segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Brightburn: "Ao diabo, o que lhe é devido"



Não faz nem uma hora que vi Brightburn, filme de David Yarovesky, com roteiros de Brian e Mark Gunn. Ainda tô pensando nele. Ele deixa um gosto horrível na boca e na memória. E isso é um elogio. 
Acho que é uma das primeiras vezes que eu vi uma história que tenta desconstruir o trope do super herói e que não arrega no meio do caminho. Quase todas as histórias de uma versão evil do Superman se seguram aqui e ali pq "ele tem o bem no coração". Irredeemable chega perto, mas também acaba descambando pro "o bem vence o mal e no final, ele vai tomar a decisão certa". 
Brightburn ameaça, em um momento, fazer com que o protagonista pague por seus crimes. Mas aí.... 
Pra quem não viu, o longa conta a história do casal Tori e Kyle Bryer, fazendeiros do Kansas. Tentando engravidar sem sucesso, eles são surpreendidos com um bebê que literalmente cai do céu, dentro de uma nave. Sim, vcs conhecem como essa história começa. O lance é como ela termina. Tá tudo lá. O casal amoroso. A nave com um alien infante dentro. A lenta e gradativa descoberta de suas habilidades super-humanas. A aliteração no nome (Brandon Bryer). O crush adolescente. Novamente, o que separa o filho único dos Bryers do filho adotivo da família Kent é.....??? Então, fundamentalmente não existe diferença alguma entre os dois. Não há um trauma que faça com a vida do menino vá em direção oposta à de Kal-El. Não há uma experiência que vc possa apontar como um divisor de águas. Consciente de seus poderes, ele apenas decide usar suas habilidades pra se colocar em posição de superioridade diante de seus iguais. A resposta aqui é pura e simplesmente "ele faz o que faz pq ele é o único que pode faze-lo". 
É o velho debate do nurture vs nature. Nós somos o que o ambiente faz de nós ou somos meros escravos da natureza "inerente" de nossos genes? Uma pessoa boa criada em um ambiente ruim vai superar seu contexto e manter sua integridade moral ou somos escravos da lógica de causa e efeito?
Vejam bem, essa não é uma leitura que o filme faz. Ele tá interessado em ser um filme de terror e usar o trope do super herói, tão na moda, através da mitologia do super herói original, o maior de todos. 
Mas é impossível, exatamente por isso, não se permitir a leitura da obra em relação ao seu contexto. 
Vejamos da seguinte forma: Pq o Superman surgiu, em 38? Pq Matrix fez o sucesso que fez em 99?
Pq os filmes de super herói surgiram da forma que surgiram no final da década de 2010?
O que todos esses períodos tem em comum? 1938. Menos de uma década antes, o mundo tinha quebrado em virtude do crack da bolsa em 29. Ainda enfrentando as consequências da maior guerra de todas, o mundo vê crise econômica e o levante de movimentos de extrema direita no decorrer do planeta, oferecendo soluções fáceis pra botar tudo nos eixos novamente. O mundo precisava de um herói. O que Siegel e Shuster fizeram foi se aproveitar do zeitgeist, dessa necessidade coletiva, desse desespero e desasossego em escala planetária, e dar um messias pra geral. Num mundo em vias da extinção, um pai celestial dotado de consciência superior aos demais envia seu único filho que vem dos céus, para nos proteger e livrar-nos do mal. 
1999: Em tese, estava tudo bem. Mas havia de novo um mal estar coletivo, aquilo que o sobrinho de May Parker chamava de "uma dor de dente na alma". Virada de século e o mundo tinha medo de novo, ainda que sem saber exatamente do que. Os EUA, apesar da operação tempestade do deserto no começo da década, vivia novamente o estado de Nova Camelot, do império que, aparentemente, jamais iria tombar, posição em que se consagrou com o fim da Guerra Fria. No entanto, viradas de milênio sempre são períodos irrequietos. O "fin de siécle", como os franceses chamam, aquele nosso medo coletivo da potencial extinção trazida pela virada de século. Ampliada em escala de cem, já que falamos também da virada de milênio. Na cultura pop, alguns especialistas indicam que o fin de siécle começa com "O silêncio dos inocentes": o filme que tatua no inconsciente coletivo o medo do desconhecido, da figura nas sombras, do serial killer, um produto tão norte-americano quanto o jazz e a torta de maçã. "The Crow", "Se7en", a série "Millennium" e mesmo a produção original do Ten Thirteen de Chris Carter, "Arquivo X". Obras que brincavam com esse mal estar social. Ainda sem um rosto. Mas a impressão de que o paraíso tem uma serpente andando nas sombras, prestes a dar o bote. And then, enter The Matrix. O inimigo invisível, um sistema automatizado nos escravizando, oferecendo uma migalha de vida, um simulacro, um arremedo de existência em troca. Neo, é o novo messias, o the one. No lugar de uma máscara, óculos escuros. No lugar de uma capa, um sobretudo, também tremulando ao vento. And guns. Lots of guns. Muito se falou sobre a balança moral onde Matrix pairava e o quão pouca misercórdia os rebeldes conferiam às "coppertops" usadas como invólucro pelos agentes, meras vítimas do fogo cruzado. O lance era parecer cool enquanto se trazia o sistema abaixo (ou era o que parecia. Falo sobre Matrix logo, logo). 
Pós 2001: Acho que já respondi a pergunta, certo? Camelot vem abaixo no dia 11 de Setembro do primeiro ano do novo milênio. Um auspicio do que está por vir? O inimigo continua sem um rosto. Bom, sabe-se que ele é não branco. Então, condenemos todos os não brancos no caminho, pq, afinal, em algum momento um dos bad guys vai ser pego entre as vítimas inocentes e os fins justificam os meios, certo? Os filhos de Camelot, os adultos que eram crianças quando tudo parecia bem e o império parecia indestrutível, clamam por um retorno ao mundo que conheciam, o ÚNICO que conheciam até então. 
O mundo de novo clama por heróis. E Hollywood, aliada aos departamentos de licenciamento de quase toda grande editora de hqs dos EUA, responde. 
Os novos heróis são cool, são destemidos. Não precisam de identidade secreta. São maiores que governos estabelecidos, mais poderosos qualquer corporação e.... lutam para manter o sistema no lugar. Ricos continuam ricos, pobres continuam pobres e gatinhos seguem sendo tirados de árvores. 
Chegamos à 2019. Nerd é o novo cool. Os tais esquisitões que alegavam ser outrora motivo de chacota, são percebidos pelo "sistema" como uma fonte de $$$. Adolescentes perpétuos leais á brandings. Marvetes, DCnautas, Caixistas, Sonystas, Otakus, Bazingueiros. Commodities, mantendo um sistema em ciclo perpétuo. 
O que nos traz finalmente, à Brightburn. E novamente, ao ultimo filho de Krypton.



Na faculdade, numa aula da disciplina de estudo crítico de histórias em quadrinhos, eu defendi que Lex Luthor não é e nunca vai ser o vilão favorito de ninguém pelo simples fato de que ele nunca foi desenhado pra ser um personagem tridimensional. Não que nunca tenha ocorrido isso antes, mas mesmo Paul Cornell, em sua maravilhosa fase pela Action Comics, precisou jogar o personagem, tornado protagonista do gibi, contra quase todo o panteão de vilões da DC pra poder afirmar de fato, quem diabos é Luthor. Ele não é um visionário como Ra's Al Ghul, não é uma besta vítima da própria natureza predatória como Grodd, não é uma força da natureza como Darkseid e não é um psicopata, como o Coringa. Ele é o oposto a qualquer coisa que o Superman for. E este, por sua vez, é o receptáculo do melhor da humanidade. So, Luthor vai ser o pior da humanidade, dependendo da era. 
Nos anos 30, 40 e 50, ele foi o cientista "maluco", num universo que vinha do eletric horror, upgradeado pro atomic horror. Nos anos 80, ele foi o capitalista predador. Nos anos 2000, ele foi o presidente dos EUA, consequência da era Bush e prevendo a era Trump. Clark, por sua vez, é a oposição a tudo isso. Ele foi o cientista altruísta, que usava de sua mente brilhante na fortaleza da solidão, aliada aos músculos, para salvar o mundo. Nos anos 80, ele era o "small man" tornado gigante, o filho dos fazendeiros pobres do interiorzão dos EUA, que usava seu bom coração contra o magnata uber-capitalista. E no pós 2000, ele foi a lupa que trouxe á luz os crimes que o seu inimigo cometeu, usando a maquina estatal como escudo. Mas nenhum escudo faz frente à alguém com visão de raio-x. A vontade de muitos também pode ser corrompida e cabe aos poucos cientes disso, reverter tais erros. 
O problema, como vimos no Brasil, recentemente.... é quando o small man turned big é alguém sem muita preocupação pelo interesse de muitos. Ou pelo interesse de quem quer que seja que não ele próprio. O lance do Superman é que ele não vence sempre apenas pq ele está preso dentro de um sistema de produção serial, mês a mês e o personagem precisa ser mantido vivo pra vender gibi e ser licenciado pra tudo que é lugar. Há uma mensagem aqui que permeia qualquer história de super heróis: o bem sempre vence o mal. Simples assim.
O problema disso é que se o bem SEMPRE vence o mal, não há motivo pra se fazer nada. Não há necessidade de qualquer papel ativo, pq a providência sempre vai colocar a mão. Tudo vai ficar bem pq esse é o estado natural do universo. O bem vence o mal. 

BOM.........


Welllllllllllllllllllll.....







né? Não é bem assim. Nem perto disso. Brightburn tem um papel importantíssimo, mesmo em sua confortável posição de ser apenas um filme de terror descompromissado. Pq ele também é uma peça de arte, produzida num contexto específico. E que tem James Gunn na produção e seus irmãos no roteiro. O mesmo James Gunn que se viu num shitstorm de proporções colossais, sendo apedrejado por direita, apedrejado por esquerda, abandonado pela Disney e trazido de volta numa esquema meio "malz aê, fomos com a turba". Brightburn é a história de um small man, de um homem pequeno, tornado grande por forças maiores que ele próprio. E que usa tal força pra oprimir seus próximos e, conforme vai acumulando poder, o mundo, até este alcançar seu ponto de ruptura. 






Small men tornado grandes por forças alheias a eles próprios e que usam seu recém descoberto poder pra tocar o terror. Substituam small man por "nerds", forças alheias a eles próprios" por "capitalismo" e "tocar o terror" por.....bem.... "tocar o terror" e talvez vcs estejam perto de entender o ponto desse texto. Os heróis vieram nos salvar, mas que heróis? Qualquer um que fuja do padrão "homem branco hetero" é visto inicialmente com maus olhos pelo fandom (Mulher Maravilha, Capitã Marvel, Pantera Negra. A mera menção á um personagem gay num futuro filme da Marvel gera histeria coletiva dentro desses fandons). Brightburn é um filme sobre a nossa época. E é um cautionary tale, um conto preventivo, traduzindo ao pé da letra. Como Darren Mooney observou em seu artigo sobre o filme no "the m0vie blog", atentem pro foco principal de Brandon: a crush adolescente. A mãe dela. A policial ajudante do xerife. A própria mãe. Percebam como as mortes delas requerem mais atenção do rapaz do que as mortes de personagens masculinos. Como ele espera receber o afeto de Caitlyn, aliás, sua primeira vítima, como algo natural, um direito inato. Brandon, um jovem branco, instruído, dotado. 
A personificação dos Incels. Seus rompantes de violência vem do rancor contra o sexo oposto, num momento em que ele está se descobrindo sexualmente. "Take the world" não está tão distante, pra um adolescente capaz de explodir montanhas com um sopro, de "grab the pussy", pq afinal, o sexo oposto é o achievement máximo pra alguém assim. E Incels tendem a ser adolescentes tardios, levando essa atitude de rancor pelo decorrer dos 20, 30, 40 anos. E aí entra o contexto. Small men turned big. O sistema reconhece neles o poder aquisitivo. Nerd is the new cool. O problema é que essas pessoas e seu rancor vão ganhando poder e consciência dele. E eles estão zangados. And then, the world BURNS.






Falo de quadrinhos aqui mas quem viu a treta recente da Razer ou simplesmente já trocou dois dedos de conversa com qualquer guria que jogue games online sabe que isso não tá restrito aos gibis. Eu falo muito de pro-wrestling aqui e recentemente vimos um ep. do tipo, com uma lutadora do roster do Impact que foi agarrada por um fã. Qualquer fã de qualquer fandom já viu isso. Sou fã de rock e já vi pessoas da música sendo misóginas, transfóbicas, racistas e toda sorte de escrotidão. 
Ameaças de morte, tiroteios em escola, racismo institucionalizado, comodificação de minorias e de lutas sociais, assimiladas de forma "Huxleyniana" ao sistema. Trump, Bolsonaro, Malafaia, Duterte. Homens pequenos, tornados gigantes por forças externas e deixados pra transformar o mundo em cinza.
O que nos traz ao final do filme. Como eu disse antes, Brightburn é um cautionary tale e histórias preventivas NÃO PODEM ter final feliz. Pq, de novo, o final feliz é uma convergência de coincidências que sugerem que o estado natural do mundo é onde todo mundo termina bem e com um sorriso no rosto. Chapeuzinho vermelho foi comida pelo Lobo mas BENZADEUS, tinha o caçador passando perto. Cachinhos dourados entrou na porra da casa de 3 ursos mas UFA, pega nada não, ela correu de boas. João e Maria entraram na casa de uma bruxa canibal, mas é só ser mais esperto que ela e tá sussa. A Pequena Sereia praticamente vende a alma pra um demônio mas tá na moral pq, afinal das contas, "o poder do amor".
NOPE. A maioria desses contos de fada termina em sangue e tragédia pq a idéia é mostrar "meu filho, se tu se enfiar na porra da floresta, VAI DAR MERDA. SHIT WILL GOT REAL, MOTHERFUCKER. Não dá confiança pra porra do lobo pq ele vai te devorar, minha filha."


Brightburn não podia (e não pode, se tiver sequências) arregar, como Injustice arrega, como Irredeemable arrega, e mostrar o herói, tornado vilão, em um ultimo momento de humildade, acertando as contas com o passado. Redenção existe, mas não é a norma. As vezes, monstros são só monstros e é preciso lidar com eles com essa consciência. Deus não existe e não vai "botar as peças cuidadosamente no tabuleiro" pro "the chosen one" garantir o final otimista. Essa deidade não vai botar a mão na cabeça do vilão e faze-lo perceber a monstruosidade dos próprios atos, até pq, raramente o monstro se reconhece como tal. Final feliz não existe. O que existe é uma luta constante pra mudar a direção do barco em que estamos pra direção certa e exige esforço e trabalho e mais do que textão e digitar o nome em abaixo assinado do avaaz. No longa, uma garota adolescente, uma mulher adulta e um homem negro apontaram pro fato de que talvez, Brandon  tivesse "fora do prumo". O problema é que ninguém escutou. Too real, né?
Do alto da sua aparente falta de ambição, Brightburn acaba funcionando como um registro perfeito do momento de merda, do gigantesco clusterfuck em que estamos. O pior dos cenários, ele já apresenta, no alto de seu final sem esperança. O vilão não só ganhou um poder descomunal, como também encontrou outros iguais que pensam e agem como ele. E eles estão se unindo e ganhando força.
O que aquele mundo vai fazer pra para-los?
E o que o nosso vai fazer pra deter os nossos monstros? Olhar pro lado e dizer que eles são só exceções, not all men, não funciona. Pq exceções são negações da regra, da norma. E quando as exceções ocorrem em vezes demais pra serem consideradas exceções, elas viram regra. "Nem todos os homens.... mas talvez a maioria esmagadora". E aê? O gênio saiu da garrafa, o monstro tá solto tocando o terror. As pessoas estão gritando que tem algo errado.  Vamos, como grupo, continuar a ignora-las, fingindo que tá tudo bem, até estarmos enterrados num mar de sangue ou vamos fazer algo e impedir que o nosso mundo vire um cautionary tale pra gerações futuras? 

..... mas é só um filme de super heróis... certo?

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