Bom dia, ímpios.
Mais um dia, mais um episódio desta seção. E mais uma vez, retornamos para um álbum que já teve uma de suas faixas comentadas aqui. O disco em questão é "The man who sold the world" e a música é "SAVIOUR MACHINE"
Contexto: Cd já comentado aqui então, já sabem: "sigam o gnomo que ri"
Sobre a música: Essa talvez seja uma das representações mais cínicas e niilistas encontradas na obra artística de David Bowie, e considerando que, anos depois, iríamos entrar na cabeça do artista, mas sob o filtro do olhar do monstruoso Thin white duke, isso quer dizer alguma coisa.
A letra é uma história com começo, meio e fim e é facilmente compreensível: No alvorecer do apocalipse, a humanidade, através de seu líder (o "President Joe" da primeira linha) resolve criar um computador cujo objetivo é, em resumo, resolver todos os problemas do mundo.
E ele sucede. O problema é: e depois?
"They called it the Prayer, its answer was law
Its logic stopped war, gave them food"
O que acontece quando a máquina que foi criada para nos salvar de nós mesmos é bem sucedida?
"How they adored till it cried in its boredom
'Please don't believe in me Please disagree with me
Life is too easy
A plague seems quite feasible now
Or maybe a war
Or I may kill you all'"
O Agente Smith já havia cantado essa pedra, só pra ficarmos numa referência que todo mundo vai pegar, no primeiro "Matrix":
A humanidade se define pela sua capacidade de sentir dor. Eu li em algum lugar alguém dizendo que o motivo pelo qual todo sonho longo acaba virando um pesadelo é porque temos a tendência de enxergar as falhas naquele cenário. O efeito de "uncanny valley" leva à suspeita. A suspeita, ao medo. O medo, ao horror. E temos aí, um cenário propício para a manifestação dos nossos temores.
"Don't let me stay, don't let me stay
My logic says burn so send me away
Your minds are too green,
I despise all I've seen
You can't stake your lives on a Saviour Machine"
Só piora quando o deus ao qual entregamos nossos destinos nota esse mesmo detalhe. O quão preguiçosos ficamos sem dificuldades, sem adversidades e com tudo entregue em nossas mãos.
E esse deus se ressente. E ele planeja. E, mais uma vez, os elementos para a tragédia estão todos lá.
"I need you flying, and I'll show that dying
Is living beyond reason, sacred dimension of time
I perceive every sign,
I can steal every mind"
O final da canção é um prenúncio do que vai vir: O que acontece quando o deus ao qual nos voltamos decide que não somos dignos dele?
Se essa premissa lhes soar familiar, principalmente para a parcela dentre vocês que é fã de literatura sci-fi, é porque, de fato, a referência é óbvia: esta música foi composta 3 anos depois de Harlan Ellison publicar, na edição de Março de 67 da revista IF: Worlds of Science Fiction seu clássico conto "I have no mouth, and I must scream" ("Não tenho boca e preciso gritar).
No conto, tal qual como em "Saviour Machine", a raça humana, num mundo pós Terceira Guerra, entregou seu destino para um computador que, depois de assimilar outros sistemas de IA parecidos da China e Rússia, desenvolveu consciência e, como seria de se esperar, erradicou completamente a população da Terra, com exceção de 5 pessoas, que ele mantém vivas. O computador, que se autodenomina AM, usa os sobreviventes em sádicos jogos de tortura como bodes expiatórios, pagando pelos crimes de toda a sua espécie. Não vou entrar nos méritos da história aqui para efeitos de concisão (se quiserem bem mais detalhes, cliquem no vídeo acima que fala de forma mais aprofundada sobre o conto de Ellison e o contexto em que ele surgiu), mas depois de serem torturados física e psicologicamente diversas vezes, o grupo de personagens consegue escapar por tempo o suficiente para que 4 deles consigam morrer, única forma de "fuga" possível.
O último dos humanos é interceptado por AM e tem seu corpo alterado para uma "coisa" disforme, sem braços, pernas, boca, nariz, ouvidos e genitais, incapaz de se suicidar e com sua percepção de tempo alterada para que cada segundo de tortura pareça uma eternidade. Nessa condição, num último momento de sanidade, ele profere a frase que intitula a história.
...e todos foram felizes para sempre.
Como vai ser o seu dia: Essa idéia de "cuidado com seus heróis" não é nova de forma nenhuma. Para ficarmos em obras recentes, na ficção temos esse tema abordado em trabalhos como "O fim da infância", "Batman: the dark knight rises", "Fight Club", "Watchmen", "Superman: the red son" , entre outros.
Principalmente nesse mundo pós-me too, em que várias figuras públicas tem sido expostas como abusivas, é válido termos cuidado com quem vemos como ídolos. Não é o caso apenas de escolher de forma sábia, mas sim de se perguntar: "eu devo adorar essa pessoa incondicionalmente, apenas porque eu gosto da arte que ela produz?"
Todos temos heróis, exemplos, que usamos como bússolas morais naqueles momentos complicados da vida. Diabos, essa coluna aqui só existe porque David Bowie é minha deidade pessoal.
Mas eu não fecho os olhos para os momentos mais sinistros da história dele. O uso de drogas, as relações abusivas com suas ex-esposas, a acusação de ter relações com uma menor de idade nos anos 70, no auge da época do consumo de cocaína (o negócio foi resolvido extra-judicialmente e ficou nisso).
E você também não deveria, independente de quem são seus heróis pessoais.
Dizer "não tenha ídolos" é ridículo, porque sempre nos miramos em exemplos. É apenas humano isso de endeusarmos sujeitos que possuem qualidades que achamos admiráveis. De fato, é assim que alguns dos deuses antigos surgiram. Mas lembre-se que toda moeda tem dois lados e todo mundo tem sombras que mantém longe do olhar público.
Então, tome cuidado antes de se jogar nas mãos daquela "fada sensata". Toda sereia soa linda. Toda planta carnívora parece encantadora para sua presa, antes de revelar sua face letal.
Frase do dia: "You can't stake your lives on a saviour machine".
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