terça-feira, 10 de abril de 2018

São Paulo dos Mortos


Vou falar de um gibi de zumbis, okay?

NÃO FOGE, seu puto..... calma, confia no tio Urso, vai ficar tudo bem.

Eu sei, eu SEI que zumbis foram usados à exaustão na cultura pop nos últimos anos e, quando eu desconfio que novas boas histórias poderiam utilizar o tema de forma competente, eu lembro que Walking Dead segue na tricentésima quinta temporada e que coisas como "meu namorado é um zumbi" já se tornaram realidade. Eu sei, eu sei, o tema dá preguiça. Mas só quando feito da forma errada. 

A chave pra um bom uso dos zumbis vem do quão poderosos eles funcionam como metáforas. George Romero botou os zumbis apavorando um grupo de sobreviventes refugiados num shopping pra metaforizar a nossa sociedade, em que NÓS somos os zumbis, circulando de forma lenta e letárgica por dentre os corredores destes grandes centros de compra, verdadeiras igrejas de adoração do consumismo (hey, nem to reclamando. Já teve muito dia quente em que eu corri pra shopping só pelo ar condicionado).
Charlie Brooker, em seu excelente Dead Set, usou os desmortos, apavorando um grupo de pessoas confinadas num reality show tipo Big Brother, pra questionar a letargia do publico desse tipo de reality show (e, em maior escala, do público de TV em geral).
In the Flesh, em sua primeira temporada brilhante, usou o trope pra falar de preconceito e homossexualidade. Usar os bichos como antagonistas apenas por usar pode ter ser valor, mas sei lá, eles sempre funcionam melhor quando são utilizados pra trazer o pior da NOSSA sociedade. 

Dead Set, obra do mesmo autor de "Black Mirror" e minha história favorita de zumbis, tipo, EVER. 
E o gibi que vou falar a seguir usa os monstros dessa exata forma: SÃO PAULO DOS MORTOS, de Daniel Esteves (roteiros) e uma pá de desenhista. Primeiramente: se tu não curte arte política...... bom...o que tu tá fazendo aqui? eu sempre defendi que arte É uma parada política, então... mas vá lá....
O gibi é um fruto de seu tempo e um retrato excelente desses tempos sinistros que vivemos, com uma nova mentalidade de direita reacionária ascendente. You know...homens brancos ricos cristãos fazendo o que homens brancos ricos cristãos sempre fazem.


Eu sou apaixonado por arte política, já falei aqui várias vezes, então, já teria predisposição pra curtir a obra. Mas, caralho, tendo crescido vendo os Vingadores cruzando a quinta avenida, o Homem Aranha circulando pelos subúrbios de NY e outros heróis habitando lugares fictícios, é muito, MUITO estranho (e igualmente legal), ver gente fugindo de zumbi com prédios como a catedral da sé, os arcos orientais da liberdade ou as sujas e caóticas ruas da 25 de Março de fundo. Pra quem fala que representatividade não importa, o impacto pra mim, urso velho que já lê gibi há 3 décadas, de ver cenários familiares nas hqs, é algo MUITO novo, sabe? Muito uma lufada de ar fresco. A ultima vez em que senti algo assim, foi com "Feliz aniversário, meu amigo" dos gêmeos Bá e Moon, exatamente por ter como cenário as coloridas (e extintas, pq o bar fechou) paredes da Funhouse, clube aqui de SP em que eu fui algumas vezes (saudades - e eu não sou de sentir saudades de nada - daquela jukebox). 
O gibi, que teve 3 volume lançados até agora - lançados pelo selo Zapata edições e com financiamento coletivo no Catarse - , tem exatamente essa premissa: pessoas vivendo o dia a dia de suas vidas, tentando sobreviver numa SP tomada por zumbis. Aonde obviamente, o pior das pessoas se manifesta de forma muito gráfica, como geralmente acontece nesse tipo de evento de crise.
Apesar da natureza de antologia do gibi, com histórias fechadinhas e auto contidas, existem certos elementos que conectam as histórias, aqui e ali, certos personagens que se repetem, seja como protagonistas, seja apenas numa menção ou pontinha. 
Eu ia listar as minhas favoritas, mas...na real? Eu gosto meio que de todas, o que é algo notável considerando que antologias geralmente costumam destoar em termos de qualidade, normalmente com algumas histórias muito boas e outras nem tanto.
Mas vou tentar destacar algumas favoritas dentro dos 3 volumes lançados até agora:
- Vício (arte de Ibraim Roberson e Lucas Perdomo), mostrando uma guria tendo que se virar, sozinha (well....mais ou menos), cercada de zumbis, no meio da cracolandia. 
- Uma carona para o governador (arte de Wagner de Souza e Alex Rodrigues): em que vemos aquela.......atrocidade.... que ocupa o cargo de governador do estado há duas eras geológicas, tendo que se virar no meio do pega pra capar de uma cidade forrada de devoradores de cérebro. A história tem um twist no final que achei espertíssimo. E só não vou dizer que essa é minha história favorita de todas dessa série pq, tb no volume 01, temos a divertidíssima
- Itaquerão (arte de Samuel Bono e Omar Viñole): onde 3 guris da periferia decidem aproveitar o caos pra ir bater uma bola lá na Arena Corinthians (quando um deles sugere levar um dos títulos em exposição pra casa, outro manda "TÁ LOUCO, MANO? VAMO DÁ UM GUENTO NO TIMÃO, NÃO")
- Mortoboy (arte de Alex Rodrigues), trama que toma todo o volume 02, narrando as aventuras de Deivison, motoboy paulistano, fazendo seus corres, tentando entregar suas encomendas nesse cenário de caos. Outra história que não tem medo de pesar a mão na política e mostrar que, pra certa parcela da sociedade, mortos vivos e qualquer pessoa abaixo de certa faixa salarial são absolutamente indistinguíveis, servindo apenas de ferramenta. And plus: LIBERDADE, CARAIO. Meu bairro favorito da cidade (óbvio, pq eu sou um clichê)



O volume 3, mais recente da coleção, tem como destaque:
- Roller Dead (arte de Sueli Mendes), que já ganhou um lugar especial nesta lista só por se passar dentro do local que é praticamente minha segunda casa aqui em SP:  a livraria cultura lá do conjunto nacional, na Av. Paulista. Nesse contexto, aquele esquelético dragão de madeira que tem na sessão infantil da loja ganha tons bastantes sinistros. 
- E fechando a edição, "Templo" (Alex Rodrigues), trama reunindo alguns dos personagens anteriormente vistos na série (e a primeira que fecha com um cliffhanger, a ser resolvido nas próximas edições) lidando com uma "raça" BEM  mais perigosa que qualquer zumbi (sem maiores detalhes, mas a série se passa em um certo templo gigantesco que destoa - feito um tumor - do resto dos prédios lá da Celso Garcia). 
Pontos fortes? Os roteiros são muito bons, a arte obviamente tem estilos distintos, dependendo do autor, mas todos muito bons (meu preferido é Alex Rodrigues, mas como disse, todos são bem legais). 
Nesses tempos em que todo mundo tem medo de soar político demais por medo de ofender alguém, Esteves tem meu respeito por não ter medo de se posicionar, e, se em um ou outro momento ele QUASE pesa a mão na caricatura (pobres bons, ricos maus), na maioria esmagadora das vezes, a questão de luta de classes soa totalmente crível pra qualquer um que já teve que ir dos cantos mais periféricos até as áreas mais nobres da capital (you know, onde qualquer pessoa não branca - ou apenas que não tenha a "aparência certa" é descrita como "gente diferenciada"). PM, políticos pau no cu, evangélicos hipócritas, a classe média paulistana, que se identifica com as elites apesar de estar, financeiramente, mais próxima da base da pirâmide. Os moralistas que pregam e vomitam virtude apesar de não terem medo dar seu "jeitinho" quando convenientemente pode. Tudo lá. 
Como eu gostei MUITO da série, fica até complicado elencar pontos fracos, mas vou dizer que achei curioso como o estilo de diálogo muda de acordo com a classe social do falante, dentro das histórias. Pessoas ricas falam com português perfeito. A periferia fala com gírias, mais coloquial mesmo, enquanto a classe média fica num meio termo. Não é ruim, apenas, como disse, achei peculiar. Se muito, um tantinho irreal, já que trabalho com um bando de endinheirado pau no cu que são os primeiros a soterrar os "inferiores" com toda sorte de palavrões em momentos que acham apropriado. 
De resto, um puta gibi legal, sem medo de meter o dedo na ferida, usando a arte pra ventilar um pouco sobre os nossos dias tumultuosos. Como a boa arte faz. E sem medo de questionar se, no geral, nós somos MESMO os zombie hunters dando headshot atrás de headshot, como, vaidosos, sempre pensamos ser, ou se, na real, como sociedade, não passamos de um bando de zumbis acríticos, indo lentamente, um passo por vez feito lemingues, em direção ao oblívio. 

*25 conto as edições 1 e 3 e 15 reais, a nº 2. Baratinho, vai. Vcs acham em qualquer comic shop real ou virtual aqui em SP. Peguei numa lá perto do shopping Tatuapé. Se pans, levando as 3 dá até pra chorar um descontinho. :-)

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