"Cais do Porto" por Brendda Maria
Cacete, desculpem o tio por abandonar o formalismo que lhe é típico, mas PQP que coisa boa que é ler um gibi nacional com diálogos orgânicos, que soam como gente de verdade conversando.
Por algum motivo, durante anos, autores nacionais adotaram a norma culta de diálogos como regra e aí você tinha personagens em toda sorte de cenário, interagindo entre si com frases cheias de formalismo e erudição.
De uns anos pra cá, depois do BOOM da nova geração de hqs nacionais, pessoal decidiu abandonar esse dogma e agora, direto, vemos gente falando como, veja só, gente de verdade.
E se, normalmente, isso já seria algo legal, aqui, especificamente no caso de "Cais do Porto", isso é um aspecto fundamental para podermos imergir na trama, já que ela é um exemplo de "slice of life". Ou seja, são histórias que tem como intenção mostrar o realismo cotidiano em toda sua "mundanidade", a vida sem fantasias grandiloquentes e toda a beleza da existência rotineira.
Fazendo um reducionismo grosseiro, "Cais do Porto" de Brendda Maria (roteiro e arte. E aliás, que arte linda. Me lembrou o traço de gibis da Boom! Comics como as adaptações de "Stephen Universe" e "Bee & the Puppycat". Tons e cores conferindo um aspecto onírico pra coisa) é sobre duas amigas conversando durante uma viagem de ônibus. Simples assim.
Mas nunca é simples assim, certo? Porque todo mundo que já pegou busão sabe que, as vezes, você cai de para-quedas no meio de uma conversa entre estranhos e você se pega morbidamente interessado, quase como se tivesse chegado no meio de um filme. Em todos esses anos de usuário de ônibus aqui em SP, eu já testemunhei um sem número de fins de relacionamento, DRs tensas e sessões de descarrego emocional, lá, sentadinho, tentando só voltar pra casa.
Em determinado episódio, terminei testemunhando o motorista calmamente descendo do veículo pra ir cobrir um sujeito de porrada. Pra quem tem que trabalhar e passa uma grande quantidade de tempo dentro de transporte público, essas viagens acabam também sendo uma parte importante do seu cotidiano e os eventos lá dentro podem, de vez em quando, moldar seu dia.
Na trama, Clara e Gi, amigas de faculdade, se reencontram depois de um tempo distantes e botam a conversa em dia. A partir dessa premissa simples, seguimos com esse grupo de personagens. Literalmente, porque é um ônibus lotado, mas figurativamente também, porque, afinal, não são só as duas, mas também é o resto do pessoal com quem elas estudavam, é a família da Gi, a irmã e a avó da Clara, o vendedor informal fazendo os corres dele, a equipe produzindo o game junto com Clara. E a cidade de Fortaleza, um personagem em si.
Acompanhamos as duas e aí.... a história acaba abruptamente. E eu adoro isso porque, novamente, é como é na vida real. Estamos ouvindo um diálogo de pé de ouvido, interessados, mas aí um dos interlocutores precisa dar o sinal, ou o ônibus chega no ponto final, ou é a NOSSA hora de dar o sinal pra descer, e terminamos sem saber como a vida daquelas pessoas se desenrolou. Somos roubados de nossa catarse.
O casal vai continuar junto? O cachorrinho dodói conseguiu ficar bem depois da operação?
Eu lembro que, certa vez, voltava do trabalho, na época que morava lá na Vila Carrão e estava indo pro Shopping Aricanduva, onde ficava a Smart Fit em que treinava. No caminho, em meu acento, estava vendo "Omega vs Okada" no Wrestle Kingdom 11. Aí, passa o McDonalds que eu usava como referência e era hora de dar o sinal, quando eu me viro e noto pelo menos umas 5 pessoas olhando a tela do meu celular, interessadíssimas em saber se Kenny finalmente venceu o Rainmaker ou não. Provavelmente pessoas que nunca tinham visto wrestling, mas estavam encantadas com a narrativa diante de seus olhos. E da mesma forma, eu roubei a catarse delas, descendo antes da conclusão do combate.
A vida é assim, né?
A edição da Conrad traz uma segunda história curtinha, onde testemunhamos duas outras amigas conversando em uma cafeteria aqui em SP.
E pro caso de você estar se perguntando "porque isso é interessante?", a resposta é: porque adoramos histórias e personagens com os quais nos relacionar. E problemas cotidianos são universais.
Eu nunca vou matar um dragão ou tentar dominar o mundo.
Mas eu sei como dói ter que ir dormir se preocupando com um ente querido que está em um hospital se tratando de algum problema. Eu sei como é me sentir distante dos amigos e, ocasionalmente, de quem eu queria me tornar, por causa da vida e da necessidade de pagar contas.
"Cais do Porto" é muito sobre nossos pequenos mas imensos épicos cotidianos, em todo seu aspecto igualmente ordinário e majestoso.
E você sabe que um slice of life foi bem sucedido quando, ao final, você se pega pensando nos personagens como se fossem amigos com quem perdeu contato porque... bom... novamente, a vida, né?
Espero que Clara e Gi estejam bem.
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"Janelas" por Vinícius da Silva
Vivemos filtrando o mundo através de janelas.
Desde as que temos em casa ou no trabalho, até as imateriais. A tela da sua tv, celular e notebook. O seu olhar restringido pelo frame dos óculos, como diria Win Wenders no doc. "A janela da alma".
Janelas, além de um canvas animado, é uma válvula de escape. Hey, minha vida teria sido bem mais miserável se, durante as aulas no ensino médio, eu não pudesse ignorar as vozes dos professores e demais crianças na sala e ficar olhando pela janela por horas a fio, imaginando cenários fantásticos e devaneios surrealistas.
A janela filtra o mundo. Impede o som de entrar. Reflete. Tal qual um espelho. Vemos o mundo e nos vemos refletido nele.
"Janelas", de Vinícius da Silva (roteiro e arte), é sobre isso. Sobre a jornada do nosso olhar indo em direção à janelas e sobre o que vem refletido. E sobre como aquilo que nós escolhemos observar diz algo a respeito de nós mesmos.
Na trama, um personagem sem nome, chamado apenas de Anônimo, conversa com um programa de computador, uma inteligência artificial aos moldes da Siri ou Alexa. Demonstrando intenções de se matar, o programa, chamado Atena, decide interceder. Ela grava todo o diálogo e transmite internet afora. A lógica é que transformar a dor de seu interlocutor humano em fonte de entretenimento alheio - e capitalizar em cima disso - pode ser uma fonte de motivação para o protagonista.
Diante de um público igualmente fascinado e enojado, em constante estado de atenção crescente, o protagonista passa a se degradar de formas mais e mais grotescas, sempre visando manter o olhar daqueles que parecem horrorizados mas que são incapazes de olhar para o outro lado enquanto incentivam, sedentos, por mais e mais.
Esse tema já foi tratado várias vezes na ficção - um dos momentos mais recentes foi naquele episódio das abelhas de Black Mirror - mas eu gosto muito de como essa hq em 3 capítulos o desenvolve.
É curioso, inclusive, pensar que eu li isso em um momento onde, sem citar nomes para não parecer que eu mesmo estou tentando milkar a mais recente trend virtual, uma treta entre web celebridades sobre identidade e super-exposição com tons macabros é um dos assuntos mantendo os ratinhos correndo em sua roda giratória conceitual. Relevante como nunca.
A verdade, no entanto, é que uma história dessas SEMPRE vai ser relevante. Crescemos vendo programas sensacionalistas que exploravam a dor alheia. Diabos, o "aqui agora", jornaleco que é o avô dos "Cidade Alerta" da vida, teve que LITERALMENTE mostrar uma pessoa dando um tiro na própria cabeça para que, finalmente, alguém olhasse e dissesse "olha, vocês foram longe demais". Eu me lembro de, em outra ocasião, o programa encerrando e, enquanto subiam os créditos, eles reprisavam - sim, mostravam DE NOVO - a cena de um homem enquanto ele agonizava, depois que capsulas de cocaína que ele trazia no estômago estouraram.
A internet e sua pulsão de morte coletiva são só a versão tecnologicamente atualizada disso. Suicídio coletivo em 4K, Ultra High Definition. Onde pagamos pela nova oportunidade de ver terceiros se jogando abismo adentro, para nossa diversão.
A arte de Vinícius transmite bem o tom onírico que a história quer passar, como se a janela sob a qual a vemos estivesse em um não-espaço entre o mundo real e o virtual, entre a percepção de fato daquele cenário e a forma com a qual Anônimo a interpreta. E também como se transitássemos entre o NOSSO olhar de leitor e a forma como Atena testemunha aquele show de horrores.
Eu falei dos diálogos realistas comentando sobre Cais do Porto e aqui ele também orbita entre dois mundos, alternando entre norma culta e coloquial só que aqui, por causa do tom da trama, funciona perfeitamente, conferindo tons meio operísticos para o negócio. Tanto pela arte quando pelos diálogos e também pelo tom depressivo da história, ela me lembrou muito do estilo do Mutarelli (e é um crime que, em quase 15 anos de blog, acho que essa é a primeira vez que menciono um dos meus artistas nacionais favoritos aqui. Precisamos fazer algo a esse respeito, não?).
Depois de um momento de alívio, a história retoma o tom niilista, o que nos conduz a seu catártico final onde o autor não tem pudores de apontar o dedo na NOSSA cara e nos perguntar, através da trama, a respeito do nosso papel nessa cadeia produtiva demoníaca. Afinal, se não tivesse ninguém constantemente interessado e esperando uma escalada nos eventos e na degradação nessas tretas, elas existiriam? A tal história da árvore caindo na floresta sem ninguém perto pra ouvir o estrondo...
Não, não seremos perdoados. A culpa disso também é nossa, por transformarmos o mundo em um gigantesco programa do João Kleber em tempo real. Novamente, janelas libertam, mas elas também refletem.
Se a fonte do seu entretenimento vem da dor do outro, da destruição do outro, o que isso diz a seu respeito?
As monstruosidades que você vê na janela são as de um mundo tentando te manter amortecido através do choque ou são partes da sua própria monstruosidade, que você está apenas regurgitando de volta?
Aquela janela é um portal ou um espelho?
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"It's lonely at the center of the earth" por Zoe Thorogood
Pode ser a melhor história do mundo, mas a forma como um artista decide narrá-la é o que vai separá-la entre ser "um clássico" ou "mais do mesmo".
"It's Lonely at the center of the earth" é uma história auto-biográfica sobre uma artista tentando criar sua próxima obra depois um grande sucesso e, ao mesmo tempo, tendo que lidar com depressão clínica. Agravada depois que uma viagem para divulgação de seu novo trabalho é cancelada em virtude da pandemia.
É isso. A magia dessa obra vem exatamente do como Zoe Thorogood (roteiro e arte) decide registrar sua história pro mundo.
Poderia ser algo enfadonho. Já vimos essa história ser contada de forma "linear" tantas, e tantas, e TANTAS vezes. Desde cine-biografias extremamente formulaicas até outros quadrinhos. "Blankets", por exemplo, é um quadrinho que eu acho extremamente enfadonho por ser uma biografia contada da forma mais comum, linear e desinteressante possível.
O que Zoe faz aqui, no entanto, é usar o fato de ser um gibi para, usando de aspectos típicos dessa mídia, como a arte, distribuição de quadros na página, quebra de linearidade temporal, metalinguagem, entre outros, fazer uma trama de fortes tons impressionistas, mostrando como ELA lida com tais questões, quase como se tivéssemos acesso a um portal - ou janela - pra dentro da mente dela.
E novamente: parece um problema ordinário. Mas nós nos identificamos na universalidade da dor dela.
Eu, Hak, The Bear, eu SEI, OBJETIVAMENTE, como é tentar fazer algo criativo em um momento em que você está sentindo dor. Ou pior, não está sentindo absolutamente nada. As auto-cobranças, o peso da responsabilidade...
"Como assim você está com bloqueio criativo? Filho da pu**, tu acha que o pedreiro levantando 50kg de saco de cimento nas costas no sol tem bloqueio criativo????"
Zoe poderia fazer o que quisesse com a própria dor. Que ela tenha transformado sua batalha contra a depressão em arte é digno de aplausos. E arte confessional. Zoe não é gentil com ela própria.
Li uma crítica desse gibi se referindo a ele como "egoísta e excessivamente auto-centrado" e, mesmo desconsiderando que é uma AUTO-biografia, acredito que a própria autora concordaria com o comentário. Sim, é centrado nela. Mas é universal. E cria pontes, conexões com quem vive com dores parecidas. E faz isso de formas tão inventivas que mesmo nos momentos mais cotidianos, tu se pega maravilhado com o quanto aquilo é representado de forma visualmente bonita.
E dolorosa. E encantadora. E as vezes, enervante (eu tenho depressão e mesmo sabendo que não é culpa minha, eu sei o quanto pode parecer irritante pra quem tá de fora. E honestamente? Não tiro a razão de ninguém que pensa assim).
Mas nesse caso? Acima de tudo? Sublime. E única.
Esses dias o Eisner anunciou seus indicados para o prêmio americano dos Quadrinhos e, surpreendendo a absolutamente ninguém, Zoe está entre os indicados. Na verdade, liderando o número de indicações com "It's lonely...".
Tudo que eu posso dizer? Merecido.
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É isso crianças. Hak tá indo nessa.
Volto pra falar de mais gibi assim que tiver lido mais coisa legal.
Fiquem bem.
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