terça-feira, 28 de julho de 2020

Conversando com o Starman #12

Okay, senhoras e senhores. Estamos de volta para mais um episódio do seu oráculo apocalíptico ultra-pop favorito. A canção de hoje vai ser uma das complicadas de se comentar aqui e isso porque ela faz parte de um dos trabalhos conceituais de Bowie e olhar apenas esse fragmento sem levar todo o conjunto em consideração me parece meio covarde.
De qualquer maneira, falemos da faixa mais difícil de "Outside": A SMALL PLOT OF LAND


Contexto: Tudo começa em 1992. Na verdade, tudo começa uns 15 anos antes, mas para fins de concisão, vamos nos concentrar nos eventos ocorrendo no segundo ano da década de 90: Bowie estava se casando com aquela que seria a sua esposa até o final de sua vida, Iman Abdulmajid. 
Na festa, entre comes e bebes e conversas soltas aqui e ali, ele reservou dois dedos de prosa para um colaborador de longa data: Brian Eno. Como os senhores sabem, os dois trabalharam juntos nos 3 álbuns que fazem parte daquela que é conhecida como a "trilogia de Berlin", sendo eles o "Low", "Lodger" e "Heroes". Eno, basicamente, foi quem evangelizou um Bowie pós Ziggy, pós Aladin Sane, pós Diamond Dogs e pós Station to Station sobre as belezas dos sintetizadores e sons eletrônicos que, salvo a fase de "rock de arena" do artista nos anos 80, seria outra companhia constante em sua produção até sua morte em 2016. 
De volta ao reencontro entre ambos: entre cartas e mais cartas discutindo a situação da música nesse momento e tudo o que eles sentiam que faltava nelas, os dois começaram a esboçar certa vontade de produzir um novo trabalho juntos. Já decididos a conceber um novo disco e com a notícia de nova parceria entre ambos ganhando o mundo, a Q Magazine sugeriu ao cantor que ele escrevesse um diário de produção, que seria posteriormente publicado na revista. Bowie declinou o convite original, já que achava que a descrição do dia-a-dia no estúdio seria chata demais, mas acabou escrevendo o tal diário sob a perspectiva de um dos personagens da obra. Daí para a idéia de, de fato, criar um álbum conceitual, foi um pulo e dessa convergência de eventos, veio "Outside", décimo nono lançamento de estúdio da carreira do artista. 
Como dito acima, a idéia era comentar sobre os rumos que a arte e principalmente a música tomavam nessa metade de década em que se encontrava. Não quero adentrar demais a esse respeito para não terminar com um texto quilométrico, mas o álbum descreve um mundo distópico, localizado em 1999. Nesse cenário, ocorriam os art-crimes, que eram exatamente isto: pessoas eram mortas e seus corpos eram mutilados eram vistos como um novo trending artístico socialmente aceito e reconhecido como tal. O protagonista do LP, Nathan Adler, é uma espécie de crítico de arte especializado nesta...... "nova mídia" e é quem, de fato, separa "as peças" dignas de reconhecimento e validação e o que é apenas "lixo". 
A idéia de Bowie e Eno era de fato, captar o espírito da época em que este CD se inseria: 1995. 
Um ano antes, o mundo viu o lançamento de vários discos clássicos que marcariam a década: o "Definitely Maybe" do Oasis,  "The downard spiral" do NIN, "Grace" do Jeff Buckley, "Portrait of an american family" do Marilyn Manson, "Ready to die" do Biggie, "Illmatic" do Nas, "Parklife" do Blur, "The Holy Bible" do Manic Street Preachers, "Ill comunication" dos Beastie Boys, o clássico acústico MTV do Nirvana. É o ano, aliás, em que Kurt Cobain dá cabo da própria vida na garagem da casa em que vivia. O mainstream era aquilo: Ace of Base reinava com 3 singles no top 10 da lista dos 100 maiores do ano. Lista essa que incluía, apenas para ficarmos nos 20 primeiros, nomes como Celine Dion, Mariah Carey, Toni Braxton e Bryan Adams. Paralelo a isso, tínhamos também aquele típico mal estar de fim de século, polarizado ainda mais por, também, ser um fim de milênio. Os franceses se referem a esse fenômeno como "fin de siecle", que é esse mal estar coletivo, essa sensação de apocalipse iminente que cai sobre o mundo com a proximidade de datas cabalísticas como essas. Alguns textos que li falam que o "fin de siecle" virou mainstream de fato em 1992, na noite do Oscar em que "Silêncio dos Inocentes" levou os 5 principais troféus da premiação (melhor filme, roteiro, ator principal, atriz principal e direção). 
"Outside" cria um universo que alia essa efervescência artística a essa sensação de fim iminente, numa história de tons sinistros. Caos social, espiritualidade, fascismo e arte, tanto como forma de validação desse cenário como arma contra ele. 

Sobre a música: "A small plot of land" é um pesadelo sonoro de mais de 6 minutos, com uma instrumentação jazz de tempos quebrados, sons atonais de guitarra e piano, vozes etéreas (a de Bowie é só a mais notável dentre elas. Podemos ouvir algo que soa como um cântico indígena a partir dos 4 min.) combinando tudo isso num cenário infernal, fascinante e opressor ao mesmo tempo. A letra é intencionalmente dúbia: ouvimos a voz de Adler, o crítico de arte, avaliando o "objeto de art-crime" mais recente. Ele fala num tom condescendente, se apiedando daquilo que vê. No entanto, mais uma vez, o crime é um ato artístico em si, então, não sabemos de fato se sua piedade está com a pessoa que foi assassinada ou se suas palavras se referem a aquele corpo como obra. Nesse caso, o "poor dunce" da faixa seria o artista, alguém tentando se expressar artisticamente, mas sem sucesso. 

Frase do dia: "Is small life so manic?". A frase parece falar sobre ambos: o corpo assassinado e o homem que o matou como forma de ganhar notoriedade. E sobre o nosso mundo em geral. 
Os anos 90 foram bizarros para dizer o mínimo, quase como um rascunho do nosso mundo de 2020 e sua necessidade de super-exposição constante. Vidas inteiras transformadas em arte, em geração de conteúdo e produção non-stop. Ninguém quer ser normal, comum. "Small life". 
E sim, eu sei o quanto soa hipócrita eu dizer isso no meu WEBLOG, onde eu normalmente vomito minhas intimidades em forma de posts, vídeos, podcasts e gifs animados. 
Vontade de notoriedade, sempre existiu. O que torna nosso mundo notável é a quantidade de meios que temos para coletivizarmos nosso "particular".
É aqui que eu termino esse texto: eu sei que normalmente agora vem a parte em que o autor falaria da necessidade de revisar isso e que não existe nada de mal em pelo menos filtrarmos um pouco disso, reservarmos um pouco do nosso cotidiano apenas para nós mesmos.
Mas de novo: BLOG, diário virtual. Eu tenho podcast, canal no youtube, praticamente moro no twitter e meu notebook as vezes vira 24 horas ligado entre os dias, em que eu vejo a rede social do pássaro azul e outras como Instagram, e as noites, onde baixo coisa. Parte dessas, inclusive, para depois virar conteúdo para o meu blog. 
Então, não crianças. Vocês que lutem. Vocês que reflitam sobre onde fica o limite entre o público e o "conteúdo para as massas". Eu? Fico aqui, tentando andar na corda bamba entre um e outro, tentando eu mesmo encontrar minhas respostas. 

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