quinta-feira, 9 de julho de 2020

Conversando com o Starman: sua dose diária de Bowie



Eu nunca acreditei em oraculos.
Minto: num momento particularmente frágil da minha vida, recém-chegado em SP, atravessando a semana indo de domingo a domingo no cursinho, vivendo numa pensão pra homens e sobrevivendo com apenas o dinheiro que meus pais me mandavam de Avaré (e exatamente por isso, economizando sempre onde dava), eu confesso que lia com interesse o horóscopo de um dos jornais diários que eram assinados pelo pessoal lá do ACEPUSP, pré-vestibular de caráter popular visando atender pessoal de baixa renda tentando entrar numa universidade pública. E, como eu já narrei diversas vezes, meu pai, tentando me presentear com um livro de ciências, acabou por engano me trazendo obras de ciências.....ocultas. Então, não, não aprendi sobre física e biologia mas, por outro lado, não existem muitas crianças de 8 anos de idade que já tem noções básicas de leitura do tarot e runas (já completamente esquecidas, obviamente). 
Mas meu ponto é: nunca tive uma relação de proximidade com quaisquer métodos de leitura do futuro. Até porque, como vocês sabem, tendo ao niilismo "fofinho". Niilismo em si me soa um pouco frio. Se nada é verdade e todas as formas de ideologia são igualmente falhas, a única verdade é a realidade fria e impessoal. Eu por outro lado penso o seguinte: não, não existe Deus, nem deuses. Nenhum oráculo funciona, tudo é só projeção nossa. E isso porque, obviamente, queremos acreditar que nossa vontade influencia o universo. Palavras e pensamentos tem poder. 
Só que.... não, não tem. E eu estou bem com isso, até porque, se nada existe além da nossa realidade factual, prefiro uma postura de "vamos transformar esse mundo em nosso paraíso para aproveitarmos o pouco tempo que temos nele" do que a alternativa apática. 
Mas claro, existem dias e dias. 
E existem dias em que... bom, vocês conhecem aquela frase do "num avião caindo, ninguém é ateu".
E o mundo de 2020 pode ser descrito exatamente assim: como um avião em queda livre. Um trem desgovernado.
Nessas horas, a parte mais primal e reptiliana do meu cérebro anseia por aquele conforto que a crença em alguma mitologia traz, a de que existe alguma forma de inteligência cósmica ordenando as coisas e que vai garantir um final feliz (apesar de, spoiler alert, eu saber que não).
E aí fica essa dualidade: como aplacar essa necessidade, sem abrir mão da minha capacidade crítica e da minha auto-consciência de que oráculos são apenas o medo da morte somados a nossa necessidade de acreditar que temos algum controle sobre nosso meio além daquele que envolve arregaçar as mangas e ir, vocês sabem, fazer coisas. 

A resposta é óbvia: CRIAR MEU PRÓPRIO ORÁCULO. Exatamente por isso, este é o primeiro episódio da nova seção aqui do Groselha on the Rocks: Conversando com o Starman
Precisa saber se vai correr tudo bem, se é um bom dia pra tocar os projetos adiante ou se o ideal é ficar dentro de uma sala protegida com sigilos mágicos desenhados com sangue? É só vir aqui, de segunda a sexta, e ver o que as canções desenvolvidas por David Robert Jones tem a dizer.
Eu sempre disse que vocês podem encontrar todas as respostas sobre as grandes questões da vida dentro da obra Bowieana. Pois bem, este sou eu pondo essa crença à prova. E falando de DEUS. 
O único Deus em que eu acredito, pelo menos. O que é sempre divertido. 
So, como vai funcionar: todo dia, uma música randômica escolhida da discografia do Homem. 
Uma rápida olhada na letra e no contexto da canção e uma reflexão tirada das profundezas da minha orelha sobre como as proféticas palavras redigidas por Ele vão afetar (ou não) o nosso cotidiano.
E ao final, uma frase, tirada da supra-citada canção, que pode (ou não) servir como norte do dia. Ou apenas que foi legal o suficiente pra chamar a minha atenção. 
Okay? Okay. 
So..... pra dar início as atividades: 

A música do dia é: DANCING WITH THE BIG BOYS

Contexto: Faixa final de Tonight, disco de 1984 e o décimo-sexto lançado por Bowie. 
Yeah.... um começo não muito auspicioso. Uma música inchada de um LP inchado e que, sejamos francos, não é um dos momentos mais brilhantes da carreira do artista. E que, em retrospecto, antecipava o tom do seu trabalho seguinte, "Never let me down" (de 87), que receberia críticas igualmente negativas. Da mesma forma que aquele, este álbum teve vendas inicialmente boas mas que foram caindo conforme as críticas saiam. Apesar do tom deste preâmbulo, tem pelo menos 3 faixas bem boas: a título (um dueto simpático com Tina Turner) e os dois clássicos "Blue Jeans" e "Loving the Alien". 
De fato, os anos 80 não foram particularmente gentis com Bowie. Foi a década que o viu encher estádios e atingir visibilidade popular como nunca antes (basta lembrar que a obra anterior a essa, "Let's dance" é seu lançamento que mais vendeu), mas cujo preço foi certa perda de foco, com discos que, apesar de ainda terem algumas faixas boas, careciam de coesão e pesavam na produção excessiva. Esse labirinto criativo só vai ser vencido na década seguinte, com Black Tie White Noise (de 1993). Mas essa é outra história...


Sobre a música:  Bem intencionada. Tem backing vocals do Iggy Pop. E é sobre o apocalipse, o qual é, vocês sabem, um dos meus temas favoritos, narrando sobre um personagem que conseguiu "chegar no topo" apenas pra ser ver esmagado pela indústria e tão solitário e miserável quanto estava antes de atingir seus objetivos. 
A música foi concebida numa jam entre David e Iggy no estúdio, regada a algumas garrafas de cerveja, numa espécie de brainstorming criativo. A idéia era caçar um tipo de som que fosse ao mesmo tempo experimental e referencial ao método criativo de décadas anteriores. Se a experiência foi bem sucedida ou não, deixo que os senhores decidam. 

Como vai ser o seu dia: No improvável caso de que, tal qual o personagem retratado nesta canção, você se veja em meio a uma situação de potencial apocalipse (o que, curiosamente, descreve nossos dias atuais com precisão cirúrgica. Sério, temos inclusive um cardápio de opções para que o cliente possa optar pelo juízo final de sua preferência), eu diria (mesmo que não estivéssemos em contexto de pandemia) que não é um bom dia pra tentar algo ousado. Aquele negócio pedindo por uma decisão final, aquela guria ou guri que parece estar a uma investida mais definitiva de se tornar seu "mozão"? Eu, se fosse você, esperaria por mais 24 horas. Que tal aproveitar a pandemia para maratonar uma série ou ouvir uma discografia inteira? Talvez aprender uma atividade nova via vídeo do youtube. Quem sabe, se juntar ao exército cada dia maior de padeiros amadores caseiros e se aventurar na confecção de um pão "escrito, roteirizado e dirigido" por você? 
Conselho de amigo: Qualquer atividade mais importante que as descritas acima? Melhor não. Deixa pra amanhã. 

Frase do dia: "Where there's trouble there's poetry". ("Onde há problemas, há poesia")

Nenhum comentário: