quinta-feira, 21 de março de 2019

A Verdade, a verdade e as verdades de El Topo



Okay, esse aqui é um texto que vem e volta a atormentar minha cabeça de tempos em tempos, acho que desde 2015. E isso vai ser complicado pra porra, então, se me derem licença, vou me conceder o direito à uma xícara de chá e botar algo adequado pra tocar de fundo (alguém disse Dead Can Dance?)

ok, ok...here we go.....






Um homem de preto num cavalo no meio do deserto, com seu filho, nu, viajando com ele. 
Os dois chegam a um local perdido no meio do nada, onde o pistoleiro ordena ao guri que enterre seu primeiro brinquedo e a foto de sua finada mãe no meio da areia, pois já tem 7 anos e já é um homem. 

Assim começa um dos filmes mais incríveis de que consigo me lembrar. Lançado em 1970 com roteiro, direção, trilha sonora e papel principal do mexicano Alejandro Jodorowski, El Topo é daqueles longas que, na moral, mudam vidas, que pegam a cabeça de quem tá assistindo e desconstroem quaisquer expectativa. É também, um ato de magia, tal qual Grant Morrison faria, 24 anos depois, com seu "The Invisibles". Arte como um ato de ativismo mágico visando mudar a sociedade. Uma mistura de analogia cristã, filosofia oriental e crítica ao establishment. e uma história sobre um homem a procura de respostas.


Vou deixar bem claro uma coisa: eu tenho baixado dois livros sobre o filme e uma pá de artigo e decidi NÃO ler nenhum deles. Se fosse falar desse filme apenas pela arte e elementos técnicos, de boa, ia ler pra me embasar. Mas como a proposta desse texto é tentar mostrar a MINHA leitura dos elementos simbólicos do longa, não faria sentido algum eu borrar a minha interpretação com o input que terceiros fizeram. Diabos, tem um livro de autoria do próprio Jodorowski esmiuçando simbolo por simbolo do longa. E hey, ia ser legal ir lá dar uma olhada e ver que aquilo que eu achei que fosse X, de fato era X. Mas por outro lado, esse também é um filme sobre fé. E no momento que eu tiver lido que o que eu entendi de determinada cena era de fato o que o diretor quis passar....deixa de ser fé pra virar fato. O gato de Schrodinger vai estar vivo ou morto. Eu sei, vocês sabem, todos sabemos que o Pink Floyd não pensou num só segundo em "O mágico de oz" enquanto fazia "The dark side of the moon" e que Edgar Wright tinha tudo na cabeça enquanto fazia seu Scott Pilgrim, menos a idéia de sincronizar o filmme com "Mellon colie and the infinite sadness", clássico álbum de 1995 do Smashing Pumpkins. MAS...... foda, sabe? É legal acreditar que uma força cósmica juntou essas obras num paralelo de coincidências tão grande que mesmo o mais saudável entre nós se vê dando vazão a lampejos de apofenia, enxergando padrões onde não existe nenhum. E isso apenas pq....bom, pq isso é legal, pq confere um caráter mágico ao mundo. E falando de magia, voltemos a El Topo. 



So, fomos apresentados ao pistoleiro El Topo e seu filho, seu hijo, e já de cara temos um rito de passagem para o guri, simbolizando fim da sua infância e o inicio de sua fase adulta. Corta pros créditos de abertura e temos uma locução falando dos el topos, ou, em português, das toupeiras, aquele simpático animal que cava buracos. 

“The mole is an animal that digs passages searching for the sun. Sometimes he reaches the surface. When he looks at the sun he goes blind.”

Você pode resumir o filme inteiro nessa passagem: a saga de um homem em busca da verdade e o efeito desta - impessoal, sem qualquer preocupação em oferecer conforto ou felicidade pra quem a encontra - em alguém. Pro bem ou pro mal.

Em sua jornada rumo a.....algo... Topo e seu "hijo" chegam a um vilarejo onde ocorreu um massacre. mas veja bem: um massacre de categoria.



O único sobrevivente só se mantem consciente por tempo o suficiente para implorar por um tiro de misericórdia. Mais adiante, o protagonista encontra alguns batedores deixados pra trás e antes de queimar um por um, consegue a identidade do mandante do crime: o coronel. E não, ninguém tem nomes no filme. Quando muito, títulos. Sobre esses minions - e toda essa primeira parte, do começo até o encontro com o tal coronel é um grande preâmbulo pra nos apresentar àquele mundo distópico - é interessante notar que dois deles estão fantasiando com elementos remetendo ao sexo feminino apenas para cortar para cenas de violência realizada contra eles: o primeiro minion cheirando sapatos femininos para em seguida treinar tiros usando-os como alvos. O segundo, desenhando a figura de uma mulher no chão para simular sexo - e particularmente violento - com a imagem. A mensagem é clara: mulheres não tem uma vida particularmente fácil nesse mundo (bom...e em qual elas tem?).
Curiosamente, os criminosos estão atocaiados numa missão franciscana, matando gente e estuprando os noviços mais novos.  Aqui vale notar que os criminosos são criaturas violentíssimas, mas particularmente patéticas, pouco impressionantes fisicamente. O lance aqui é: em si, eles não são notáveis. O que os tornam perigosos são suas armas. Com elas, são deuses capazes de apagar um vilarejo do mapa em questão de horas.
Dentro do prédio central, o coronel reina soberano sobre seus animalescos subalternos. A única mulher presente é seu brinquedo sexual exclusivo, intocada pelos demais. Objetos sacros são usados como cabide ou suporte pras vestes militares e armas do líder do grupo. Deus é secundário diante do deus militar e seus falos cromados.




A maldade daqueles homens também é indicada no filme pelos animais associados a eles: percebam que quando os 3 criminosos anteriores aparecem, vem com eles um grupo imenso de cabras. Quando o líder do bando surge soberano já fardado, uma leva de porcos surge atrás. Biblicamente, cabras e porcos são animais associados ao demônio em pelo menos duas passagens notáveis, quando Cristo diz que vai separar os bons dos maus, comparando os bons a ovelhas e os maus a bodes. E os porcos, na famosa cena do exorcismo de Legião, quando Jesus desova a leva de demônios dentro de um bando de porcos nas proximidades, que se atiram de um penhasco logo em seguida..
Aliás, sobre isso, o cavalo preto do pistoleiro de preto tb tem um backstory cristão: um dos cavaleiros do apocalipse, o Fome, é descrito no livro das revelações montado num cavalo negro. Ele traz em mãos, segundo o livro sagrado dos cristãos, uma balança. Algumas interpretações atribuem a ele um aspecto positivo, de que ele vai julgar os bons e maus. Outros afirmam que o instrumento é pra remeter a escassez de alimentos e ao aumento de preço destes. E de fato, El topo julga várias pessoas no decorrer do longa. E quando ao aspecto de fome, mais de uma vez ele é mostrado faminto, seja literalmente ou, usando os termos dele próprio, "com fome de Deus". Inclusive, é essa fome que vai, fundamentalmente, arruiná-lo ao final de sua jornada. 
Confirmando meu ponto de que aqueles homens eram patéticos sem suas armas, o pistoleiro consegue domina-los facilmente. Aqui termina o preâmbulo e começamos o segundo capítulo, "Genesis". 
Considerando que militares são a definição by the book de valores masculinos de força e brutalidade, não é uma coincidência que a punição reservada ao Coronel seja a castração: El Topo capa o sujeito sem dó. Desprovido de seu principal "revolver", só resta ao militar o suicídio via "auto-felação" - ou seja, explodindo os miolos com uma arma na boca. Os demais criminosos são executados sem dó pelos sobreviventes e a guria que morava ali decide "se convidar" a seguir em viagem com o homem de preto, para surpresa do menino. Diante de uma escolha, o aventureiro deixa o garoto pra trás e segue viagem com a mulher, não sem antes mandar feito um tiro pro seu filho "Destrua-me. Não dependa de ninguém".



Sim, El topo é um escroto por abandonar o moleque, mas vale ressaltar que a frase tem uma gênese nobre, remetendo a aquele conselho de Buda de que "se você encontrar Buda algum dia, mate-o". Resumindo: cuidado com teus heróis, com o tipo de pessoa as quais vocês atribuem o status de herói, de figuras de influência, em suas vidas. Com relação à moça, rebatizada pelo pistoleiro de Mara, em refêrencia a um rio de águas amargas que Moisés encontrou em suas aventuras bíblicas: eu sei que ela é uma figura "real", tal qual o filho do atirador. Mas não consigo não enxergá-la como algo metafórico, a personificação do ego e vaidade do personagem. Veio dela, do nada, quase como um impulso, o desejo de enfrentar os 4 mestres de armas. Pq? Orgulho. E ele aceita sem pensar. Por amor? Dessa forma, quando o garoto se coloca entre os dois algumas cenas antes, ele personifica a pureza da busca do seu pai, até então motivada realmente pelo interesse em iluminação pessoal. A partir do encontro com a moça, passa a ser sobre ego, principalmente pq as subsequentes vitórias contra os 4 mestres não parecem lhe trazer satisfação, visto as expressões e toda a linguagem corporal do personagem após suas 3 vitórias iniciais. Podem não ter sido vitórias "limpas", visto que ele teve que usar de trapaças e subterfúgios pra derrotar seus adversários, mas não dá pra negar que elas ocorreram pq, de fato, ele aprendeu algo com cada um de seus oponentes.



Eu falei, no titulo desse texto, sobre várias verdades. El Topo é um personagem fundamentalmente pós moderno, disposto a abandonar dogmas pessoais quando estes se interpõem entre ele e o acesso à Verdade, esta com V maiúsculo. Quando uma trajetória se mostra falha, ele recomeça, contanto que haja uma nova verdade, essa com inicial minúscula, despontando ao longe, quase como uma nova rota que aparece do nada, depois de você se ver perdido em meio a uma estrada desconhecida que vai do nada para lugar nenhum. Antes do encontro com o Coronel, ele era um personagem estóico numa jornada filosófica. Após o confronto no vilarejo franciscano, o lance passa a ser satisfazer sua hubris, alimentar seu ego ao alcançar a posição de "melhor do mundo". A cada vitória, o custo pessoal parece pesar mais e mais sobre os magros ombros do personagem de Jodorowski: os 3 primeiros mestres são calorosos com ele, treinando-o e tentando torna-lo um homem - e um guerreiro - melhor, enquanto o homem de preto responde a isso atirando de forma sorrateira ou trapaceando covardemente. As vitórias são desprovidas de substância. O primeiro mestre, um homem cego, é derrotado ao pisar num buraco com estacas previamente preparado pelo oponente. O segundo, o filho da leitora de tarot é morto depois do personagem principal usar o amor dele por sua mãe como uma arma para distraí-lo. O terceiro, o criador de coelhos - outro animal simbólico, que está associado à fertilidade e fartura. Não coincidentemente, os bichinhos começam a morrer do nada com a chegada do atirador - consegue atingir o inimigo, mas este havia se protegido com um prato de cobre que havia aprendido a fazer no período em que conviveu com o mestre anterior.






Pode se dizer que, de uma forma ou de outra, os 3 homens foram mortos a partir de elementos de suas crenças que foram apropriados e subvertidos de forma egoísta pelo Toupeira. O que nos traz ao último mestre: o caçador de borboletas, o único que derrota de fato o rival por não ter nada, absolutamente nada a perder ou a oferecer para que seja utilizado pelo man in black contra ele mesmo. O homem se mata para provar seu desapego pela existência física e, com ele, leva a segunda chance do pistoleiro de encontrar a iluminação. A primeira, negada pelo mundo violento em que vive e por suas tentações. A segunda, tirada dos seus dedos por um homem tão superior que nem a morte é uma ameaça digna de preocupação.  Começa aqui a sua via crucis. 

PROFETAS

Não sei se eu entendi exatamente quem é a mulher de preto com voz masculina que a partir de certo ponto, passa a acompanhar El Topo e Mara, mas no momento em que ela tortura a amante do cavaleiro, passei a enxerga-la como aquilo de animus e anima, o feminino no masculino e vice versa, do protagonista. De novo: pra mim, Mara é o Ego do personagem. Não coincidentemente, ela perde o interesse nele após ele renunciar à violência depois dos eventos no capítulo anterior do filme: ele mesmo renunciou ao ego, arrependido da jornada de sangue que vinha empreendendo até então. Mara e a mulher de preto partem e o atirador é deixado sozinho. 
A partir daqui, é quase um filme diferente. O elemento de western esotérico dá lugar à uma sátira social ácida sobre a sociedade capitalista ocidental. Resgatado por um bando de pessoas com deformidades físicas, o nosso "herói" moribundo é levado a uma caverna e mantido em meditação por décadas. Quando desperta, já há algo diferente.



As roupas pretas, substituídas por trajes brancos e, posteriormente, pelo manto clerical marrom. Lá, uma mulher anã lhe explica que aquelas pessoas foram aprisionadas naquela caverna há certo tempo, pelos moradores de uma grande cidade próxima e que eles são os filhos renegados dos moradores de lá, ou, citando as palavras da moça "os filhos do incesto daquelas pessoas". Uma passagem no teto é o máximo que eles tem de perspectiva de futuro, tal qual as pessoas na clássica metáfora da caverna de Platão. Com a guria anã nas costa, El Topo parte dali em direção à tal passagem, com a perspectiva de conseguir ajuda para libertar sua nova família dali. O personagem, passa por um ritual de renascimento, onde tem cabelo e barba raspados, podendo adentrar para a nova vida como uma tabula rasa. Nesse ritual, ele devora um besouro, outro animal com forte valor simbólico e mitológico.



De fato, quando o toupeira volta ao local onde deixou os corpos dos 4 mestres, o primeiro deles está com o cadáver mantido intacto, coberto de mel e com abelhas ao seu redor. 

Sooooo....a cidade.



A primeira, sem brincadeira, a PRIMEIRA imagem que vemos do local é um grupo de cowboys armados, seguidos por um grupo de velhas senhoras com placas com imagens do olho que tudo vê.


Em seguida, outros cowboys perseguindo o que parecem ser escravos negros e latinos. Enfim, caçando não-brancos, para o entretenimento das senhoras de vestidos caros se escondendo sob a imagem do olho da Providência. A partir daí é ladeira abaixo. Um ultimo detalhe antes de adentrarmos essa parte do filme: percebam as construções naquele ambiente urbano e como, por todo o filme, vemos refletido aquele lance social de que o prédio mais alto dentro de uma comunidade costuma refletir seu principal centro de poder: a história da humanidade começa com os grandes templos religiosos, que vão ficar menores em comparação aos grandes castelos, mostrando a transição de poder, do núcleo religioso pro monárquico. Depois, com o fim do feudalismo e concretização do sistema capitalista, as grandes construções locais passam a ser empresas. Aí, chegamos aos dias atuais, em que centros bancários costumam dividir poder com grandes edifícios comerciais. Aqui em SP, por exemplo, não é uma coincidência que o maior prédio é o do Banespa, lá no centrão da cidade. Pq o poder transita: não mais na produção de bens e mercadorias, mas na circulação de riqueza imaterial. Quase como uma nova torre de babel, se lançado ao céu, tentando ferir os olhos dos deuses em sinal de desafio. Enfim, voltando ao longa, falemos de cidades profanas:







A cidade é um antro de corrupção e decadência moral com gente rica desumanizando os mais pobres e os tratando como animais, enquanto, longe dos olhos de seus iguais, eles sim adotam uma postura bestial de constante gratificação e saciamento das necessidades mais básicas. Tendo que conseguir grana e sem outras habilidades que lhe permitam outra função, resta a El Topo e sua companheira terem que apelar para a mendicância. O curioso é que ele afirma isso mas o que ele faz é entreter o publico com sketches cômicas e depois "passar o chapéu". O mendigo, na verdade, é um artista. Ou, o artista é um mendigo, o que preferirem. E considerando mais uma vez que é o diretor e roteirista desse filme no papel principal, isso quer dizer alguma coisa, não? A única coisa que as duas figuras tem para oferecer àquelas pessoas é sua arte. Enquanto isso, vemos o dia a dia dos membros da elite daquela comunidade: mulheres velhas estuprando um homem negro que as serve para depois se declararem chocadas e exigirem a cabeça do coitado, reagindo em júbilo diante do enforcamento do homem inocente, tudo diante dos olhos chocados dos nossos dois heróis.



Prevendo o pior, a mulher avisa "A cidade é pior que a caverna". Mas, como eu disse acima, o ex-pistoleiro é fiel às crenças (até deixar de sê-lo), e decide continuar cavando caverna adentro até libertar seus amigos. É visível o desconforto da garota naquele ambiente, mas depois de ter suas verdades destroçadas, vez após vez, esta uma "evolui", se podemos chamar assim, até se tornar um dogma na cabeça do Topo. É o que lhe resta. "Sigamos com o plano". O resto é improviso, suponho. 
De volta à cidade grande, agora eles chegam enquanto uma luta de boxe (entre os escravos, claro) está prestes a começar. Detalhe: as luvas dos contendores são cobertas de arame farpado. 



Diante da população em êxtase assistindo a contenda, o mendigo artista comenta:



Duas interpretações pessoais: a primeira vem do choque do uso de pessoas e da violência entre elas como fonte de diversão. A segunda, que vem diretamente do lado de entertainer do diretor mexicano, é a de que formas de arte mais puras e, grossas aspas, "inocentes" acabam sendo deixadas de lado pelo grande público, mais interessado num escapismo mais sensacionalista e histriônico. Se isso já era verdade nos anos 70, que dirá HOJE em dia, com a tv forrada de programas policiais explorando o pior da humanidade, reality shows que são quase rinhas de galo pra humanos e muito material tentando apelar pro mínimo denominador comum do público. Arte fast food. Sacia momentaneamente mas  é esquecida depois de 30 segundos. Na cena seguinte, e me perdoem se eu soar exageradamente gráfico, o casal, atrás de $$$, é contratado para, literalmente, lidar com a merda de gente branca. Pausa pra uma crítica para os representantes da lei locais, tão corruptos quanto a população que defende e o sistema ao qual servem.



Aliás, pausa mesmo, um comentário: o xerife e seu ajudante são visivelmente um casal gay, até pq eles abusam sexualmente dos presos ali, todos homens. Não acho que eles estejam aqui por homofobia do Jodorowski, acho apenas que o ponto é, de novo, a hipocrisia daquela sociedade, defendendo "decência" e condenando posturas que, longe dos olhos do tribunal social, elas próprias vão reproduzir até a exaustão. Aquela comunidade remete diretamente ao livro do Marques de sade, "120 dias de Sodoma e Gomorra". Cada uma das bases do que vemos como os pilares da sociedade ocidental, vão se mostrando igualmente corruptos, numa cadeia de exploração, violência e morte. O filme volta seus olhos, depois de mostrar os pecados do braço coercitivo do estado, os representantes da lei, para outra das bases de sustentação da capitalismo ocidental e daquilo que comumente nos referimos como "o sistema": a igreja.




Vemos, meio que rapidamente, um jovem novo frade chegando à igreja e sendo recebido pelo padre local. Em seguida, temos um ato religioso, onde, com a principal deidade desse mundo, um revólver, em mãos, o pároco realiza supostos atos milagrosos onde pessoas disparam simulam suicídio (spoiler alert: o padre fala para o rapaz recém chegado que as balas no tambor da arma são de festim). Um milagre vazio, anti-milagre apenas para mais um afago no ego das pessoas assistindo à missa. O recém chegado rapaz, botando pra foder e mostrando a que veio, substitui a bala de festim por uma de verdade. "Creiam e não morrerão" disse o líder religioso, mais cedo. Ironicamente, a fé irrestrita de uma criança diante da arma é exatamente o que vai resultar em sua morte, quando obviamente a pistola dispara, estourando o crânio do guri.  Aparentemente, Deus gastou toda sua cota de milagres com essas pessoas corruptas.



Voltamos para o casal de protagonistas, tendo que levar seu "ato cômico" para entreter homens durante uma orgia. De novo, "o artista vai aonde o povo está" e ocasionalmente, isso pode resultar em ter que adaptar sua obra para o gosto do seu público, mesmo que isso resulte em certa perda de integridade. Forçados pelas pessoas ao redor a copularem e comovido com a vergonha resultante em sua companheira, El Topo pede a mão dela em casamento e os dois vão até a igreja para sacramentarem a união. Chegando lá, são recebidos pelo frade recém chegado e..... Topo o reconhece. Yep, é o Hijo, abandonado anos antes. Como vocês podem deduzir, o rapaz se lembra do "destrua-me" que o pai lhe mandou antes de partir, e a reunião dos dois é menos calorosa do que poderia ser. 

APOCALIPSE

Decidido a matar o pai, o menino adota seus trajes negros.





Com o tempo e a convivência, no entanto, o coração do rapaz se apieda e os 3 - 4, já que a companheira do ex-atirador está grávida - acabam formando uma frágil e mal ajambrada espécie de família. Aí vem a vida e PLEU: finalmente os 3 conseguem abrir uma passagem na caverna, mas antes que pudesse controlar o fluxo de gente e avisa-los do perigo iminente na cidade vizinha, as pessoas aprisionadas ali partem feito uma manada de búfalos, incontrolável, indo em uníssono para o centro urbano nas proximidades.


Como era de se esperar, os moradores da cidade não querem "gente diferenciada" ali e fazem a coisa mais decente e humana que se poderia esperar de bastiões da moralidade como estes: passam fogo em um por um dos "invasores". El Topo chega tarde demais para fazer diferença, encontrando todos os membros da sua comunidade assassinados a sangue frio.



Mais uma verdade, o que lhe conferia propósito e um objetivo de vida, um norte diante dos horrores daquela cidade profana e hipócrita, cai por terra, cravejada de chumbo. Sem deus, sem esperança, sem propósito e sem verdades para as quais fugir, só resta ao personagem resgatar de dentro de si o lado pistoleiro e queimar um por um dos putos naquela cidade maldita, o que ele faz e faz sem dó. GOD em sua essencia. G.O.D. Generator (criador, pai de duas crianças). Ordenator (juiz, juri e executor) e Destrutor (como dito, executor. Passando sem dó quem não fosse digno de sua misericórdia). Tal qual o messias cristão, no apocalipse que batiza este capítulo final do filme, ele ressurge ressurrecto, não mais como cordeiro, mas como leão, separando os carneiros dos bodes. Citando Ferréz, "Paz a quem merece. E aos que não, guerra".








A cidade sofre seu expurgo. A classe dominante é toda executada feito cães. A população explorada, corre em liberdade, como os cavalos selvagens que disparam libertos, antes deles.
Só resta ao homem seguir o caminho do quarto mestre e ir procurar pela Verdade em outras dimensões. El topo se auto imola e encerra assim sua busca nesse plano, imperfeito demais para oferecer qualquer resposta. 





Sua esposa e seus filhos partem, em busca de suas próprias verdades.  
E no túmulo do santo assassino, abelhas, um simbolo de prosperidade e pujança, surgem, tal qual como no local do descanso final do primeiro mestre das armas.





El Topo é um tapa na cara, levantando, 50 anos atrás, questões e defeitos da sociedade que são pertinentes até hoje em dia. Exploração de minorias, supervalorização de armas de fogo, uso de religião e da imagem de Deus para exploração de grupos e ganhos pessoais. Verdades alternativas servindo apenas ao benefício da corja de glutões que as criou e as sustenta como pilares de uma sociedade "civilizada". Tudo ali, tudo igual aqui. 
E o que mais nós somos, individualmente e enquanto grupo, nesse mundo de pós modernidade e de realidades líquidas, citando Bauman, senão aventureiros como o El Topo, pulando de verdade em verdade até encontrarmos aquela capaz de nos satisfazer? Uma puta obra densa, tipo um Rorschach em que cada pessoa vai encontrar detalhes e mais detalhes, que vai exigir múltiplas revisitas para a apreensão de sua mensagem. Cada versão e cada visão pessoal, uma verdade, ainda que com uma Verdade maior conectando todas elas. Entendo se as pessoas acharem o final um pouco negativo, mas prefiro, sendo eu a pessoa copo meio cheio que sou, enxergar certo conforto no fato de que o ex homem de preto encontrou conforto em sua vida prévia com sua primeira esposa, mãe do Hijo e depois, na caverna com aquela legião de proscritos e rejeitados sociais. Não estivesse tão cego diante da própria busca e da sua fome de deus, algum deus, alguma luz, talvez ele tivesse encontrado deus na convivência com aquelas pessoas, naquele tipo de mágica que surge das relações que fazemos durante a vida e dos momentos, tão curtos e fugazes, que passamos juntos uns dos outros. Deus nos fez a sua imagem e semelhança. Quando nos encontramos de fato uns com os outros, estamos também contemplando deus, não? E não é bíblico isso de deus ser a Verdade e a vida?
Não sei, pode ser viagem minha. Mas essa é a minha leitura desse filme maravilhoso.
Essa é a minha verdade. Qual a sua?

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