Tudo começa com essa comission aqui, feita pra uma convenção em algum momento uns 26 anos atrás.
Dela em si, nada sobrou, exceto a idéia de ser um demônio e, claro o nome. E foi o nome que ficou martelando na cabeça de Mike Mignola por dias e dias
Corta a cena. Mil novecentos e noventa e dois. Image Comics surgindo, após Jim Lee, Erik Larsen, Todd MacFarlane, Rob Liefeld, Whilce Portacio, Jim Valentino e Marc Silvestri decidirem mandar a Marvel se ferrar. Totalmente creator-oriented, havia um lugar à mesa reservado pra Mignola e seu amigo, Arthur Adams. Adams, à época desenvolvendo "Monkeyman e O'Brien", já tinha feito pitch da idéia pra DC, sem sucesso, tal qual o próprio Mignola com aquela idéia ainda insipiente que viria a virar o Hellboy (parece que a DC não gostava da idéia do "Hell" no título do gibi. Essa idiotice viria também, anos depois, a atormentar Del Toro, quando tentava vender a idéia do filme estrelado pelo diabão vermelho. Os executivos cinematográficos utilizaram a mesma desculpa pra recusarem o projeto). Bom, tudo inclinava para que ambos fossem pra Image, quando Adams resolveu trocar uma idéia com a direção da Dark Horse, editora do Oregon pra quem já tinha feito alguns trabalhos previamente. E com ele, foram Mignola, o big red e todos os seus aliados e inimigos. O resto é história.
No ano das comemorações de 1/4 de século de existência de Anung un Rama (A primeira edição de Seed of destruction foi lançada em março de 1994), este blog decidiu cruzar a estrada em direção às profundezas dos domínios do capiroto, lado a lado com o principal membro da BPRD e narrar todo o trajeto, de Seeds of destruction até as recentes minis do vermelhão combatendo o sobrenatural ao lado do BPRD (se não me engano, a mais recente é a 1956), passando também pelos spinoffs ambientados no que veio a ser conhecido como o Mignolaverso (o que inclui os gibis do BPRD, a série solo do Abe, Lobster Johnson, Sir Edward Grey, Rasputin, Koschei, e os Weird tales, entre outros). Pra quem decidir seguir comigo, vou usar como referência esse guia aqui do site Multiversity comics (e o tamanho do negócio já deve dar uma idéia da odisséia que isso vai ser. Mais uma vez, 25 anos de material não é pouca coisa).
Obviamente, quando chegar a hora, tb menciono material apócrifo relacionado remotamente (ou não) ao personagem, como os filmes e as excelentes animações protagonizadas por Hellboy, além de gibis maneiros como a série "Baltimore".
So.... down we go?
"Seeds of Destruction"
Arte de Mike Mignola, roteiro de John Byrne (meu trabalho favorito dele, na moral)
Dez páginas. Dez fucking páginas, é tudo que Byrne e Mignola precisam pra contar a origem do Hellboy.
O resto é basicamente desenvolvimento de trama. Tudo que vc precisa saber sobre o personagem tá ali. A epígrafe do encadernado que eu li agradece dois criadores pelas bases do personagem e da série como um todo e que são e serão os nortes de todo o projeto: Lovecraft e Jack Kirby. E de fato, nessa dezena inicial de páginas, é isso que vemos lá. Deuses em repouso, criaturas maiores que a vida, e seus adoradores. Nazistas com manoplas ultra tecnológicas. Super heróis (ou o mais próximo disso, na figura do Tocha da Liberdade). Pop science e misticismo trabalhando em uníssono. E aos pés de uma imagem de Cristo, o salvador surge num flash. Não um anjo, mas um bebê demônio particularmente simpático.
Corta pra 35 anos mais tarde, e temos seu pai adotivo, o doutor Broom, velho e à beira da morte e o monstrão, mais velho mas ainda jovem pros padrões humanos, tendo que se virar pra resolver um caso envolvendo uma família amaldiçoada, homens sapos gigantes e um monumento profano perdido no meio do ártico. Tudo isso culminando no encontro, quase 4 décadas depois, entre o Big Red e Rasputin, o homem que o trouxe pro nosso mundo.
De Lovecraft, nem preciso dizer, né? Vem o lance de "nas montanhas da loucura", as figuras reptilianas divinas e a ambientação gótica da mansão Cavendish - e ninguém estaria errado se também rendesse créditos à Edgar Allan Poe e seu "A queda da casa de Usher" como uma das fontes de onde a hq bebe. Dos gibis de super herói, vem...bom, todo o resto. As cenas de ação, a figura do protagonista (alguém já disse, não lembro quem, que a diferença entre uma historia de terror e uma de ação é que na de terror, o perigo é grande demais pra impedir qualquer possibilidade de defesa por parte dos seus personagens. Na ação, os riscos são iguais, mas o "herói" da história tem habilidades e expertise o suficiente pra se mostrar um adversário válido contra o que quer que esteja lutando. Uma diferença entre um protagonista com papel ativo ou passivo), seu rol de coadjuvantes, quase um time de super heróis, um bando de x-men from hell (literalmente, no caso de um deles). Bom, quase todo o resto, já que seria leviano da minha parte não mencionar as influencias de gibis pulp tipo Doc Savage e do cinema de aventura dos anos 30 e 40. Vc faz uma alquimia sinistra, mistura tudo isso e o resultado é "Seeds of destruction".
Dos elementos recorrentes introduzidos na série, temos como os mais importantes: os parceiros de Hellboy, Abe Sapien, um homem anfíbio de origem desconhecida - pelo menos nesse momento - e Liz Sherman, uma pirocinética absurdamente poderosa. Além deles, os antagonistas: o mago Rasputin, trazido de volta das profundezas do oblívio pelos old ones aos quais serve e as bestas lovecraftianas que lhe servem de mestres. Por nome, conhecemos, aqui, apenas Ogdru Jahad, um coletivo de sete deidades antigas que se encontram aprisionados numa espécie de ambar, numa dimensão paralela à nossa. Ao final, somos deixados com a certeza de que HB e sua manopla de pedra possuem um papel importante no grande plano concebido pelo mago Russo para despertar tais monstros de seu sono e, no processo, desencadear a queda da humanidade. O bruxo sofre sua primeira derrota, nas mãos de Abe, com a promessa de voltar pra atormentar os membros do BPRD. Os Cavendish e seu legado são extirpados da face da Terra feito um câncer. E o futuro imediato da série envolve nazistas despertando de décadas de animação suspensa: ciborgues, gorilas super inteligentes, mecha nazis - o que eu disse outro dia aqui? Vc não é um super herói de verdade até espancar seu primeiro mecha nazi. Pontos extras se for um mecha Hitler.
Enfim, é bom que a agenda de Hellboy tenha espaço reservado pra trocar porrada com ultra-nacionalistas/direitistas alemães e sua tecnologia arcana. Because they're coming for him.
Um excelente começo para a série, além de estabelecer ao final do primeiro arco, uma série de instigantes perguntas a serem respondidas futuramente. Uma das melhores e mais eficientes introduções de todo um novo universo de que consigo lembrar.
Esse primeiro tpb ainda traz duas outras histórias do Hellboy, uma envolvendo lobisomens e a outra com o detetive sobrenatural lidando com uma cabeça decepada mantida viva (tecnologia nazi, obviamente) e um gorila falante e, bom, leitores de longa data deste blog sabem que eu acho gorilas falantes uma das coisas mais awesome do universo, so, i'm sold. Duas histórias curtinhas, pra darem uma engordada no encadernado, mas divertidas o suficiente pra justificar sua inclusão no livrão.
"Wake the Devil"
Roteiro e arte de Mike Mignola
A introdução desse gibi já é uma obra de arte em si, de autoria do mago de Northampton em pessoa, o sr. Alan Moore. Inclusive, um dos parágrafos dessa preciosidade é algo que, não apenas explica pq obras que bebem tão diretamente do passado tem o apelo que tem com a gente, mas tb deixa claro que isso é completamente diferente de nostalgia e de qualquer trip saudosista que tal sentimento possa oferecer.
Foda né? Anyway, isso funciona muito bem não apenas com a série como um todo mas especificamente com esse album, que lida com um mito usado à exaustão nas ultimas décadas: vampiros. Big Red vai enfrentar sua primeira leva de sugadores de sangue.
De novo, tomando a epígrafe como referencia, Mignola nem tenta esconder: o clássico livro de Bram Stoker, ainda hoje a principal referência que temos do mito do vampiro, é de onde ele bebe. Romenia, cidadezinha sitiada por uma força descomunalmente opressora, animais de hábitos suspeitos, as "noivas". Mignola não disfarça de que fonte ele bebe, mas quando achamos, a certo ponto da leitura, que estamos em território seguro, ele vem e POW.
Quem tá lendo, apesar da recorrência dos nazistas despertos no final do TPB anterior, pode achar que tá vendo uma trama episódica, tipo Arquivo X ou Supernatural: vc tem a grande história que costura um arco maior, com episódios isolados dentro deste, pra distrair o publico.
Daí vem o final e descobrimos que a trama da aventura anterior continua e que o clímax real não ocorreu quando o demônio detetive mandou um dedo do meio bonito para Rasputin, mas aqui, no seu conflito e "renascimento" diante de Hécate. A trama até então, envolvendo um vampiro romeno que teria sido arregimentado por Hitler e Grigori como parte do projeto Ragna-rok (o mesmo que summonou Hellboy) é meio que o ilusionista atraindo tua atenção e te distraindo do que ele tá realmente fazendo. Ou, como diria o bom e velho almirante Ackbar...
Pois é. Dividir e conquistar. O plano do mago russo funciona quase à perfeição. O BPRD termina essa edição extremamente fragilizado. Se Liz, Hellboy e Abe tinham saído do arco anterior numa posição melhor que a inicial, qualquer conquista obtida vai pro ralo. Liz teve um de seus "episódios" e se encontra inconsciente. Abe, sob o espectro de uma maldição de Rasputin. Hellboy, um pouco mais seguro de quem é de fato, mas ainda embaixo da sombra de seu suposto destino profetizado, literalmente andando com a chave pro apocalipse em sua mão direita. Uma pá de agente morto.
Não um cenário particularmente auspicioso.
Por outro lado, os "vilões" terminam o arco igualmente inseguros. A tal profecia não se concretizou, a chave para sua conclusão decidiu por uma terceira via quando confrontado com "renda-se ou morra" e escolheu, tal qual uma fenix, se perder em meio as chamas e se reinventar.
Esse era, tipo, o "segundo disco" pro Mignola. O primeiro TPB é bom mas é co-criação com Byrne. Este aqui seria seu teste de fogo, agora sozinho. E surpreendendo a absolutamente ninguém, ele supera o encadernado anterior com folga. A escala é elevada, o autor já está confortável com os personagens que concebeu e isso reflete tanto no roteiro quanto na arte. Não vou falar do domínio de contrastes, claro e escuro e tals pq, primeiro, não manjo de arte num nível mais técnico. E segundo, pq isso é óbvio pra qualquer um que já tenha passado os olhos em qualquer obra do roteirista/desenhista. Vou dizer, no entanto, que, normalmente, eu esqueço de comentar sobre o processo de colorização dos gibis que leio, o que é uma falha pessoal. Levanto esse tópico pq a colorização nesse gibi tá absurda, com as cores contribuindo pra ambientação opressiva daquela saga. James Sinclair, o colorista da obra, utiliza tons pastéis por quase toda a trama, o que contribui para o tom quase de sonho/pesadelo Lynchniano que a gente experiencía aqui, com as únicas cores berrantes saltando aos olhos quando surgem sendo o amarelo do fogo e das explosões e a vermelha, seja do sangue derramado, seja da pele do demônio que intitula a série.
O encadernado introduz duas personagens importantes pra série: Hécate e Baba Yaga, a bruxa de um olho só que tem uma casa construída sob as patas gigantes de uma galinha e que, por isto, está constantemente se movendo. Algumas outras criaturas sinistras aparecem pela primeira vez, mas terminam "Wake the devil" sem serem nomeadas, então vamos dar tempo ao tempo. O livrão conclui suas mais de 100 páginas com um momento tocante de diálogo entre Rasputin, o homem que queria ser deus mas terminou apenas um espírito errante com delírios de grandeza e a bruxa caolha.
O grande tema do arco anterior, lívre arbítrio, segue norteando este aqui: Grigori é um homem tentando ser deus. Hellboy, um deus tentando ser homem. O bruxo quer se sentar lado a lado com as grandes deidades humanas. O big red é o tempo todo confrontado com seu papel, com o fato de que ele é o escolhido, de que ele é especial, "the chosen one" e sua resposta constante é "Vcs pegaram o cara errado". Novamente o lance dos grandes arquétipos dos gibis de super heróis: herói e vilão são reflexos distorcidos, opostos que se anulam mutuamente. Hellboy é um rei com ganas de ser peão, enquanto Rasputin anseia pelo lugar de destaque no tabuleiro.
Um novo tema, no entanto, surge e ele tem tanta força que vai ser foco principal no segundo filme do detetive infernal feito por Guillermo Del Toro: pela primeira vez, o herói é confrontado com o fato de que ele detêm mais semelhança com as entidades e monstros que caça do que com os humanos que ele supostamente deve proteger. O grande plano sobrenatural, à luz do discurso da deusa, ao final da edição, tem menos a ver com dominação mundial no sentido mais cartunesco, e mais a ver com o que na administração é descrito como uma "aquisição hostil". De acordo com Hécate, por sua vez, porta voz de toda entidade sobrenatural que serve de antagonista na saga, os humanos tiveram sua chance e falharam como raça dominante da Terra. Ou, resumindo na frase que o principal vilão do quadrinho usa em determinado momento, o problema tem uma só causa:
"Too many humans".
Como nosso herói, preso entre esses dois mundos, vai reagir a essa dicotomia, só o futuro (e o resto da série) dirá.
É isso, crianças. Até sexta feira, lanço a parte 2 dessa série, que deve ter dois episódios semanais (ou mais, dependendo do meu pique). Esta primeira parte tá saindo num horário "normal", mas as demais serão lançadas exatamente às 3 da manhã do dia que saírem, horário do cramulhão, do tinhoso, do pé cascudo (bem aventurado o blogspot por permitir que eu programe o horário de postagem com antecedência). Simbolismo, crianças. :-)
Até sexta.
A seguir: "The chained coffin" e "the right hand of doom".
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