terça-feira, 16 de maio de 2023

Em Rumo a Krakoa: "Um tiquinho de sorte a mais"

Essa é a segunda parte do texto sobre Longshot publicado semana passada. Era pra ser um textão só, mas ficou tão grande e com tons tão distintos que eu preferi separá-los. Pra acessar a parte 01, é só clicar aqui. 


Cap 01: Theo.

Então, na segunda edição, somos apresentados a Theo. Theo é um pai de família exausto por causa do trabalho mas também, e principalmente, por causa da TV, fonte constante de más notícias e espalhando miséria por toda a sua programação. Absolutamente sem forças, Theo saca uma arma, dá um tiro na televisão e segue noite adentro, decidido a dar cabo da própria vida.



Para sorte - ou azar - dele, ao se atirar de uma ponte, ele acaba caindo em cima do corpo de Longshot, atirando no rio pelo diretor do filme em que trabalhava depois de um acidente onde o protagonista da série foi dado como morto. Recuperado dos ferimentos, o herói decide partir em uma aventura com Theo como forma de provar para o homem que ele não deveria se matar. 

Aqui cabe uma menção a um de meus filmes favoritos da vida, o clássico Blue Velvet, de David Lynch. 

Blue Velvet, resumindo MUITO, é sobre Jeffrey um garoto que vive uma vida suburbana confortável em um ambiente que é a definição do sonho americano: casinha amarela, cercadinho branco, uma namorada loirinha adorável e tals. Jeffrey também é um rapaz PROFUNDAMENTE entediado com a própria vida e vive ansiando por aventuras como as que vê em filmes e tvs. Então, quando um dia, o rapaz encontra uma orelha decepada no chão, ele decide investigar o que ocorreu, tentando trazer alguma excitação pro próprio cotidiano. E essa decisão vai enfiá-lo em algumas das situações mais tensas e sinistras que os senhores podem imaginar. Ao final, Jeffrey volta para sua vida confortável. Não mais ansiando por emoções intensas, mas feliz pelo que tem. 

Blue Velvet não é um elogio ao cotidiano, mas uma obra sobre como só valorizamos uma vida tranquila no momento em que as coisas começam a sair do prumo. Eternamente insatisfeitos, ansiamos, em momentos difíceis, pelos bons e velhos tempos, pelo tal "tédio cotidiano", apenas pra ficarmos irrequietos e insatisfeitos quando finalmente nos vemos em meio a ele. 



Da mesma forma, Theo precisa quase morrer ao lado de Longshot, que vai encontrar seus adversários e ter que lutar contra eles, para valorizar o que tinha com sua família. Ao final, ansiando pela volta a seu lar e agora transformado pela experiência de quase morte, Theo quer apenas uma vida normal. Porque, as vezes, de fato, precisamos viajar pros rincões mais distantes para finalmente atingirmos o estado de iluminação de que o lugar onde éramos felizes era o mesmo lar do qual saímos entediados e pra onde, agora, ansiamos retornar. 

Capítulo 2: Quark

Eu nunca vou esquecer das palavras de Killmonger ao final de Black Panther, a respeito de preferir a morte ao aprisionamento: “Bury me in the ocean, with my ancestors that jumped from the ships, because they knew death was better than bondage.” . Durante sua jornada, Longshot vai conhecer Quark, outro habitante do Mojoverso. Ao contrário do protagonista, cujo visual foi concebido baseado nos humanos, Quark teve suas feições moldadas a partir da de um carneiro ou um bode. O rebelde era um estranho no Mojoverso e continua sendo um, em perpétuo estado de não pertencimento, agora no nosso mundo. 


Enquanto Longshot é profundamente otimista, Quark segue pelo caminho oposto, constantemente lembrando o colega de combate de como a morte está perpetuamente espreitando os dois, ali ao lado, esperando pra finalmente alcançá-los. De fato, se conhecer a terra 616 proporciona esperança por parte do herói, Quark, por sua vez, só consegue notar como ele é percebido como um monstro também aqui e, como consequência, o mundo dos humanos não lhe oferece nenhum conforto ou promessa de futuro. 




Sério, eu não esperava um leve debate sobre interseccionalidade em um gibi pop, mas hey, aqui estamos. Resumindo MUITO, interseccionalidade é a combinação de dois ou mais fatores que fortemente vão afetar e definir indivíduos. Por exemplo: um homem branco gay e um homem negro gay. Ou uma mulher negra e outra mulher negra mas cadeirante. São pessoas que possuem uma característica forte em comum mas ao mesmo tempo, tem outra que os difere e que, por isso, vai tornar suas vidas significantemente distintas. Duas mulheres vão sofrer machismo da mesma forma, mas a mulher branca vai ter algumas vantagens extras que uma mulher negra, por exemplo, não vai ter. 


Quark é um escravo, tal qual Longshot. Mas ele também é um não-humano e que vai se destacar tal qual uma aberração em um mundo de humanos. E esse é um elemento que, pelo menos inicialmente, Longshot vai ser incapaz de entender. 

Capítulo 3: Arize

Eu disse lá em cima que esse quadrinho tem toda a cara possível de anos 80 mas que, ao mesmo tempo ele tem um apelo atemporal, certo? Quando a gente pensa em algumas obras cinematográficas com esse mesmo tom de "magia" nessa época, que mesmo entre outras obras igualmente boas se destacam, tem algumas que vem a minha mente e que guardam fortes similaridades com a minissérie da qual falamos aqui: A história sem fim, o Cristal encantado, Labirinto, Gremlins (só o primeiro). Filmes fantasiosos, mas sérios. Fabulescos mas com os dois pés no real. Mágicos mas sombrios, profundamente sombrios. Passados em mundos igualmente encantadores e aterrorizantes. Mais ou menos como um conto de fadas. E não falo aqui das versões sanitizadas da Disney, mas das versões originais, que envolviam criaturas mágicas e mundos maravilhosos na mesma proporção que falavam de morte, mutilação, canibalismo, abandono parental, incesto e outros tópicos do tipo. 

Em meio a sua jornada, o filho perdido do Mojoverso começa a ter flashes de sua vida passada e um deles fala de seu encontro com "Deus"... de certa forma. 



Buscando informações sobre suas origens, Longshot, ainda no Mojoverso, antes de sua incursão a Terra, acaba encontrando o cientista que criou sua raça, Arize. Em uma história cheia de dicotomias (livre arbítrio vs destino, motivos puros vs motivos egoístas, real vs ficcional, tecnologia vs mundo natural), temos aqui, talvez, a maior delas: Arize vs Mojo. Ambos são apresentados enquanto lifebringers, criadores de vida. Artistas.


Mas enquanto Mojo é o burocrata, o engravatado, o executivo mais preocupado com quanto lucro suas produções vão trazer para os acionistas, Arize carrega em si a persona romantizada do artista. Eu falei acima da dicotomia entre tecnologia vs mundo natural, mas, sendo honesto, isso é um reducionismo. Sim, claramente Mojo e sua raça de spineless ones são usuários de tecnologia que, pelo menos nesse momento da hq, parecem oferecer forte contraponto ao mundo de tons fantasiosos de Arize. 

Mas enquanto este é, também, um cientista, Mojo e sua raça, por sua vez, são usuários de magia. Magia sempre é utilizada, na ficção, como um elemento "natural", uma fonte cósmica de energia que se contrapõe a construtos científicos. De outra forma: não se trata de energias naturais vs construções tecnológicas, magia vs "industrialismo", mas sobre a partir de qual perspectiva tais forças vão ser utilizadas. Arize combina ambas para construir coisas maravilhosas. Mojo, por sua vez, violenta tais conceitos e os dobra para que sirvam a sua vontade, apenas como ferramentas para dominar o mundo. O Mojoverso e seu aspecto corruptor e corrupto, é fruto dessa combinação. Da mesma forma que o próprio Longshot. A diferença entre ambos é a intenção por trás desse uso. 

Capítulo final: Longshot.

O menino que queria ser um humano de verdade. Eu citei várias vezes contos de fada ao longo desse texto e obviamente isso não foi algo randômico. Contos de fadas geralmente são sobre a inocência infantil sendo confrontada com a dureza da vida adulta. "Não vá andar na floresta escura". "Não aceite doces de estranhos". "Não desobedeça seus pais". "Ambição é algo importante, mas ambição demais pode destruí-lo". Apesar de Longshot começar a história já como um adulto, sua condição amnesíaca, além da sua personalidade, conferem a ele certa inocência infantil. E por mais que inocência seja algo valiosíssimo e que precisa ser protegido a todo custo, se tornar um herói, que é o que ele quer, significa confrontar as sombras da vida. Proteger o bem invariavelmente significa confrontar o mal.




O herói é aquele que de forma altruísta, se coloca na posição de ter que abrir mão da própria inocência e enfrentar a maldade, a crueldade e a injustiça de nosso mundo, exatamente para que ninguém mais tenha que fazê-lo. Essa é a natureza, a benção e a maldição de ser um herói. Jesus pregava o amor e terminou crucificado. Hércules corrigia injustiças e terminou matando a própria mulher e seu filho no processo. 

                                     

                                      


"A recompensa do Batman é ser o Batman. De novo e de novo, eternamente" como diria Neil Gaiman em seu clássico "What happened to the caped crusader?". A palavra "milagre" é utilizada diversas vezes nos diálogos dessa HQ. Longshot é um homem de milagres, fruto das ações de um "lifebringer". Seus poderes oscilam entre o humano (tecnológico) e o mágico (espiritual, metafísico).

Tal qual um buda, sua missão final é voltar, trevas adentro, para resgatar seus irmãos perdidos em meio a elas. 







Não dá pra desconsiderar que o próprio Mojo vê o apelo comercial do conceito do herói abnegado que luta contra a realidade que lhe foi imposta, perpetuamente derrotado mas perpetuamente se erguendo de volta. Diabos, isso é um gibi de heróis. Sabemos que eles NUNCA vão salvar o mundo de fato porque a) o mundo não pode ser salvo e b) porque se eles conseguirem, não haverão mais histórias para serem contadas. A máquina precisa continuar funcionando e os acionistas precisam continuar felizes, com suas fortunas em ascensão. 



O mundo é um lugar horrível onde mesmo a rebeldia é comoditizada. É em cima dessa navalha que a figura do herói precisa aprender a dançar. 

Mas a escolha foi feita e a decisão, tomada. Longshot decidiu voltar e resgatar seu povo do domínio de Mojo. Porque essa é a sua natureza enquanto homem livre. E, mais importante, sacrifício é um dos materiais dos quais heróis são feitos. E Longshot é, acima de tudo, um homem livre e um herói.  

----

O texto deveria terminar no parágrafo acima. Ele conclui todo o processo de raciocínio.

No entanto eu queria falar sobre o seguinte: 

Recentemente, a Marvel criou um novo título chamado X-Men: Legends, cuja proposta é trazer equipes criativas clássicas dos X-Men para que possam contar novas histórias sobre os personagens que os consagraram e, se quiserem, amarrar pontas que, por qualquer motivo, foram deixadas soltas. 

Um desses artistas convidados foi Ann Nocenti, que decidiu, pela primeira vez em muito tempo, voltar para o Mojoverso e contar mais uma aventura estrelada por Longshot, desta vez com arte de Javier Pina. 

Passada imediatamente após o final da minissérie original, vemos Mojo, Spiral e Longshot portal adentro, de volta ao Mojoverso. 



Apesar de claramente ser uma história menor, é interessante ver os criadores retornando ao personagem, supostamente imerso ainda nos anos 80, mas com a mentalidade de hoje em dia. Piadas sobre o atual estado da industria cultural não faltam. 



Na trama, Mojo rapta Kitty e Logan e faz lavagem cerebral neles para que, adivinhem, possam atuar em suas produções cinematográficas. Novamente, vemos os personagens enfiados em cenas de batalha sem qualquer motivação ou razão evidente, apenas porque....bom... porque violência é legal e vende. 



Com a história sendo produzida em um mundo pós internet e com todo o impacto que o mundo virtual causou no mundo "real", os autores mandam sua cota de jabs contra o vazio cultural de nossos dias e contra os aspectos mais idiotizantes da cultura mainstream.





Achei charmoso o link com futuras aventuras envolvendo Longshot e personagens como os X-Babies que Nocenti deixou no caminho, um presentinho pros fãs que seguem lendo o título há décadas. 

Essas duas edições servem como um apêndice, um epílogo interessante na história do personagem. E uma rápida crítica sobre como, mesmo com todos os sinais e vários artistas berrando a esse respeito, nos tornamos exatamente o tipo de sociedade que a arte criticava nos anos do pós-modernismo desconstrutivista oitentistas. Cheia de pessoas brigando em defesa de corporações bilionárias, fandoms que se definem por aquilo que consomem e pessoas utilizando seu amor por arte como forma de oprimirem outras. 

Se a mini de 85 era um "tomem cuidado", essa aventura mais recente é Ann Nocenti em seu pleno direito de mandar um divertido "eu avisei".

A seguir: 



Nenhum comentário: