sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Graça Infinita e chá de hortelã - Parte 1



So.... Infinite Jest. Um livrão impressionante, algo que vc nota antes mesmo de abrir o bichão.
Mais de 1000 páginas organizadas num tijolão de um quilo e meio. Já vi gente se referindo a ele como o "Ulisses" da nossa geração. Uma obra que desafia qualquer resumo e categorização arbitrária a respeito dos seus temas. Comédia, drama, vários estilos de escrita. Caos, feito a vida. Mas um caos ordenado: não vou falar do grande tema que nos é apresentado no resuminho no verso do livro pq eu geralmente evito ler sinopses. Gosto da idéia de ser pego completamente de surpresa.
Do que eu li, no entanto: É um mundo como o nosso, mas diferente. Em algum momento do começo dos 2000, o governo americano subsidiou a contagem de tempo dos anos para empresas privadas. Então, não temos mais anos numéricos, 2011, 2019 e tals, mas anos definidos pelo branding escolhido: ano da fralda geriátrica depend, ano do sabonete dove - amostra grátis, e tals. O mundo, ou pelo menos a parcela dele que vemos nesse primeiro momento da obra, também mudou. Estados Unidos e Canadá meio que formaram um grande bloco econômico (até aqui eu não sei se eles viraram um país só, mas parece) batizado ONAN. Nesse mundo (e os motivos dessas mudanças ainda não me foram apresentados), acompanhamos a história da família Incandenza. O pai, James, fundador da academia/internato Enfield, uma escola para formação e treino de jogadores de tênis, ex jogador e ex-cineasta, morto, aparentemente via suicídio. Seus filhos, Orin (um viciado em drogas), Mario (não entendi ainda qual, mas ele claramente sofre de algum tipo de deficiência) e o mais novo, Hal (tb um tenista, extremamente inteligente e articulado, mas que sofre de algum tipo de problema convulsivo).  Na trama, até o ponto em que estou, as únicas conexões entre esses personagens, além obviamente dos laços de parentesco, é a ligação, em algum nível, com o tênis.



Além deles, temos também os pontos de vista de Don Gately, outro viciado em drogas e que financia sua adicção com dinheiro obtido com roubos domésticos, Kate Gompert, outra usuária recorrente de maconha (começo a enxergar um padrão) internada num hospital psiquiátrico e que sofre de depressão severa, Mini Ewell, um anão também passando por um processo de reabilitação, Bruce Green, um rapaz cuja principal característica, até aqui, é estar apaixonado por uma garota com o peculiar nome de Mildred Bonk, Gerhard Schtitt, um dos professores de Enfield, com um passado de maus tratos com seus alunos, Marathe, um soldado da frente revolucionária canandense que parece estar atrás de um item conhecido apenas como "O entretenimento" e Clenette, de quem não sei muita coisa exceto de que sua meia irmã está sendo abusada pelo padrasto. Padrasto este que está na mira do irmão da moça, Reginaldo. Ah, e tem o adido médico, que num momento de relaxamento, achou.... algo... que eu ainda não sei o que é, mas que até aqui, já resultou em mais de duas dezenas de personagens mortos, incluindo ele próprio. Todos parados diante de uma TV. 
Vejam bem: cento e dez páginas. Isso não é nada. E no entanto, uma pá de coisa já rolou. 
Então...sobre a leitura: não sou marinheiro de primeira viagem, já tendo lido 2 livros do DFW, os já publicados aqui "Breves entrevistas com homens hediondos" e o "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo". E mesmo que estas duas obras não sejam de ficção ou, pelo menos, não inteiramente, reunindo contos curtos e artigos, elas já trazem elementos da escrita do autor americano que vão se repetir também no Graça Infinita: seu extremo cuidado com descrições, seu humor, as digressões filosóficas, a preferência por polissílabos e um monte de outras palavras difíceis e bonitas...... Estilisticamente, o texto se adapta ao personagem que estiver falando: Norma culta quando é o jovem Hal falando. Texto mais coloquial, por exemplo, na parte protagonizada por Clenette. Numa passagem em que ele precisa retratar a ansiedade de um dos personagens esperando uma ligação particularmente importante, ele usa o recurso de parágrafos de página inteira como forma de expressar o fluxo ininterrupto de pensamentos do tal sujeito. 
Eu particularmente estou gostando bastante do estilo do autor, alguém capaz de tornar uma cena puramente descritiva absolutamente fascinante. Num dos livros dele que eu citei acima, tem um conto de 3 páginas que é basicamente ele descrevendo um segundo da vida de um homem deitado à beira de uma piscina e vc, ao ler, consegue quase enxergar de forma clara a cena com seus personagens estáticos, congelados nesse segundo perpétuo.
Um dos elementos já citados acima e que ele usa aqui como forma de tornar o texto mais agradável é o humor. Passagens descritivas ou extremamente filosóficas são intercaladas com outras engraçadíssimas (uma delas, envolvendo dois ladrões rancorosos, me pegou completamente de surpresa).
Sobre o tema do livro, acho que ainda é cedo pra afirmar qualquer coisa. Mas é visivelmente uma história sobre uma América quebrada e sobre seus filhos, igualmente quebrados. Todo mundo é depressivo, quase todo mundo é viciado em drogas, todo mundo com uma cota de traumas progressivamente crescente. Do pouco que eu sabia do livro antes de começar, vi gente descrevendo o mundo criado por Wallace aqui como distópico e, de fato, existe aquele elemento de desespero coletivo típico de histórias distópicas. As pessoas são como tubarões aqui. Num mundo em frangalhos, eles tem que continuar suas vidas, continuar com seus vícios, continuar a nadar, pq se pararem, o peso existencial vai vir, como ocorre com a personagem da Kate. Tem algo, não sei se no tom do narrador ou dos diálogos, que me lembra muito o estilo do Wes Anderson, quase como uma versão mais dark de seus filmes.


Minha passagem favorita até aqui se encontra na página 89 (da edição nacional da Companhia das Letras), em que Schtitt numa conversa com Mario, explica a ele o que faz o Tênis um esporte tão mágico. Não gosto de esportes no geral, mas como os senhores sabem, eu sou maluco por pro-wrestling e consigo ver no que ele fala algo perfeitamente relacionável pra mim como fã de luta livre e pra qualquer um de vcs, fãs de qualquer tipo de esportes individuais: "O verdadeiro adversário, a fronteira delimitadora é o próprio jogador. Sempre e só o eu que está lá, em quadra, a ser enfrentado, combatido, levado à mesa em que será forçado a aceitar os termos. O garoto que compete do outro lado da rede: ele não é o inimigo; ele é um parceiro de dança. Ele é a (...) desculpa ou oportunidade para você encontrar o eu. Como você é a oportunidade dele. As infinitas raízes da beleza do tênis são autocompetitivas. Você compete com os seus próprios limites para transcender o eu em imaginação e execução. Sumir no jogo, romper limites, transcender, melhorar, vencer. Que é a razão de o tênis ser uma cruzada essencialmente trágica, para se aperfeiçoar e crescer como juvenil sério, com ambições. Você busca vencer e transcender o eu limitado cujos limites são a mesma razão do próprio jogo. É trágico, é triste, é caótico, é agradável. Toda vida é igual, como cidadãos do Estado humano: os limites vivificantes ficam dentro, á espera de serem mortos e pranteados, repetidamente".
Também vale nota pra passagem com Hal, tb conversando com Mario, explicando pq ele é ateu. "(...) eu tenho uns probleminhas para resolver com Deus. digamos que Deus tem um estilo de gerenciamento tipo relaxadão que eu acho meio contestável. eu sou basicamente anti-morte. Deus, por tudo que a gente pode perceber, é pró-morte. Eu não vejo como é que eu e ele podemos resolver essa questãozinha".
AH, antes que eu esqueça: aqueles dentre vcs que forem se aventurar pelo livro, NÃO PULEM AS NOTAS DE RODAPÉ. Não são notas de tradução mas elementos que fazem parte da trama, incluindo, num caso muito específico, uma nota de 12 PÁGINAS, descrevendo detalhadamente toda a obra cinematográfica de autoria do patriarca do clã Incandenza (que conclui com um filme incompleto chamado... "Graça Infinita". The plot thickens....)
Por tudo isso, estou gostando bastante do livro, ao mesmo tempo uma leitura mais complexa, mas mais fácil do que inicialmente eu pensava que seria.
E hey, aprendi duas palavras novas: denodadamente (de forma corajosa) e Vestiegenheit (baixo bávaro para "o estado de quem caminha sozinho por um território desorientador e arrasado além de todos os limites mapeados e de todos os marcadores de orientação").
Jesus Amado, falemos de línguas e suas especificidades, não? Enfim, por hoje é isso, ímpios.
Volto semana que vem com mais 110 páginas (mais notas) devoradas.

Ps: Apenas para efeitos de transparência, preciso confessar que meu chá de hortelã acabou, então esse livro foi lido, ao contrário do que indicado pelo título desta seção, com o auxílio de goladas e goladas de chá mate com limão :-). 

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