sexta-feira, 17 de julho de 2020

Conversando com o Starman #6

Okay.....essa vai ser difícil. De fato, eu contava, confesso, com um pouco de sorte, de que eu só iria abordar qualquer canção desse disco lá pelo trigésimo quinto dia, quando eu já teria escrito textos o suficiente para faze-lo com uma das mãos amarradas nas costas. Que o processo já tivesse ficado tão automático que já seria quase mecânico e aí, eu já tivesse as habilidades, via prática e prática e MAIS prática, citando uma das minhas músicas favoritas do Sparks, necessárias para tal.
Bom, para o inferno com a sorte, eu imagino. A vida é o que é, gostemos disso ou não, e você tem que fazer a limonada com os limões que ela te dá. Mesmo quando, prestando alguma atenção, você acabe percebendo que o que você carrega nas mãos são dois limões podres, uma laranja verde e um jiló. 
Enfim.....a música de hoje é LAZARUS


Contexto: Dois mil e dezesseis. Ultimo ano da presidência de Barack Obama. David Bowie ainda tinha 68 anos. Sessenta e oito anos, 11 meses e alguns dias. Isso é importante, pelo menos para aqueles dentre vocês que acreditam em símbolos e coisas do tipo. Blackstar, o álbum, estava pronto. O disco surgiu a partir do desejo do cantor de compor um musical para a Broadway. A idéia já vinha há décadas: "Diamond dogs", meu lançamento Bowieano favorito, veio da idéia frustrada de adaptar 1984 pros palcos. Nos anos seguintes, viriam intenções de adaptar "O homem que caiu na terra" ou mesmo "Ziggy Stardust...". Mas sempre havia a preocupação com mais um trabalho. Mais um LP, mais uma turnê, mais um vídeo. Até que as estrelas se dispuseram no céu da forma certa e "Lazarus" surgiu.
A idéia era revisitar o mundo de "The man who fell to earth", 30 anos depois da morte do seu personagem principal, o alien Thomas Jerome Newton. 
Só que, no meio do caminho, surgiu uma estrela negra. Várias, na verdade.  
"Lazarus", a canção, é lançada como single ainda em Dezembro do ano anterior, junto com um clipe belíssimo do qual eu falo adiante. Ainda faltava certo contexto, certa visão periférica  (e, claro, certa ausência) para entendermos a grandiosidade dos símbolos, tanto na canção quanto no clipe, mas estas viriam no exato dia do lançamento do CD do qual essa faixa fazia parte. Dois dias depois da morte de Bowie e no exato dia em que o artista completaria 69 anos. Sessenta e nove. 
Pensou na posição sexual? Okay, não está errado. Mas pensa de novo. Olha o desenho desses dois números. Presta atenção e deixa a imaginação solta. O que você enxerga?
O símbolo do infinito?


O yin-yang?


Talvez isso aqui:


O símbolo do signo de câncer. 
Eu disse que simbolismo era importante. 

Sobre a música: Lazarus. Um dos momentos mais importantes da mitologia cristã. Todo mundo lembra do sujeito doente que tentou encontrar Cristo sem sucesso e morreu na empreitada. Quando as notícias de sua morte chegaram até o Nazareno, ele foi até o seu túmulo e, 4 dias depois de morrer, Lazaro se levantou. Uma história sobre o poder de Cristo e seus efeitos naqueles que crêem nele. 
Claro que, aqui entre nós, eu sempre achei o versículo seguinte complicado: 

"E Jesus, ouvindo isto, disse: Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela." 

Afinal, isso era sobre Lázaro ou sobre Jesus usando o sofrimento dele e da irmã dele para "vender seu peixe"?
Mas enfim. Lazarus transpira morte. A lenda cristã, a peça e a música de mesmo nome. 
Ela começa com a frase: "Look up here, I'm in heaven"
Bowie, é consenso, era um agnóstico que apreciava Nietzsche. Sempre teve sua espiritualidade mas não nos esqueçamos de que essa busca pelo místico vinha mais de uma tentativa de entender a mecânica dessas crenças, seus símbolos e como estes funcionavam no nosso inconsciente coletivo. 
O céu do qual ele canta parece menos com o reino de Deus, mas sim com este plano no qual vivemos.
Se o que existe for apenas essa existência, então sim, ele viveu boa parte da sua vida no paraíso.
Teve sucesso, fama, reconhecimento. Algumas descidas ocasionais ao coração do inferno, mas tal qual Dante, ele sempre conseguiu achar seu caminho de volta. Lazarus é uma reflexão também sobre como agora, diante do fim, finalmente a fonte ter secado. Nós conhecemos o homem porque toda sua vida foi uma obra de arte. Sua morte idem. O problema disso, é que essa é a ultima página e depois disso, só ficam as memórias.

"Everybody knows me now"



O homem foi um deus. Mas também um homem, sofrendo dos efeitos de um cancer. Da idade avançada. Da quimioterapia. E dos vários ataques cardíacos sofridos por 2015, em decorrência de tudo isso e que só iríamos saber que aconteceram quando ele já não estava mais entre nós.

"This way or no way You know, I'll be free Just like that bluebird"

Quem pode culpa-lo por procurar pela liberdade, simbolizada aqui na figura do pássaro azul?


"By the time I got to New York I was living like a king There I'd used up all my money I was looking for your ass"

O uso de "your ass" na frase acima parece um coloquialismo vulgar até você se lembrar de que Jesus, o mesmo filho de Deus procurado por Lazaro enquanto tentava escapar do oblívio, cavalgava em sua jornada de evangelização em cima de um burro. Nova York foi a casa de Bowie por toda a fase final de sua vida. Antes disso, lembremos, foi onde ele quase despencou num abismo de cocaína, nos anos 70. Foi onde ele se viu rei e onde ele se viu homem, fraco e falho. 

"Dropped my cell phone down below Ain't that just like me?"

Celular? Para onde vamos, não precisamos de celulares. Ou de qualquer aparelho do tipo. 
O pássaro azul não precisa de nada além das próprias asas e do céu diante dele. 
E agora, David Robert Jones também não.


Como vai ser o seu dia: "Memento mori". Transforma tua vida numa obra de arte. Numa memória querida por aqueles que te conheceram. Porque, no final, isso é tudo que a gente deixa para esse mundo depois de partirmos para aquela gigantesca estrela negra no céu.

Frase do dia: "I'll be free"

Eu tenho que falar do clipe de Lazarus, mas sem chances de fazer isso hoje. "Blackstar" é um disco que eu ouvi umas duas vezes na vida e isso porque, como os senhores podem imaginar, ele cava muito fundo na minha, por falta de um termo melhor, "alma". Então, fica pra segunda, junto com o próximo episódio de "Conversando com o Starman".
Até lá. 

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