quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Relicário - sobre homens e monstros

O relicário é a seção fixa do blog em que eu olho pro passado e revisito alguns gibis, tanto pérolas das eras de ouro, prata e bronze, quanto novos clássicos lançados há não tanto tempo

Johny Cash - I see a darkness (roteiro e arte de Reinhard Kleist)



Aqui não tem muito segredo: Reinhard Kleist é um monstro nesse tipo de gibi biográfico e, da mesma forma que ele fez contando as histórias de vida de gente tipo Fidel Castro e Nick Cave, ele mergulha fundo na vida de um dos maiores nomes da música pop de todos os tempos. Quem já leu "Mercy on me", biografia quadrinizada sobre a vida do líder dos Bad Seeds, vai reconhecer a estrutura: excertos da vida de Cash, misturado com passagens de suas músicas, onde as linhas separando arte, ficção e vida real ficam nubladas. E com um traço particularmente bonito. Sinto que a obra funciona bem melhor que "I Walk the line", filme tb sobre a vida do Man in black com Joaquim Phoenix e Reese Whiterspoon nos papéis principais. Os vícios do cantor, tal qual como no filme, ocupam um lugar importante na trama, mas Kleist encontra um equilíbrio que, talvez, tenha faltado no longa de James Mangold (e vejam bem, falo isso mas adoro aquele filme).  Além deste, outros momentos importantes da vida de Cash são abordados, de suas origens humildes até a consagração, culminando na apresentação em Folsom.  A conclusão vem, melancólica, já focando nos anos finais de músico, numa passagem particularmente tocante em que o vemos conversando com Rick Rubin, produtor de seu álbum "American Recordings", disco de covers lançado em 1994 e que reintroduziu o Homem de Preto para toda uma nova geração. O gibi é extremamente tocante e consegue passar toda a "gravitas" característica da história de um dos maiores nomes de qualquer gênero musical que já passaram por essa terra e o faz sem precisar daquela estrutura engessada de biografias hollywoodianas. Kleist o faz com poesia e graciosidade, conferindo à vida de Johnny Cash o ar de obra de arte que ela, de fato, foi. 

Rock Bottom (roteiro de Joe Casey e arte de Charlie Adlard)



Esse segue na mesma linha do "O que aconteceu ao homem mais rápido do mundo", onde Dave West e Marleen Lowe perguntam: o que aconteceria se alguém apresentasse poderes ou características que só vemos em gibis de super heróis, mas no mundo real? No gibi acima citado, um jovem desenvolve super velocidade. Aqui, Joe Casey e Charlie Adlard evocam o espírito do membro mais carismático do Quarteto Fantástico e filho mais famoso da Yancy Street e nos mostram alguém que, literalmente, está se transformando em pedra. A trama, pesada (sem trocadilhos) como seria de se esperar, usa esse elemento fantástico pra falar de doenças degenerativas e sobre a nossa relação não apenas com a morte, mas com a decadência física. O protagonista, Thomas, tem apenas 32 anos (8 anos mais novo que eu), ainda naquele ponto da vida que vc acha que é imortal e que "velhice" está há milênios de distância, então quando a verdade vem, ela vem com força. Nesse ponto, a graphic novel se aproxima de outra pedrada (novamente, sem trocadilhos) em forma de gibi: Rugas de Paco Roca, também sobre gente tendo que conviver com o fato de que seu corpo está definhando muito rapidamente. O traço de Adlard é lindo e o gibi é todo desenhado em preto e branco, trazendo tons de cinza apenas para representar o avanço da doença no protagonista.
Um bom gibi, com um tom intimista e que traz reflexões interessantes sobre a condição humana e seu inevitável final. A conclusão, apesar de trágica, traz algum conforto. Podem ir sem medo de ficarem deprimidos pq, apesar de tratar de assuntos complicados como morte, aborto e o direito de escolher como e quando morrer, o quadrinho o faz de forma muito delicada e com o devido cuidado.


Dark Ark - (Roteiro de Cullen Bunn e arte de Juan Doe)



Esse é um gibi que me pegou pela estranheza de seu roteiro: a idéia aqui é que, quando Deus decidiu dar reset na sua criação da forma mais razoável possível, ou seja, afogando geral num dilúvio que durou mais de 40 dias, não uma, mas DUAS arcas partiram levando sobreviventes. Uma carregando os filhos do mundo "natural" e outra carregando os seres sobrenaturais. Vampiros, lobisomens, toda sorte de monstros e todo tipo de criatura mitológica que vcs puderem pensar. Convocando pelo demônio, cabe ao mago Shrae e sua família garantir a ordem do navio e de sua carga sinistra e extremamente, EXTREMAMENTE instável. Além da inventividade do roteiro, o que tb me pegou aqui é que eu adoro esse trope do "base under siege", quando um grupo de personagens ficam isolados num canto qualquer tendo que sobreviver a toda sorte de misérias tentando entrar no lugar onde estão. Com o twist aqui de que a "miséria" em questão é literalmente tudo do lado de fora da arca sombria. A arte de Doe funciona perfeitamente pra esse gibi, com os humanos sendo retratados de forma minimalista enquanto os monstros são desenhados com maior riqueza de detalhes, para demonstrar o grau de complexidade daquelas criaturas, o real foco da ação aqui conforme a viagem avança e, como os senhores podem imaginar, a comida dentro do navio vai escasseando.
Através dessa dinâmica dos humanos tentando lidar com aquele bando de besta fera ensandecida, o gibi lida com questões sobre como a humanidade sabe ser igualmente monstruosa quando questões como sobrevivência estão envolvidas, não deixando pra trás tb uma crítica aqui e ali aos buracos de roteiro bíblicos e outras questões complicadas envolvendo a mitologia cristã (não é pra menos que temos aqui, em determinado momento, como rola direto na bíblia, o corpo feminino sendo usado como moeda de troca e objeto pra remediar um momento particularmente tenso da viagem). A série termina no número 15, mas com uma sequência (Dark Ark: after the flood) já engatilhada pra estrear em Outubro. Eu gosto do final, acho adequado pro resto da trama, então fico meio com pé atrás de saber que Bunn ainda vai continuar com a série pq vc nunca sabe se é, de fato, ele querendo desenvolver melhor aquele mundo ou se é só o roteirista sofrendo de "síndrome de Kirkman", aquela doença que afeta escritores que simplesmente não sabem quando terminar uma história. Mas o que eu vi até aqui me interessou o suficiente para, pelo menos, dar o benefício da dúvida para a futura continuação da aventura dos humanos pós-diluvianos e seus vizinhos das sombras. 

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