelar certas verdade pelos possíveis desdobramentos violentos que isso pode gerar entre as comunidades mais pobres, Sam toca o foda-se e publica os vídeos online (linkando com um momento frustrante exatamente pela realidade dele, onde Wilson é obrigado a poupar um grupo de homens ricos sob risco dos efeitos que um golpe definitivo no 1% mais rico dos EUA pode ter na economia do país e do mundo).



O resultado do julgamento sai e como os senhores podem imaginar, Rage é condenado apesar de todas as evidências.
Resultado?






NY Burning. Too real, né? 

That was then. This is now

Enquanto Sam Wilson de vê diante do inferno na Terra, Rogers se encontra numa posição bem mais favorável. A Hydra em posições de poder dentro do governo, Maria Hill e a Capitã Marvel reforçando políticas militares de austeridade que praticamente lhe entregam as chaves do poderio militar americano numa bandeja, as únicas testemunhas de seus planos, mortas ou recrutadas e, após eventos num crossover dispensável num gibi de uma formação bucha dos x-men, Caveira Vermelha ressurge derrotado e enfraquecido, permitindo que Steve dê cabo de seu arqui-inimigo de uma vez por todas.
Spencer ainda guardava uma ultima revelação pro fandom, que fez o "hail hydra" parecer em retrospecto, uma idéia bem "de boas": na verdade, o Capitão América que conhecemos não é o verdadeiro. O Capitão "original" é o sleeper agent da organização terrorista. A versão super heróica e amigo das crianças e Norman Rockwell-like que conhecemos por todos esses anos é fruto dos primeiros usos do cubo cósmico americano que reescreveu a realidade para uma onde os aliados venceram os países do eixo na segunda guerra. Mas a verdade é que os nazistas VENCERAM a "mãe de todas as guerras" e estão dispostos a tudo pra corrigir a história para seu desdobramento original.

Agora, vejam bem, eu entendo perfeitamente que essa é uma pílula difícil de engolir. Mas de novo, o que o roteirista está fazendo, retomando Hall que citei lá em cima, é mostrar como narrativas históricas se sobrescrevem de acordo com quem tem o poder. E indo além, vem pra mostrar como a tal narrativa do sonho americano é mais frágil do que aparenta. Sim, eu concordo com os colegas: o Capitão América simboliza o american dream.

Mas......e as mulheres e negros que foram marginalizados dele, como hoje em dia são os imigrantes ilegais? E o tratamento de povos indígenas? E as políticas externas que permitiram aberrações como o fortalecimento da Al Qaeda, e o assassinato de líderes como Salvador Allende além da deposição de outros tantos governos democráticos? E o excesso de ação em uns casos e a completa apatia em outros (Israel e seu tratamento para com os palestinos manda lembranças)? Desde SEMPRE o sonho americano esconde um lado feio da sociedade estadunidense, em nada diferente do que a perpétua esperança do Brasil como o "país do futuro" esconde, nessa fantasia de esperança utópica: uma realidade de estratificação social e gente endinheirada querendo...well... mais dinheiro, ainda que pra isso seja necessário sepultar - literal e figurativamente - uma parcela monstruosa da população mais pobre. Fantasias históricas criadas por e para um grupo seleto de homens brancos e velhos no poder e fortalecidas por suas ferramentas de controle social (imprensa, igreja, policia, etc.). Não foi o Capitão América que se corrompeu. Foi a realidade que decidiu tirar o filtro multi colorido sob o qual víamos o personagem. Segundo Alan Moore, em seu clássico Watchmen, o "filho" do sonho americano não seria um simbolo de humanidade e empatia com os desfavorecidos que resgata gatinhos do topo de árvores, mas o Comediante, uma aberração lutando pelo tal "sonho" enquanto estupra mulheres e mata crianças com lança chamas. Um smile sujo de sangue...



No final, os EUA são, de certa forma, também um "Secret Empire", com uma narrativa gloriosa sustentando as bases desse império e vendida pra todo o resto do planeta e prontos pra botar abaixo qualquer um que questione a veracidade dessa macro-trama.
Não é surpreendente que o final do processo histórico do país de George Washington e Abraham Lincoln seja alguém como Donald Trump, uma caricatura do "vencedor americano". O Capitão América fascista e membro de uma organização de cores nazistas é, apenas, mais um filho deste ethos e, no final das contas, nada além de um fruto de seu meio. Não é coincidência tb que os EUA - tanto os dos quadrinhos quanto o nosso do mundo real - tiveram e tem dificuldades em aceitar Sam Wilson com o uniforme do sentinela da liberdade. O personagem é um lembrete constante do que o sonho americano NÃO é, um gigantesco espelho negro colocado diante da sociedade estadunidense lembrando que o american way não é a realidade, ou pelo menos não a experimentada cotidianamente por uma parcela gigantesca da população de lá e, por consequência, pelo resto do mundo. O nome disso é outra coisa.


Agora, pro caso dos senhores estarem se perguntando de que forma as duas HQs se conectam, além do óbvio fato de ambas serem protagonizadas por detentores do título de Capitão América: duas visões, uma dentro da trama e uma extrínseca à ela:
- Dentro do gibi, e no único momento que não me desceu tão bem no roteiro, descobrimos que uma parte dos políticos desencadeando eventos responsáveis por alguns dos piores momentos na vida recente de Sam Wilson eram, na verdade, agentes da Hydra. E, ampliando o espectro, a organização tem agido tentando criar uma situação de caos dentro de NY, já que lá reside o grosso da comunidade super heróica. Uma Nova Iorque em frangalhos seria um cenário perfeito para distrair os super humanos residentes ali até que seja tarde demais
- E pra gente lendo daqui de fora, Wilson é a resistência. Não apenas das comunidades pobres que ele defende ou dos demais excluídos do american dream, mas dos defensores de uma nova visão do sonho. "Como vc derrota uma idéia? Com uma idéia melhor.". Contra o avatar do "sonho americano" que se revelou um lobo em pele de cordeiro, vemos os rascunhos das primeiras páginas do "evangelho de Sam Wilson".
Um novo sonho americano, agora realmente com liberdade e justiça "PARA TODOS", não apenas para alguns. O já citado Martin Luther King nos lembra que "protestos são a linguagem dos esquecidos". Já Thomas Jefferson, um dos founding fathers dos Estados Unidos nos lembra que "Se uma lei é injusta, um homem não está apenas correto ao desobedece-la, como ele tem a obrigação de faze-lo". Na América fascista da Hydra, Sam Wilson é o portador de duas das armas mais poderosas diante de qualquer estado totalitário: a rebeldia e a esperança. Num cenário de pensamento colméia e que pune qualquer fuga da padronização ideológica, nada mais rebelde que o orgulho em ser diferente. Quer uma coleção de idéias mais atual e necessária pra gente e nosso cenário distópico de 2017 do que essa?

Podemos estar vendo uma das melhores sátiras políticas/fantasias distópicas surgidas nessa mídia desde o final de Transmetropolitan. Exagero? Talvez.
Mas, anyways, curioso como nunca pra ver os rumos dessa trama. Eu ainda tinha uma pá de coisa pra falar sobre esses gibis, mas vou me conter pq o texto está gigantesco.

Okay, senhores. Este é o lento cenário desenvolvido por Spencer, Acuña e Saiz por dois anos.
Chegamos à Secret Empire e a partir daqui é unleash hell. Eu pretendo ir escrevendo sobre edição por edição da série principal além de um ou outro tie-in legal que cair em minhas mãos. Até semana que vem, no máximo, eu falo de Secret Empire #0 e #1.

                               

Nenhum comentário: