Okay........... eu tenho 40 anos de idade e estou tentando de qualquer jeito mudar minha vida. E isso dá um medo absurdo. Não que não teria tal efeito em mim se eu tentasse mudar de vida aos 20 ou aos 30. Aliás, eu tentei - e fui bem sucedido, diga-se de passagem - fazê-lo nessa idade - vim de Avaré pra SP pra tentar passar no vestibular com 22. E eu tive um medo absurdo.
Já disse antes que eu tenho um plano, né? Vir pra SP, fazer vestibular num curso que não demande muito trabalho, me formar, trabalhar num trabalho que não demande muito esforço e usar o $$$ disso e a liberdade de ser um, como já dito, trabalho que não demanda esforço, pra estudar e me aprimorar naquilo que eu, de fato, quero fazer.
Simples, certo?
Mas aí vem as bolas curvas que te pegam de jeito: o salário é bom. E o dinheiro vai fácil nos livros, jogos, bonequinhos e restaurantes. E vc começa a ficar confortável. E tipo, o que vc acha que sabe, na moral, SABE fazer bem envolve se jogar num oceano cheio de predadores, alguns mais novos, tentando se provar, outros mais velhos, versados no jogo, querendo se manter nadando pelo máximo de tempo possível. Aí vc perde o tesão. Normal. O problema é a vozinha na cabeça te dizendo que o tempo tá passando e que o talento.....bom, esse é o ponto em que esse preâmbulo revelador se conecta ao real foco desse texto: as mais de 50 páginas lidas, entre semana passada e essa, de Infinite Jest. Nesse ponto do livro, teve bem pouco world building, mas CACETE, como esse texto é bom. Ao invés de apresentar o mundo, esse excerto que li traz textos que são quase artigos - e alguns são de fato, ensaios e relatórios escritos pelos personagens - onde podemos ver suas opiniões e, no processo, a de Foster Wallace sobre temas como tênis (onipresente), expectativas, talento e como gerações inteiras foram estragadas por Marlon Brando e James Dean.
Sério, tem passagens aqui - e dessa vez eu realmente pus notinhas e marquei páginas e foram várias e várias - que eu vou lembrar pelo resto da vida.
Em um artigo, Hal cita as diferenças fundamentais dos heróis clássicos e das versões destas já inseridas no pós-modernismo e na era desconstrutivista dos anos 80, a partir da comparação dos protagonistas de Hawaii 5-0 e Chumbo Grosso.
"Steve McGarret não sofre impedimentos causados pelas tarefas administrativas de um chefe-oficial-de-polícia, nem por mulheres, nem amigos, nem emoções, nem por nenhum tipo de exigência que exija sua atenção. O seu campo de ação fica livre de entulhos que o distraiam. (...) Por outro lado, o Capitão Frank Furillo é o que se costumava chamar de um herói pós-moderno (...), um herói cujas virtudes são as que competem a uma era mais complexa e capitalista. (...) Um herói de reação."
De fato, achei muito pertinente a colocação de que a diferença fundamental dos dois é que o herói clássico, se pensarmos numa manada de animais levados por um pastor, ocupa a função do pastor em si, distante dos demais por sua retidão mortal e fortitude ética. Já o herói pós-moderno, onde se encaixam tb Rambo, John McClane, o Batman do Frank Miller, etc., é, nessa metáfora, um dos animais no meio do rebanho, tentando guiar seus semelhantes a partir da própria força de vontade, tateando no escuro e improvisando sempre que der.
Mais a frente, num relatório sobre o fracasso dos videofones nesse universo, rola algo mágico: começamos um texto extremamente frio e cheio de termos técnicos e, quando menos esperamos, caímos numa reflexão extremamente humana sobre vaidade e a nossa necessidade de atenção.
"Uma conversa tradicional somente áudio deixava você entrar no desligamento semiatento e hipnótico de uma autoestrada: enquanto conversava, você podia olhar em volta da sala, rabiscar, criar haicais de bloco de anotações (...). No entanto, na mesma medida em que você dividia a sua atenção entre a chamada telefônica e tudo quanto era atividade ociosa e desligamentística, por algum motivo você nunca se via assolado pela suspeita de que a atenção da pessoa do outro lado da linha pudesse estar dividida de maneira similar. (...) Durante uma chamada tradicional, por exemplo, enquanto digamos, realizava uma detida análise tátil de suas imperfeições no queixo, você de modo algum se via oprimido pela idéia de que a sua contraparte fônica talvez estivesse devotando uma bela percentagem da sua atenção a uma detida análise tátil de imperfeições. Era uma ilusão e a ilusão era auditiva e auditivamente sustentada.(...) A videotelefonia tornou a fantasia insustentável"
A seguir, o autor nos mostra uma conversa entre um jovem James e seu pai, onde o velho Incandenza revela ao garoto sua paixão pelo tênis e parece que a conversa vai ser sobre isso, quando, subitamente, ele decide abrir o coração e descrever o momento em que ele deixou de ser um atleta para virar apenas mais um exemplo de potencial perdido - e sim, isso vai se relacionar diretamente com a relação crescente de maus pais encontrados nas páginas de Graça Infinita meio que num esquema tipo "ciclo da escrotidão"
"O cliente do meu pai que disse 'Mas cacilda, Incandenza, como é bom esse teu garoto'."
"'É, mas ele nunca vai ser grande"
"É culpa minha, Jim. Tanto tempo em casa (...) com medo de dar ao meu último talento a chancezinha que ele exigia. O talento é a expectativa do próprio talento, Jim: Ou você vive o talento ou ele te acena de lencinho, pra sempre se afastando. É teu ou adeus. Eu....eu só tenho medo de ter uma lápide que diga AQUI JAZ UM VELHO PROMISSOR. Ter potencial pode ser pior que a falta dele, Jim".
Isso e a frase do pai de James dizendo que nos enxergamos nossos pais como móveis, que sempre estiveram e sempre estarão aqui ao nosso lado cortou fundo em mim, confesso.
E por fim, voltamos a Hal, agora num discurso escrito por ele e Mario, onde o guri dá a sua perspectiva a respeito da idéia de talento, mas agora descrevendo a visão de dentro da coisa, e como aquilo que chamamos de talento tem muito mais a ver com sacrifício e trabalho duro e uma quantidade obscena de dor física e emocional.
"Dê uns mil saques. Depois de cada saque você tem que quase cair de cara na quadra e num único gesto fluido se dobrar e catar as chaves com a mão esquerda. É assim que você se treina para subir pra rede depois do saque. É assim que você segura a raquete. (...) Aperte a bola de tênis ritmicamente mês após ano até você não senti-la mais do que sente o coração espremendo o seu sangue e o seu antebraço direito estar três vezes maior que o esquerdo (...). É assim que você enverga um agasalho vermelho e cinza da ATE e corre em grupo 40 km por semana (...) mesmo que você preferisse tocar fogo no cabelo que correr num grupinho. Correr é doloroso e inútil, mas não é você quem dá as ordens. Tenha um pai cujo próprio pai perdeu o que estava lá. Tenha um pai que viveu tudo o que prometia e depois ficou encontrando cada vez outra coisa em que atingir e depois ultrapassar as expectativas do que prometia nelas e que depois não parecia nem a pau mais feliz ou menos despirocado que o seu próprio pai fracassado o que te deixa numa espécie de estado selvagem e tomado pela velocidade do fluxo no que se refere ao talento. É assim que você evita pensar em qualquer dessas coisas treinando e jogando até que tudo corra no piloto automático e o exercício inconsciente do talento se transforme numa maneira de escapar de você mesmo, um longo sonho desperto de puro jogo".
A questão se aprofunda: se potencial desperdiçado e a ausência deste são mortificadores, aparentemente o potencial concretizado também pode provocar mais angústia existencial e dor do que necessariamente felicidade e contentamento. (sobre isso, inclusive)
Sério, esses textos, conjuntamente, formam um mosaico fascinante de visões de mundo sobre talento e as oportunidades da vida, as que aproveitamos e as que não, as chances concretizadas, os momentos de sucesso e aqueles que deixamos escapar, que viraram situações hipotéticas, daquelas que vislumbramos entre sonhos, horas perdidas e devaneios sobre o que poderia ter sido. Além disso, tb é sobre aqueles momentos em que nos perdemos fazendo aquilo que amamos e quero dizer nos perdemos MESMO, em que abandonamos aquilo que somos, deixamos nosso "self" ao léu, como um barco abandonando o porto e abraçamos a totalidade daquilo que temos como paixão. No caso de Hal, o tênis. No meu, consumir e escrever sobre cultura pop. No caso de um pintor, as tintas, as telas, o ato de se se esquartejar em forma de arte. Tocar o sublime. E nem falo de fazer isso de forma excelente, mas apenas de fazer, do ato de se perder em si. As comparações com o resto do mundo virão, como o mais novo dos Incandenza afirma, seja com os que são melhores que vc, seja com os piores. Em ambos os casos, um espelho, e, em ambos os casos, assustador.
De dentro desse abismo de miséria existencial, a única saída é rir, a principal forma de rebeldia diante de um universo frio e de um contexto de mundo desalentador e, sabendo disso, DFW oscila entre esses momentos de truth bombs e outros de comédia rasgada, que, no ponto em que estou da obra, se concentram no tb aluno de Enfield Michael Pemulis, tenista e traficante de substâncias ilegais. Substâncias estas que acabam sendo uma das únicas fontes de algum alívio pra esses personagens, cuidando de todas as suas dores, não apenas as físicas. No capítulo protagonizado pelo rapaz, conhecemos uma prática bastante comum nesse ambiente: o tráfico de urina para testes anti-dopping que conta com o hilário slogan "se mijando de medo? mije com nossa urina".
Nesse ambiente desesperador que é um colégio para esportistas de elite, inserido, por sua vez, num mundo em frangalhos como é o cenário distópico em que se passa a história, essas risadas trazidas das pequenezas cotidianas são o que acabam motivando aquelas figuras.
Enfim, a leitura segue incrível, o texto é maravilhoso (sério, tem páginas que são blocos e blocos de texto, um parágrafo por página e quando vc vê, já foi e vc devorou o negócio em minutos que, na real, pareceram segundos).
Num primeiro momento ele pode, de fato, parecer um tanto assustador mas creiam-me, Graça Infinita tem, em sua alegria e em sua tristeza, sido uma experiência absolutamente recompensadora.
Semana que vem eu volto com mais, ímpios.