sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Em rumo a Krakoa #2: Uncanny X-men #14 a #16

Nossa "TARDIS hipotética" vai avançar alguns meses no tempo e a primeira obra resenhada nesta seção hoje vai ser o arco em 3 partes que introduziu um dos mais memoráveis oponentes de toda a história dos mutantes: os Sentinelas. 





Se vocês leram o capítulo que introduz esta seção do blog (e eu recomendo que o façam, embora isso pareça suspeito vindo de mim), vão lembrar que eu mencionei que vários dos elementos que são a base do que o fandom veio a amar em toda a mitologia construída em torno dos discípulos de Xavier já estava no primeiro número do título. Vários, mas não todos, afinal, uma das bases da série é a máxima de que os X-Men servem para proteger uma humanidade "que os teme e odeia". 
Naquele primeiro momento, em 1965, no entanto, isso não era um fato: os heróis são adorados pelo público, quase personalidades do cinema ou música. As crianças os admiram, as pessoas correm para vê-los quando em público. O preconceito, esse elemento político, ainda não se fazia presente e esse é um dos motivos pelos quais essas 3 edições são tão importantes. Novamente: nada é gritante, já que Lee e Kirby não tinham intenção de alienar o público, retratando-o como parte do problema. Sabemos que, hoje em dia, em tempos supostamente mais "iluminados", isso costuma causar celeuma entre os fãs, então, não dá para culpar os autores por se conterem a esse respeito. Mesmo assim, o ódio aos homo superior como metáfora para o racismo e preconceito começa a ser um tema presente nos quadrinhos e, a partir daí, para se tornar um aspecto inerente ao lore mutante, era apenas uma questão de tempo. 
Voltando para a publicação: Já mais calejados depois de encontros com oponentes como a irmandade de mutantes, Blob, Unus, Namor, Ka-zar e os Vingadores e o primeiro encontro com o Juggernaut numa luta em que tiveram que suar a camisa para fazer frente ao seu poder, os protagonistas se vêem diante de um novo tipo de ameaça: jornais e TV cedem espaço para o discurso de Bolivar Trask, cientista com conexões no exército cujo discurso se baseia no ódio aos mutantes. 






Segundo ele, é uma questão de tempo até o Homo Superior tomar o lugar dos humanos, restando à humanidade apenas a servidão ou a extinção. 
Primeiramente: os tempos não mudam e ninguém aprende nada nessa vida, não?
O discurso extremista de Trask é escrito de forma caricata, cheio de hipérboles e expressões cheias de energia, "som e fúria". A típica postura dos mesmos alarmistas que falavam, na época, da ameaça "vermelha", do perigo comunista e de outros bichos-papões que estavam escondidos nas trevas, esperando para destruir as bases do "estilo de vida norte-americano". Em determinado momento, Xavier vai em rede nacional para debater com o sujeito e a história retrata o prof. como o extremo oposto do seu oponente, calmo e com argumentos baseados na lógica.
E mesmo assim: 




Fanatismo baseado em preconceito, divulgado de forma grandiloquente por uma mídia que enxerga com bons olhos esse tipo de bufão sensacionalista que, por sua vez, vai ter seu discurso recebido por um público ignorante e que vai usar qualquer migalha do tipo como combustível para seus próprios preconceitos.
Familiar?

Por mais caricato e ridículo que DEVERIA ser a persona de Trask, ele nada mais é que um Malafaia de sua época, alguém que usa tons de voz alto e medo como ferramenta de controle social. O resultado, como podemos ver no mundo de 2020, é exatamente como o visto na HQ: a criação de um exército, de um monstro que não vai ter pudores em voltar para morder a mão de seu criador quando lhe for conveniente. 
Aliás, falemos sobre os reais oponentes desse arco: curioso notar como essa figura da forma de inteligência artificial dominadora é uma presença constante na ficção. Dos andróides de Matrix, passando pelos Borgs de Star Trek e chegando aos meus favoritos, os Cybermen de Doctor Who, constantemente a arte usa a figura de robôs e construtos do tipo como vilões em suas histórias. Compreensível: a idéia remete a temas como fascismo (pensamento único e lógica de colméia, com cada indivíduo servindo à coletividade de forma fria) e aos riscos da racionalidade extrema (por mais monstruosas que seja suas ações, estas são apenas ordens que lhe foram imputadas por seus superiores. Um robô que extermina uma cidade inteira seguindo os parâmetros que lhe foram dados está apenas sendo eficiente, moralidade à parte). Os borgs buscam a total assimilação do diferente. Os cybermen idem, "deletando" tudo que ameaçar a uniformidade de sua raça. Não me lembro da origem dos oponentes da tripulação da Enterprise, mas no caso dos autômatos de Matrix e DW, em ambos os casos, os motivos de sua criação tem a ver com controle. Controle da humanidade sobre seu ambiente. Controle dos pensamentos conflitantes. Controle sobre os instáveis rumos da evolução. e, fundamentalmente, controle sobre a morte. 



Não é surpreendente que os sentinelas sejam os oponentes perfeitos, retornando sempre para oferecer novos desafios aos heróis: enquanto os mutantes giram em torno de evolução, adaptabilidade, fluidez, os Sentinelas são máquinas, estáticas, estéreis. Sim, eles mudaram muito desde sua origem, da mesma forma que os cybermen de Doctor Who de 2020 são muito diferentes dos originais de "the tenth planet", mas, dentro de suas respectivas mitologias, tais evoluções vem como respostas aos desafios ambientais. Paradoxalmente, sua evolução é uma resposta à evolução, portanto, sendo uma anti-evolução. Gatilho e resposta. Mudança vs uniformidade. 
Novamente, conceitos que vão ser BEM mais aprofundados no futuro da série, mas que são introduzidos de forma brilhante por Stan Lee e Jack Kirby nessa história. 
Eu comecei esta série de textos porque estava curioso em entender a "política por trás de X-Men" e como a saga dos gene-X evoluiu desde sua criação até os dias atuais. Não demorou nem 20 edições para o mundo real sangrar pra dentro do gibi e vice-versa. Existiram vários outros fanáticos como Trask, dentro e fora do gibi, antes e depois dele. Tal qual Victor Frankenstein, o cientista é confrontado com os horrores que criou e lhe resta, ao custo da própria vida, deter sua criação em prol de um bem maior. 




Coletivamente, no entanto, esse fantasma nos assombra porque sabemos que continuamos criando "Sentinelas", guardiões que seguem ordens cegas sem nenhum pensamento crítico e continuamos fazendo-o como forma de lidar com nossos medos da alteridade e como fruto da nossa necessidade de impor nossa vontade sobre o mundo. 
A ficção avisou, de novo e de novo. Mary Shelley já estava mandando a real na primeira metade do século dezenove. 
Pena que a gente não aprendeu muita coisa de lá pra cá. 

Outros pensamentos:  



- Eu disse que a revista tenta puxar alguns limites enquanto evita ser diretamente confrontacional e consegue em níveis e níveis. Funciona na maior parte da trama, mas a completa cooperação da polícia para com o time de mutantes é algo que soa completamente estranha vista com os olhos de hoje em dia. 
- Ainda é um gibi de aventura e preciso dizer que a edição tira o devido tempo para continuar a apresentar o seu time de protagonistas. O foco, em uma das 3 edições é em Hank McCoy e esse pequeno interlúdio foi muito bem inserido, não parecendo forçado ou nada do tipo. 
- Uma treta absolutamente insignificante mas que vale a pena citar: eu sempre fiquei incomodado como o fandom usa o termo "mutie" - ou "mutuna" em português -  de forma "carinhosa" para se referir aos gene-x. A discussão se divide em 3 grupos distintos: quem acha que tudo bem, porque é dito de forma carinhosa, quem acha que NÃO está tudo bem por motivos que explico mais adiante. E obviamente, quem acha a discussão imbecil porque, afinal, mutantes não existem. Apesar de entender o posicionamento destes últimos, acho a discussão em si interessante o suficiente pra merecer dois segundos de atenção. 


Pessoalmente, nunca tive muita dúvida, mas se ainda haviam pontos de questionamento, eles foram abaixo depois da leitura deste arco: não sei se é a primeira vez que o termo aparece num x-gibi, mas aqui ele é dito por uma turba perseguindo Ciclope depois deste ter usado seus poderes em público para evitar a morte de inocentes. "Mutie" aqui soa com o mesmo peso de "n**ger" (vocês sabem, a "n-word"). Neste aspecto, o google não ajuda muito: aparentemente, o termo mutie é utilizado pela primeira vez num conto de Robert Heinlen, mas não existem muitos registros do primeiro momento em que ele foi utilizado como o equivalente da n-word no universo Marvel. 
Mas é isso. E nem era muito sutil. "Mutie-lovers"? 

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