quinta-feira, 30 de julho de 2020

Conversando com o Starman #13

Mais uma quarta de hiato se passou e rumamos novamente ao final de semana, senhoras e senhores. 
O mundo continua acabando, quem pode, continua na quarentena, quem não, é jogado aos lobos pelo sistema capitalista e as engrenagens continuam se movendo, ainda que em velocidade reduzida. 
E mais importante do que a lenta degradação das estruturas sociais que sustentam o ocidente de 2020 é o retorno do seu oráculo bad vibe ultra pop predileto. 
A música de hoje vem do penúltimo disco de David Bowie e é, de fato, uma das faixas mais interessantes daquele trabalho: LOVE IS LOST


Contexto: Desse eu posso falar com tranquilidade já que tá fresco na memória (inclusive, eu, definitivamente um não-convertido quando falamos em colecionismo de mídias físicas, vejo a capa do meu CD me olhando de volta, na seção da minha estante que funciona como um pequeno altar Bowieano). Dois mil e treze. O mundo, doente há eras, começa a apresentar de forma gritante os sintomas visíveis do mal que viria a acomete-lo nos anos seguintes (inclusive, para aqueles que forem acessar esse texto num tempo posterior ao de sua concepção, estamos em 2020 e o paciente segue em estado grave). Posicionados naquele momento histórico, no entanto, tudo seguia relativamente normal quando, de repente, não mais que de repente, sites de música e cultura pop em geral anunciam o release surpresa de "The next day", vigésimo quarto lançamento de estúdio de Bowie. Todo mundo foi meio que pego de guarda baixa, já que pensávamos que ele estava aposentado da vida artística. Seu trabalho anterior, o "Reality", de 2003, havia recebido boas críticas e vendas significativas e foi, inclusive, na tour de shows de divulgação do álbum que o cantor sofreu seu primeiro ataque cardíaco. O sucesso da obra , os efeitos de uma turnê mundial no artista que já beirava os 60 anos e esse período sem novos CDs indicavam o final de sua carreira então, vocês podem imaginar o quão bombástica foi sua chegada. De fato, o disco esteve no topo de quase todas os charts de mais vendidos de 2013. Foi a primeira vez que um lançamento de David Bowie esteve no topo das listas de vendas britânicas desde "Black tie, white noise", de 1993. 
A escassez de entrevistas, aliada à declaração de que não haveriam shows de divulgação, novamente, cimentaram no fandom a certeza de que dessa vez, sua carreira havia terminado de fato. 
E como tal, estávamos bem, já que, como eu mesmo dizia depois de ouvir a obra, esse teria sido o fim de carreira artística mais digno do qual conseguia me lembrar. 
Claro, que novamente, estávamos todos errados, como viríamos a perceber, 3 anos depois, quando uma estrela negra apareceu no céu, mas...

Sobre a música: Uma das faixas mais "diretas" do "the new day". Uma canção de rock, com toda a crueza e simplicidade que esperamos de uma composição do tipo.  A letra narra as reflexões de um artista lembrando de seu passado: jovem, aos 22, tudo é novo. Novo país, nova vida, novos amigos. Citando a frase-tema do filme "Scarface", "o mundo é seu". 

"But your fear is old as the world"

Porque por toda a história humana, qualquer artista que se joga na aventura de tentar conseguir validação e reconhecimento protagoniza um conto com tons de horror: o medo de julgamento, o medo do não-reconhecimento, de ser irrelevante e de terminar enterrado numa lápide e descrito postumamente como "uma grande fonte de potencial não-concretizado". Para cada história de sucesso, dezenas e dezenas de talentos ignorados. O que não é o caso do protagonista dessa canção (e lembremos, a idade do personagem não é uma coincidência: aos 23 anos, um ano mais velho portanto do que o narrador de "love is lost", o artista lançaria "The man who sold the world"). 

"Say goodbye to the thrills of life 
When love was good, when love was bad 
Wave goodbye to the life without pain 
Say hello, you're a beautiful girl"

Com a fama e a fortuna, o artista-narrador desta faixa abre mão dos elementos que compõem uma vida "ordinária". Vai-se embora o amor e os altos e baixos de uma realidade em que as coisas são conquistadas com dificuldade. Agora, você é uma "estrela" e tudo (inclusive a "beautiful girl" da letra) está ao alcance da mão. Fica a questão: um cotidiano sem adversidade alguma vale a pena ser vivida? A dor é um inimigo a ser derrotado ou é o que, paradoxalmente, confere valor as conquistas que alcançamos no decorrer de nossa existência? 

"Say hello to the lunatic men 
Tell them your secrets, they're like the grave 
Oh, what have you done? 
Oh, what have you done? 
Love is lost, lost is love"

Quem são os homens lunáticos da letra? A gente, tomando qualquer declaração dos artistas como se fossem os mandamentos esculpidos nas pedras de lei, desesperados, tal qual viciados procurando por um novo "pico"? 
Nessa troca, algo se perde. O artista em questão, ganhou o mundo, o universo e a imortalidade. Mas, nesse pacto faustiano, ele abriu mão do amor e se vê perguntando se o preço não foi alto demais. 
O único consolo é que isso não é uma escolha: 

"You know so much, it’s making you cry 
You refuse to talk, but you think like mad"

Todo artista vai te dizer isso e é fato. Diabos, todo escritor, famoso ou não, vai corroborar essa afirmação e eu, do alto da minha insignificância, posso dizer que é uma verdade: não escrever DÓI. Quase literalmente. 
Se você tem algum amor pelo ato de sentar na frente de um papel em branco, seja ele físico ou digital, e se auto-imolar no ato de tentar criar "algo", qualquer coisa que seja, você sabe que não escrever dói e eu juro que estou dizendo isso sem tentar injetar nenhum romantismo nesse ato. 
Eu já fiquei períodos sem postar nada e eu sempre me sinto irrequieto depois de alguns dias.
Você sente como se quisesse pegar um megafone, subir numa caixa e sair vomitando opiniões a plenos pulmões.
Foram 10 anos entre o álbum anterior e esse. Bowie ainda tinha algo a dizer. E não fazê-lo se tornou doloroso. 
No clipe maravilhoso de "Love is lost" (em versão remixada pela DFA de James Murphy), David, o homem, se vê num prédio vazio (de fato, o apartamento do artista em NY). Sozinho, perdido em suas idéias, ele se vê diante de duas criações suas, que parecem se mover sinistras, tal qual fantasmas, dentro de sua mente. 


Vemos dois bonecos que remetem a duas das minhas personas favoritas do artista: o Thin white duke e o Scary Monster. Ao vê-los, ele se pergunta"what have you done?"
É interessante notar que não vemos as personas mais "festivas" e "solares" do artista. Não aparecem Haloween Jack ou Ziggy Stardust, mas o Duque e o Pierrot, criações que remetem a momentos mais sinistros de sua vida. Arrependimento, sim, mas também certa consciência de que ele precisa voltar a lidar com seus demônios. Porque, afinal, qual é a sua opção? Ele é um artista, e artistas precisam criar. O paradoxo ali é que a única forma de calar as vozes em sua cabeça é deixando seus demônios gritarem. 
O pacto é refeito. O mundo é dele de novo. E nós, os lunáticos, mais uma vez, paramos para ouvi-lo. 

Como vai ser o seu dia: Faça arte. Pro inferno com as consequências. Qual a escolha?
As pessoas falam da arte como se fosse algo descartável. Bom, veio a pandemia e mais do que nunca, é a arte impedindo que vejamos corpos caindo dos prédios, em uma macabra chuva humana de suicidas procurando uma rota de fuga. Arte é o que faz ficar aqui valer a pena.
É o que nos mantem sãos. Então, vai fundo. Boa arte, má arte. Arte também é aprendizado e técnica. 
Deixa os seus demônios falarem. Porque se você tem esse impulso, se você tem essa "coisa" de fazer arte em você, por mais que você possa tentar ignorar, você sabe que está lá, cobrando atenção, querendo sair para a luz. 
Não é uma escolha. Na verdade, nunca foi. 

Frase do dia: "Seu medo é tão velho quanto o mundo"

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