quarta-feira, 15 de junho de 2016

Relicário: Astroboy #1


Uma das coisas que mais me deixam nervoso durante o processo de consumo de alguma obra de cultura pop diz respeito a esse elemento "misterioso e semi-divino" que as pessoas chamam de "genialidade": e se, diante de um clássico absoluto, uma daquelas unanimidades dentro de um fandom, vc se pega pensando....."é isso?"
Pq, convenhamos, o que é mais provável: que vc esteja errado por qualquer motivo ou que milhares de pessoas tenham sido enganadas por uma elite dotada dos mecanismos cognitivos pra determinar se uma peça artística é boa ou não?
.....pois é. 
Me usando como exemplo: por mais que seja inegável que Alfred Hitchcock seja realmente um gênio, aconteceu de assistir um ou dois filmes dele, consagrados como clássicos, e terminar entediado ou sem entender o que havia de tão brilhante ali. E aí? Analfabetismo crítico ou.......??

Claro que eu estou simplificando demais aqui, afinal, ainda é arte e, clássico ou não, tem a forma como aquilo vai ressoar em vc. E, claro, há tb o fato de que apreciação artística é um treco que vai se sofisticando conforme vc vai consumindo mais e mais. Eu lembro que achava "The Jerry Springer show" um saco quando tentava ver lá no começo dos 2000, quando a série passava nas tardes do Sony Channel.
Hoje? Uma das minhas favoritas. Já aconteceu de tentar rever coisas que desgostei quando vi mais jovem e que hoje adoro e o processo inverso. Mas ainda assim, dá calafrios, não? Imaginem vc se ver diante da Mona Lisa, ou de um filme mais experimental tipo algo Lynchniano, ou lendo uma hq mais ambiciosa como Watchmen e acabar tendo que admitir que..... "meh". Assustador, não?

Foi com esse espírito que fui ler a primeira edição de Astroboy do mestre Osamu Tezuka. E o termo "mestre" foi inserido aqui exatamente pra evocar a sensação que descrevi nos parágrafos acima.
Preciso dizer que não foi meu primeiro contato com a obra Tezukiana, já tendo lido alguns números de "Buda" e adorado o que vi.  Mas insisto: mesmo assim, sempre bate certa mescla de excitação, por estar diante de uma obra, no caso um mangá, consagrado e consecutivamente, certa precaução.

Bom................ man, que gibi incrível :-)


Em menos de 10 páginas, a história já me arrancou lágrimas, o que, ao contrário do que posso fazer parecer, não é algo fácil. Indo além: A saga do pequeno andróide guerreiro tem aquele elemento característico das obras primas de serem atemporais. Claro, tem certo detalhe no traço que entrega a idade das histórias, mas ainda assim. 
Li o primeiro volume até o momento e se já me predispus a escrever sobre a obra, mesmo sem ter lido nem 10% dela (são mais de 20 volumes), é pq o impacto foi imediato. Sem medo de botar as fichas na mesa já de cara, o autor decide deixar a melhor primeira impressão possível com o arco da "Hot dog corps", uma corporação formada por ciborgues que, sem soltar spoilers demais, leva o conceito de "fidelidade canina" ao extremo máximo. O texto carrega certa inocência (os planos da vilã da trama são de uma simplicidade absurda) mas que vem junto com uma densidade que, considerando o tom geral da série, me pegou desprevenido  (cada morte pesa, cada soco pesa, e as cenas de ação tem um tom de urgência impressionante). O domínio do ritmo da história é algo que merece um parágrafo à parte: é quase sádico o pulso firme de Tezuka e a forma como ele segura a grande revelação de "hot dog corps" de seus personagens. Nós, leitores, já sabemos do que se trata nesse momento da trama mas, EXATAMENTE por isso e por saber o quanto os leitores estão aguardando o catártico momento em que a verdade é revelada a Astro e os demais envolvidos na aventura, o mangaká posterga esse momento ao máximo, quase como uma melodia que estende sua ponte ao máximo antes de permitir ao ouvinte a familiaridade quase orgástica do refrão.
A arte não é das mais detalhistas mas sério, vejam a cena do resgate da nave de #44 e da "chuva de discos voadores" na lua e me digam que isso não é lindo.


Preciso ver a animação disso pq essa cena em si deve ficar ainda mais linda com os objetos em movimento.
A história oscila entre o humor e o sério com uma facilidade absurda que só vi igual em Dragon Ball. 
Falar do elemento cinético num mangá é chover no molhado, mas vá lá: lendo a série eu quase conseguia ouvir o som dos jatos do Astro e ver aquilo em movimento diante dos meus olhos e nos quadrinhos japoneses isso costuma ser um elemento tão default que, mal acostumados, já tomamos isso como o básico, mas não se enganem: não é algo fácil e merece todos os elogios. 

A segunda história do vol.01 narra uma invasão de homens planta e, apesar de mais curtinha, ela é tão impactante quanto a primeira e, se vista sozinha, já serviria como perfeito exemplo de tudo que faz essa primeira edição funcionar, misturando humor, lirismo e ação de forma muito coesa. 

Vale menção tb os pequenos inserts do próprio autor falando sobre as histórias, quase como uma faixa de comentários que introduz os arcos, onde Tezuka não poupa críticas à industria de animação japonesa e às vezes que teve que lidar com executivos americanos e a mentalidade de "desenhos/quadrinhos são para crianças" deles. 


Misturando humor bem inocente com críticas à indústria (e à própria obra, inclusive. E se eu consigo perfeitamente respeitar certa soberba vinda de artistas conceituados, tb acho fascinante ver humildade, principalmente quando vem de, talvez, "O" nome mais reconhecido dentro do seu campo artístico) e idéias sci-fi dignas dos melhores clássicos do gênero (eu sinceramente não esperava que tão cedo o mangá fosse mencionar as leis da robótica e os aspectos éticos da construção de formas de inteligência artificial, tema abordado já na página que abre a série), consigo tranquilamente ver essa hq figurando na minha lista de gibis favoritos. Tendo lido apenas a primeira das 24 edições compilando a série, talvez fosse sensato eu me conter na empolgação, mas pro inferno: só por essa soberba primeira edição, já acho Astroboy digna de cada elogio hiperbólico que a série já recebeu. Se continuar com pelo menos uma parte da qualidade desse volume, aí o céu é o limite.  
Comento mais conforme for avançando na série, ok? 

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