quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Conversando com o Starman #17

Mais um dia, ímpios, mais um episódio do único oráculo com 100% de garantia de NÃO funcionar e que, ainda assim, pisa em todos os demais, mesmo com uns 1000 anos de existência a menos e....
o que?

Surpresos? Sim, amigos, a seção tem tido uma recepção tão legal que decidi (não sei se em caráter definitivo ou não), ajudar a guiar as quartas feiras dos senhores. 
E, por uma gigantesca coincidência (ou não?), a música de hoje vem do mesmo cd da faixa comentada ontem. E que já tinha rendido outro texto semana passada. Universo mandando mensagem? (spoiler alert: não. Apenas uma mistura de "coincidência" com a lógica interna dos algoritmos do spotify)
Então, sem mais delongas: THE STARS (ARE OUT TONIGHT)




Sobre a música: Faixa 3 do "The Next Day", a canção, tal qual a faixa da qual falamos ontem, não esconde suas metáforas de forma sutil, já entregando seus temas nas duas primeiras linhas: 

"Stars are never sleeping
Dead ones and the living"

Mantendo os temas dos quais já falamos antes nos textos sobre "Love is Lost" e "If you can see me", mais uma vez o artista olha para o passado e reflete sobre a fama, os custos, luxos e efeitos dela. 
Estrelas, artistas, pessoas famosas, nunca dormem, porque, afinal, suas vozes estão sempre ressoando de novo e de novo, pela eternidade. Artistas são imortais por todo o período em que sua arte se mantiver no inconsciente coletivo. Por consequência, as mais brilhantes dentre estas irão ressoar pra sempre, enquanto houver alguém redescobrindo sua obra. 

"We live closer to the earth/Never to the heavens"

Estes contadores de histórias podem ser maiores que a vida, ídolos, gigantes. Mas sua pena é jamais voar alto demais, sob o risco de se distanciarem excessivamente do seu público. Citando Chili Peppers, "se você me ver subindo alto demais, me derrube. Eu não sou maior que a vida". 
O problema de tratar alguém como se fosse um deus é que há sempre o risco de que a pessoa em questão acredite nisso.
Citando o "Dig", documentário recentemente visto cobrindo a ascensão (e queda) dos Dandy Warhols e do Brian Jonestown Massacre, "o elemento comum entre todas as religiões é que não existe pecado maior do que se auto-declarar um Deus sem condições de agir como tal". Aquilo que os americanos dizem: you can talk the talk. Can you walk the walk? Da boca pra fora, todo mundo é "o melhor". Mas você consegue bancar com a sua arte?

"They watch us from behind their shades/Brigitte Jack and Kate and Brad
From behind their tinted window stretch/Gleaming like blackened sunshine"

Estrelas eternamente em movimento e protegidas por seus óculos escuros e vidros de carro cobertos por filme. E ainda assim, brilhando de dentro de suas limousines como um sol negro (não, a mórbida presciência das palavras escolhidas aqui não me escapou). 

"Waiting for the first move 
Satyrs and their child wives 
Waiting for the last move 
Soaking up our primitive world"

O trocadilho esperto entre "move" (movimento) "movement" (é como, na música, se referem a uma parte independente dela, aquela parte da composição que, sozinha, poderia funcionar como uma obra completa) e "movie" (filmes) deixa aquela alfinetada nas celebridades da música e cinema, saltitando por aí como entidades míticas ao lado das suas namoradas-troféu com décadas de idade a menos, afogando o mundo com seus novos trabalhos. 

"Their jealousy's spilling down 
The stars must stick together 
We will never be rid of these stars 
But I hope they live forever"

O paradoxo supremo: adoramos celebridades. Mas adoramos também vê-las desabando, lembradas da própria pequenez. Tem algo de doentio na nossa relação, como sociedade, com as pessoas que se destacam no campo artístico: nós as elevamos à condição de super-humanos, apenas para nos ressentirmos delas. "Por que elas e não nós?" 
Lembram-se do mórbido fascínio que as pessoas tinham na época das notícias sobre o lento processo de destruição de Amy Winehouse? Tudo visto em tempo real, transformado em piada. 
Sejamos honestos: existe um motivo pelo qual o Buzzfeed vive recomendando notícias do tipo "lembram de (insira o nome de uma celebridade aqui)? Você não vai acreditar em como ela está hoje em dia". Amor e ódio. 
Existe muita arte sendo produzida, todo dia, o tempo todo. Todo dia, uma nova voz se lançando, querendo jogar o jogo lado ao lado com os grandes. Elas são odiadas e invejadas por terem esse "algo" que a maioria das pessoas não possui. Mas o que seria da vida sem elas?
Quer seja pela arte que produzem, quer seja pela promessa de que "se deu certo para elas, pode dar certo para mim também". 

"And they know just we do/That we toss and turn at night"

"Here they are upon the stairs/Sexless and unaroused"

"They're broke and shamed or drunk or scared/But I hope they live forever"

Em entrevistas na época de "Ziggy..", Bowie afirmava que seu objetivo, com a escolha de adotar personas artísticas, era compor o astro pop de plástico perfeito. Um teste de Rorschach que pudesse alquimicamente se transformar naquilo que o público quisesse, o tempo todo. Como uma Barbie, "sem gênero e impassível", entidades que falam direto com nossas almas porque, e esse é o detalhe que procuramos ignorar no máximo de tempo possível, eles são EXATAMENTE como o resto de nós, com as mesmas aspirações e ansiedades. "Quebrados, envergonhados, bêbados e assustados", num eterno estado de limiar entre o divino e o mundano, nos conectando com algo maior, universal. Mágico, de fato. E as vezes, aparentemente ou de forma factual, inatingível. 
Dessa dicotomia vem, ao mesmo tempo nosso ódio por eles. E também, nosso amor irrestrito.

Como vai ser o seu dia: Eu sempre recomendo que vocês façam arte porque, sejamos francos, é o que nos mantém vivos. É o que nos separa de uma vida ordinária e medíocre. Mas, vamos retroceder alguns passos: nunca se esqueça que a vida normal, seu dia-a-dia em toda sua aparente insignificância tediosa, é o que vai dar combustível para sua mente criar. É dessas conexões entre o mundano que surge toda a arte. Pense em "Ulisses" de Joyce. "A day in the life" dos Beatles. Então, faça arte, se quiser. 
Mas tire seus momentos pra ser o mais comum e "pé no chão" possível, sem culpas ou ressentimento por não estar alimentando aquele gigantesco demônio chamado "produtividade" ao qual todo mundo parece se ajoelhar hoje em dia. 
Existe beleza em escrever, em cantar, em compor. Mas ninguém deveria menosprezar a beleza também presente naquele momento pra você ficar simplesmente olhando pro teto, pensando se o Goku é mais forte que o Superman. 

Frase do dia: "Nós nunca vamos nos livrar dessas estrelas. Mas espero que vivam para sempre".

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