terça-feira, 14 de julho de 2020

Conversando com o Starman #4

Dia novo, música nova, e vamos direto ao ponto.
A música de hoje é: SEVEN YEARS IN TIBET


Contexto: Eu não vou aqui adentrar sobre a complicadíssima situação geo-política do Tibet e sua relação ainda mais tensa com a China porque eu precisaria de livros e mais livros para falar do tema com a devida justiça. Vamos apenas nos manter no superficial: Bowie teve seu primeiro contato com o budismo ao final da adolescência, tendo inclusive escrito canções que abordam a religião já no seu trabalho de estréia ("Silly boy blue")
Um dos pontos de referência para o jovem David enquanto se aprofundava em seus estudos pela religião indiana foi o livro "Seven years in tibet" de Heinrich Harrer. A obra, que deu origem a um longa-metragem com o mesmo nome (e que, por sua vez, não tem nenhuma relação direta com a canção aqui comentada) nos anos 90 narra a viagem do austríaco Heinrich para o Tibet, depois de fugir de um campo de prisioneiros na Índia e é elogiada por mostrar o olhar ocidental para a região, um dos raros registros desse território antes da invasão chinesa. 
Textos resenhando tanto o livro quanto o filme descrevem os dois como aquele típico olhar de fascínio do ocidental diante do "oriente misterioso", com tudo de bom e ruim que vem com isso. Okay, façamos justiça: os mesmos reviews elogiam Harrer por não omitir certos detalhes inconvenientes da sociedade tibetana que podem parecer menos atraentes para o público que pode vir a consumir esse tipo de literatura esperando algo no nível de "comer, rezar, amar". Mas ainda assim, vale a observação. Com os anos, a situação no Tibet só ficou mais e mais tensa.
Paralelo a isso, algumas informações a respeito do autor da obra desconhecidas na época do lançamento, vieram a tona, jogando algumas sombras sobre sua jornada (me refiro a revelação de que Harrer pode ter sido um membro do partido nazista durante a década de 30). Se isso invalida sua jornada rumo a uma suposta "iluminação" ou só mostra o poder que sua viagem teve em um processo de torna-lo um ser humano melhor, deixo que a História e os senhores julguem. 

Sobre a música: "Seven years..." berra anos 90. O começo tranquilo e a súbita mudança para um som que é praticamente uma parede de guitarras berra indie rock noventista (Pixies é o nome que mais salta a memória, além de seu "sub-produto estilístico" mais famoso, o nosso adorado grunge). Além disso, essa foi a década onde vimos o ocidente vocalizando de forma mais explícita sua voz sobre a questão Tibetana, então, acho justo declararmos a canção de hoje como uma filha perfeita de sua época. 
Faixa quatro do disco "Earthling", de 1997, esse é um dos trabalhos tardios da produção Bowieana dos quais eu mais gosto e uma das minhas portas de entrada para esse multiverso que é sua discografia. São 14 linhas de letra antes da música se entregar a repetição (mantra?) das frases
"I praise to you. Nothing ever goes away". Uma invocação em meio ao caos sonoro. Um sutra sobre a finitude das coisas e a permanência de.... algo.  Budismo techno-punk

Como vai ser o seu dia: Segue seu caminho. Construa sua história. Componha sua narrativa da forma que melhor lhe convier. Só lembra que "memento mori". Tudo morre. YOLO. 
Ou, citando Mia Matangi, talvez, TALVEZ, YALA (You always live again). Mas na dúvida, viva uma vida da qual você possa se orgulhar. Mas..... adentremos os paradoxos aqui, okay?
Mesmo com as melhores intenções, ainda é um produto comercial, como toda a arte sendo vendida (e isso não é intrinsecamente ruim, só deixando claro). Um cântico de ordem em meio ao caos de guitarra, bateria, sax, teclado e demais sons eletrônicos. O livro também, coordenava o tal olhar de fascínio com os elementos mais cotidianos, pueris e mundanos daquela sociedade, retratando o custo pessoal daquela busca por elevação espiritual numa comunidade inserida dentro de um mundo capitalista. Meu ponto aqui? Eu não sei se tenho um. E na verdade, acho que este é o ponto da música. Carnal e espiritual, físico e arcano, dialeticamente convivendo e se chocando.
Lembrei de uma sequência em "Invisíveis" do Grant Morrison, onde os personagens discutem o paradoxo do rio Ganges: segundo os mitos locais, mergulhar naquelas águas vai te trazer iluminação espiritual. Morrer enquanto está mergulhado nelas, segundo eles, vai te tirar imediatamente do ciclo de reencarnação. Mas claro, porque, afinal, não existe almoço grátis, há também o fato de que o  Ganges é bastante poluído. Então, é possível que esse processo de limpeza espiritual vá resultar em uma ou duas viroses e talvez alguns parasitas nesse veículo imperfeito que usamos para existir nesse plano de realidade. 
O personagem da canção é alguém literalmente morrendo. O horror dos momentos finais vem mas com o conforto da possível transubstanciação, da sublimação do físico. Paz e terror, de mãos dadas. 
Dicotomia. 
Então, busque a perfeição mas entenda que talvez, no caminho, um ou dois improvisos mais profanos vão se fazer necessários. A jornada até o paraíso envolve descer ao inferno. Confuso? Bom, essa é a filosofia que te questiona sobre o som de uma mão solitária batendo palma. O que você esperava?

Frase do dia:

"The stars look so special 
And the snow looks so old 
The frail form is drifting 
Beyond the yoga zone"


ah sim, um aviso: eu disse que a seção seria de segunda a sexta mas esqueci que quarta eu praticamente não entro na internet (salvo uma ou outra espiadinha em alguma rede social porque ninguém é perfeito e eu gosto de acompanhar nossa coletiva descida ao inferno em tempo real) para passar o dia vendo seriados e filmes com Stella. Então, minhas sinceras desculpas, meus Bowieanos e Bowieanas que já constroem todo seu dia a partir das pérolas de sabedoria que este moderadamente humilde urso compartilha com vocês nesta coluna bloguística, mas.... vocês que lutem. 
São 24 horas, vocês vão sobreviver.
E caso eu esteja errado....bom.... YALA, eu imagino. 
Nos vemos na quinta. 

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