terça-feira, 3 de abril de 2018

"IT´S OVER": Sobre Portlandia e o fim de "UM" sonho....


Eu sinto, sinceramente, que eu tenho que escrever sobre o final de Portlandia.
Não foi um show desses avassaladores, que bomba num nível que acaba sendo comprado pela Globo e transmitido - dublado - após o Fantástico. Nem remotamente perto disso. Mas foi um programa tão especial. A labor of love, you know? Mas falar de Portlandia é meio complicado pq a série tem uma natureza meio conflituosa consigo mesma.... mais ou menos. Primeiramente, era pra ser uma série do nicho mais nicho do mundo. O nome do negócio é PORTLANDia. Se vc não for de Portland ou pelo menos não tiver uma noção de como é o dia a dia da cidade que fica no estado do Oregon, costa oeste dos Estados Unidos, em tese, a série não deveria funcionar pra ti. Além disso, temos o fato de que Portland é sobre Portland mas mais sobre uma idéia de Portland do que sobre a cidade em si. Bota uma lupa sobre a quirkiness daquele local, a capital hipster dos EUA e ao fazer isso, esquece outros aspectos dali. Mas aí vem o segundo paradoxo: precisa ser fiel? Pq é ficcional e ao mesmo tempo, linkando com o parágrafo acima, universal. Mas não botemos o carro na frente dos bois. 
Portlandia é uma série escrita e protagonizada por Fred Armisen e Carrie Browstein (provavelmente a pessoa mais legal do mundo) e produzida pelo IFC, em que, através de sketches curtas, narra o dia a dia dos moradores de Portland, cidade completamente única nos EUA por seu caráter hipster, um local onde "o sonho dos anos 90 segue vivo", uma quase utopia onde "o governo Bush nunca existiu". Pensem em hipsterismos dos mais básicos e ...tipo....bingo.
Um prefeito jovem e antenado? Check
Um monte de caféterias gourmet onde a bebida negra é produzida artesanalmente? checked
Vias pra ciclistas em tudo que é canto? Pode ter certeza.
Uma livraria vintage cheia de literatura feminista? yep.
Várias e várias e várias fazendas de produtos orgânicos? hell the fuck yeah. 
Muito brinco, alargador, bigode cuidadosamente bem cuidado, muita camisa xadrez, all star no pé, várias empresas empreendedoras do setor de tecnologia com uma linguagem ágil e dinâmica, muita, mas MUITA referencia pop. Portland, em suma. 


Como eu já disse aqui umas mil vezes quando falando de obras que tem esse carater de sketches ou antologias ou coisas do tipo: nem sempre a série acerta. Mas quando acertam, vai oscilar entre aquele sorriso de cumplicidade do tipo "é, eu sou assim/conheço pelo menos umas 10 pessoas que são assim", risadas largas e, não raramente, gargalhadas homéricas aqui e ali.





Quando eu falo da "idéia de Portland" ao invés da cidade em si, me refiro ao fato de que a Portland da série é quase uma utopia, quase o que seria o sonho máximo das eras Clinton/Obama, não fosse o fato de ser uma cidade......branca.... pra cacete.
E a Portland real.... welllllllll.... não é exatamente assim.... Abuso de força policial, Gentrificação, um histórico de racismo particularmente notável, mesmo quanto comparada com outros estados do Sul do país...
Mas acho que a série se esquiva dessa discussão de duas formas: a primeira é sendo política. Desde sempre, mas com mais força na sua oitava e ultima temporada.







A segunda é transcendendo um pouco aquilo do nicho que falei no começo do texto. Sim, pode ser que existam elementos que fazem Portlandia mais reconhecível pro publico norte americano e pros moradores da cidade que intitula a série. Mas a real é que o Portland-style é meio que universal já há uns bons 20 anos. Esse hipsterismo do qual a série ri (com e de), é reconhecível em qualquer canto do mundo. Sim, o piloto de bicicleta, vegano, que usa roupas de brechó e recicla lixo, que produz um podcast político altamente contestador e que gritou junto "yes, we can" no discurso de vitória do Obama em novembro de 2008 enquanto achava que o mundo estava finalmente indo pra um caminho melhor é algo que vc encontra na cidadezinha americana. E na quinta avenida em Nova Iorque.
Em Candem Town em Londres.
Em Akihabara, em Tokyo.
E obviamente, falando do quintal em que eu vivo e habito, vc acha às centenas orbitando lá pelo centro de SP, na altura da Augusta e Consolação, subindo ou descendo em direção à Avenida Paulista.
O que, em parte, exime a série de qualquer responsabilidade de representar fielmente o dia a dia da cidade que retrata e ao mesmo tempo, explica seu caráter universal. (Bom, universal pra qualquer habitante de grandes centros urbanos, claro.)



Sou suspeito pra falar, eu, um homem branco de quase 40 anos que escreve esse texto bebendo café no seu copo térmico do scooby doo usando camiseta "nerd" e de all star no pé, enquanto uso o wifi do trampo pra postar no meu blog e baixar musiquinhas de bandas indies no smartphone?
CLARO, porra, eu me reconheço ali pra cacete.



Mas, de novo, e antes de qualquer coisa, Portlandia é engraçada. Ponto. Melancólica quando precisa ser, sardonica sempre, mas é antes de qualquer coisa, muito engraçada. E o ponto que me traz aqui, à luz de seu episódio final: um produto de seu tempo e que soube a hora de parar, ainda que exatamente isso, tenha conferido a seu season finale um tom mais sombrio do que provavelmente eles imaginavam.
Daqui pra diante, spoilers do S08E10 de Portlandia sem dó, nem piedade.



No episódio final, ironicamente, o peso do mundo real bate às portas do show. A maratona anual de Portland está em vias de ocorrer e o prefeito, perto do final de seu mandato, decide realizar uma ultima de suas esquisitices adoráveis: redesenhar o trajeto para que ele pareça uma rosa, vista de cima.
"Pra que?", vc me perguntaria, kemosabe. "Os corredores na prova não vão ver isso. Provavelmente jamais vão saber". Pois é. Essa é outra das "quikinesses" do prefeito de Portland, personagem vivido pelo sempre maravilhoso Kyle McLachlan. Sabem como Sandman é descrito sempre como "o sonhar", não apenas a personificação daquele local ou a encarnação dele ou mesmo um aspecto daquele reino, mas a própria essência que constitui aquele canto dimensional?
Da mesma forma, o prefeito (sem nome) é "a" própria alma viva de Portland. E em vias de deixar o cargo, essa idéia aparentemente inútil é seu ultimo presente pros habitantes daquele local mágico, quase preservado em âmbar da escuridão pós eleições de 2016. Até ali, pelo menos.
Um dos pontos principais da rota da maratona está fechado e pra abri-lo, o prefeito precisa negociar com o dono daquele local. Uma....troll...... chamada Margaret que mora.....debaixo de uma ponte..... e que é estranhamente parecida com ...you know who....
Em troca da livre passagem pelo local, o Prefeito tem que entregar Portland nas mãos da troll e, separado da cidade que ama, só lhe resta literalmente ascender às estrelas.
Carrie, Fred, Candice e a maioria dos personagens que conhecemos durante a série terminam a maratona, cientes de que algo mudou, mas sem saber exatamente o que.
Foda né? Tipo, um dos textos que eu procurei perguntava "como Portlandia pode sobreviver na era Trump?"
A resposta é, obviamente... "não pode".



Esse tipo de esperança é muito típico da era Obama.
Longe de mim dizer que tudo foi lindo e maravilhoso durante os anos de Barack na presidência, mas o zeitgeist desse período era o combustível pro tipo de esperança que Portlandia vendia. Longe de tudo ser perfeito, novamente, o programa sabia rir das incongruências e idiossincrasias dos grupos que ela mesma representava. As feministas ultra radicais, o casal defendendo de forma passional e histérica um cachorro deixado amarrado do lado de fora de uma loja enquanto eles próprios negligenciam o próprio filho, o ciclista que acha que só por adotar uma forma de transporte que não usa combustíveis fosseis está salvando o mundo e não cansa de bradar isso pra geral esperando aprovação coletiva.
O fandom que usa aquilo que ama não como forma de se conectar com o mundo mas, de forma oposta, excluir quem não pensa igual.



Mas ainda assim, e mais uma vez, considerando que não estamos aqui cobrando uma relação de 1 pra 1 entre a cidade da série e a real, com seus problemas reais e tals, o tipo de esquisitice adorável que fazia aquela dimensão algo possível é algo que não sobrevive à realidade de um mundo onde o alt-right existe. A cúpula se quebrou e Carrie, Fred  e Portland (os ficcionais) estão de volta, soltos no NOSSO mundo. Too real? Hell the fuck yeah.

Anyway, Portlandia vai deixar saudades. Teve altos e alguns baixos (nenhum pior que o season finale da season 6, "the noodle monster". Podem pular esse ep. sem dó). Mas foi consistentemente boa o suficiente pra fazer falta. Assim que possível, voi eu, com minha camisa xadreza, barba grossa, óculos de armação que meu avô usaria sem constrangimento algum, camiseta com referencia pop pq afinal, pós modernismo, baby, e all star no pé, em algum bar hipster, levantar uma garrafa de cerveja artesanal e empada vegetariana artesanalmente feitas, em homenagem e brinde aos amigos que se vão.
E, disclaimer: esse post NÃO foi artesanalmente feito no meu notebook, enquanto espero um espresso caramelo brulée no Starbucks. Mas deveria ter....

- Quando eu disse que Carrie Brownstein É a pessoa mais legal do mundo, não estou brincando. Além de roteirista do seriado, ela é guitarrista e vocal de uma das minhas bandas favoritas, o Sleater Kinney. Além disso, é a responsável por todas as varias e varias e VARIAS participações especiais que rolam durante a série. Incluindo, um dos dois homens mais legais do planeta, Jeff Goldblum. Precisa mais que isso?
- Só eu acho que é tristemente irônico - e sintomático - que, uma semana após o final da série, tenha sido exibido o primeiro episódio do revival de Roseanne, série dos anos 90 criada e protagonizada pela asquerosa atriz de mesmo nome, uma apoiadora do Trump na vida real E na série que protagoniza? Igualmente sintomático tb é o fato de que a nova versão do programa registrou uma audiência absurda, exatamente por ter como público alvo o tipo de pessoa que elegeu o atual presidente dos EUA. Aliás, essa é a mesma Roseanne O'Barr que fez uma participação especial em Portlandia interpretando uma prefeita substituta que era incapaz de entender as bizarrices e pequenas estranhezas que faziam a versão ficcional de Portland funcionar.
Mais uma vez: too. fucking. real. Vida que imita a arte que imita a vida... e segue o ciclo.

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