quarta-feira, 10 de maio de 2023

Em Rumo a Krakoa: "Talento, coração puro e um tiquinho de sorte"

 LONGSHOT!!!


"péra....LONGSHOT???? Tanta coisa pra falar sobre e você vai falar sobre LONGSHOT????"

Yep. Eu reli as 6 edições da minissérie original de Ann Nocenti e Arthur Adams lançada em 1985. Fazia anos que eu não revisitava essa série e decidi pegar pra ler novamente, até porque os momentos em que Longshot tinha maior proeminência no gibi dos X-Men eram sempre, no mínimo, interessantes. Mal sabia eu que, na verdade, isso já tava lá em sua história de origem. 

Longshot, a série, conta a história do personagem de mesmo nome. Ele simplesmente aparece do nada, amnésico, no meio do universo Marvel e tem que lidar com o fato de estar em um ambiente hostil e desconhecido enquanto, ao mesmo tempo, tenta descobrir mais detalhes a respeito da própria identidade. 

Esse fiapo batido de trope é o começo de um dos gibis mais interessantes que já li na vida. 

Vocês sabem que o tio Hak adora meta comentários em arte. Adoro obras que falam sobre a própria mídia em que se inserem ou, em maior escala, sobre arte em geral, independente do recorte que preferem tomar como foco. 

Enquanto a primeira edição da mini é bem tradicionalzona, apenas para introduzir o que precisamos saber sobre ele - que é alguém sem memória, com uma visão inocente, quase infantil de mundo, dotado de alguns poderes como velocidade e força sobre humanas além de sua característica mais marcante, sua sorte, um super poder em si, contanto que suas motivações sejam puras - e sobre seus oponentes, é a partir da edição 2 que as coisas tomam rumos mais estranhos.

E "estranho" é a palavra de ordem aqui. Espero que isso não soe arrogante ou elitista, mas essa obra tem uma sensibilidade típica dos anos 80 e de como essa década funcionou pros quadrinhos. É a época do Cavaleiro das Trevas, da invasão britânica e de uma onda de quadrinhos com propostas temáticas e visuais mais ambiciosas. Ao terminar Longshot, minha mente foi menos pra outras obras superheróicas e mais pra quadrinhos autorais, principalmente obras menores do roteirista J.M. Dematteis como Blood e a clássica Moonshadow (que, pro pessoal mais atento, foi publicada DEPOIS da hq que é o foco desse texto, mas que eu li bem antes e que, ambas, são obras que me marcaram demais e em muito influenciaram meu gosto pra gibis).

Ainda sobre a sensação de estranheza desse quadrinhos: os diálogos seguem menos a idéia de realismo de um Frank Miller ou mesmo o discurso com tons operísticos de algumas obras e vai mais em uma direção que eu aproximaria da adotada por obras como Mad Man e PRINCIPALMENTE os seriados de David Milch, sendo os mais famosos dentre eles Deadwood e John from Cincinatti. 


De fato, Longshot é uma obra típica do seu período a tal ponto que a maioria das tentativas de atualizar o personagem e reintroduzi-lo no lore da Marvel pelas décadas seguintes falharam.  De fato, do cabelo típico da época (inspirado no usado pelo cantor Limahl, famoso por ser o intérprete do tema do filme "A história sem fim".) passando pelas roupas (que, justiça seja feita, viriam a inspirar o visual cheio de trajes de couro e 50000 bolsos, adotado pela maioria dos super times noventistas), o personagem é um filho do seu período. 

Ler esse gibi, que em momento nenhum pode ser descrito como "datado" mas, ao mesmo tempo, tão um retrato do período em que surgiu, mas que consegue ter um discurso e uma mensagem tão universal, aliado a conceitos e personagens que hoje em dia seriam "fora da caixa" é uma experiência única e uma das razões pelas quais é uma obra tão mágica e de fato, clássica. 

É aqui que Nocenti e Adams vão introduzir personagens que viraram bastiões do lore mutante como Espiral, Mojo e todo a idéia do Mojoverso: uma dimensão que é uma "TVcracia", onde a sociedade gira em torno dos programas de TV e filmes criados pela raça dominante, os "spineless ones" (ou "sem espinha"). Estes programas vão manter a sociedade de castas, dividida entre dominantes e escravizados, em ordem. 



É exatamente o contato que o protagonista tem com uma equipe cinematográfica de nosso mundo, enquanto produziam um filme de ação, que começa a reativar a sua memória. E é aí que mora o que faz desse gibi algo tão legal e que também vai ser um elemento do personagem em seu período nos x-títulos. Porque a estranheza que ele sente naquele mundo vem do fato de que ele está perigosamente perto de ter ciência de que ele é um personagem de gibi em um universo ficcional e por isso mesmo, frequentemente ele questiona alguns dos tropes que a gente tem como naturais desse tipo de história mas que são tão peculiares para ele. 

Desde aspectos sociais


Passando por tropes de fato e a própria natureza do que é ser um herói são fontes de perguntas para ele. 


Ao mesmo tempo, pela natureza do Mojoverso, ele não consegue ignorar o fato de que aquele também é um mundo de personagens presos em um ciclo de violência para o entretenimento de alguém e, por mais que ele não quebre a quarta parede de forma direta, sabemos que "os vilões", os "Mojos", os "Sem espinha" torturando essas criaturas somos nós, os leitores. Exatamente por isso, essa série é também uma análise interessante de um fenômeno que ainda estava surgindo nesse período e que viria a explodir a partir da década seguinte que é a formação de fandoms gigantes e todo o lance da cultura nerd e geek. 

Em um determinado momento da trama, Mojo vem pro nosso mundo (bom, pra terra 616) e decide dominar esse plano. Os poderes do povo do vilão são uma mistura de tecnologia e magia e uma grande parte de sua força vem da adoração que ele recebe. De certa forma, Mojo é um artista, preso, ele também, em um ciclo perpétuo, onde a admiração que recebe, o amor do seu público, só vai perdurar até sua fonte criativa secar e até seu primeiro fracasso. Daí pra diante, é ladeira abaixo. E isso era uma coisa bem presciente de se pensar quando consideramos que é a partir da segunda metade da década de 90 e com a popularização da internet que a idéia de fandoms vai ganhar, de fato, proporções planetárias e de tal forma que a industria de entretenimento vai perceber o potencial de focar nessas pessoas, geralmente indivíduos com alto poder aquisitivo, e direcionar suas produções ao redor deles.

Ou seja: dos funko pop passando pelos eventos geeks como a CCXP e chegando ao fenômeno dos filmes de super heróis, "Longshot", ainda que de forma insipiente, conseguiu prever os rumos que a cultura pop viria a tomar. E isso nos aspectos bons e ruins disso. Porque, e isso não pode ser desconsiderado, existe uma série de coisas legais em fandoms, incluindo, claro, o elemento comunitário, de pertencimento de grupo, que gira em torno deles. Mas ao mesmo tempo, existe o lance da formação da cultura do fanservice, da infantilização dos gostos gerais e de uma, por falta de termo melhor, "nivelação por baixo" do que esses grupos esperam das obras que consumem: menos veículos de provocação e mais como meio de "validação", quase como confort food emocional. A arte passa a ser só mais uma comodity, só mais um item de consumo, que você, enquanto fã, precisa, veja bem, PRECISA consumir se quiser pertencer a um grupo e ser um "nerd de verdade". 

Pra manter esse estado constante de oferta e resposta e de filmes e séries como fast food audiovisual, o povo do Mojoverso está disposto a, inclusive, fechar os olhos para um sistema escravocrata e que permite aberrações como Mojo não só existirem, mas prosperarem. Da mesma forma que, o sucesso do atual cenário da cultura pop da década de 2020 permite aberrações como a formação de monopólios, fãs defendendo empresas, obras que parecem mais uma checklist de referências do que algo com densidade real, a alienação dos reais artistas criando tais obras e o comportamento de manada do fandom, dispostos a cometerem atos horríveis em defesa de seus "heróis". 

No climax da história, Mojo e Espiral decidem transformar uma igreja na periferia de Nova York em um novo templo, quase um zigurate bíblico, desta vez construído em honra e glória do vilão do Mojoverso. Conforme mais e mais pessoas passam a adora-lo, mais poder ele vai acumulando.



Em uma aparição seguinte do personagem, no gibi dos Novos Mutantes, Mojo "infecta" as tvs locais com uma animação infantil feita no Mojoverso. A partir da atenção coletiva e do "amor" das pessoas vendo aquele desenho e aqueles personagens, o monstro consegue acumular poder para tentar uma nova invasão da terra 616. Neste episódio, inclusive, a metáfora do empoderamento do fandom ganha ainda mais literalidade considerando que o plano aqui envolve pegar crianças mutantes e transforma-los em adultos que são as versões que eles próprios tem do que seria o ideal adulto. Não coincidentemente, todos terminam super poderosos e com corpos e rostos perfeitos. A força desse plano vem de fornecer para aquelas pessoas, uma fantasia de poder. 





Em seguida, em nova incursão contra os heróis mutantes, Mojo transforma os X-Men em crianças e a partir daí, começa a remodela-los para que se tornem adultos, mas moldados física e mentalmente a partir da ideologia dos sem espinha: novamente, fantasias ultrapoderosas de um ubermen mas com uma base moral corrompida. Apenas explosões e efeitos especiais, sem qualquer substância. Espetáculo pelo espetáculo. Um produto serializado e infantilizado, diluído, funcionando dentro de um contexto de indústria cultural que prima, majoritariamente, pelo consumo. 



Novamente: considerem que estas histórias são publicadas entre 1985 e 1987. A ultima grande aparição de Longshot na HQ dos X-Men data de 89, ao final de Inferno. Pelo menos meia década antes da popularização da internet e da explosão dos fóruns online e listas de discussão. 

Voltando para a série original, temos um espetáculo tipicamente oitentista, lisérgico e cheio de algumas das idéias mais fora da curva da história do universo Marvel (e veja bem, é difícil você puxar esse limite quando pensamos que é um plano dimensional que conta com sua cota de devoradores de mundos, patos humanóides sencientes, planetas vivos e um vilão que é LITERALMENTE uma versão prévia do universo 616).

Independente de muito pouco ter sido feito com o personagem a partir da próxima década, é inegável que a minissérie de Nocenti e Adams não apenas proporciona uma visão presciente dos rumos que a cultura pop vai tomar pelas décadas a seguir, mas faz isso enquanto nos dá uma história filosófica, espiritual em certa medida e inquestionavelmente divertida. :-)  

Existem outros aspectos dessa história sobre os quais eu quero falar, mas como esse textinho já está gigante, vai ficar pra uma parte II, a ser postada ainda essa semana. 

A seguir: "Um tiquinho a mais de sorte"

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