terça-feira, 13 de julho de 2021

"A vida depois da morte": a jornada final do Undertaker.



Cabei, agorinha mesmo, de fazer binge dos 5 episódios de "the Last Ride", documentário sobre a vida e carreira daquele que é, provavelmente, o maior "personagem" da história da pro-wrestling. E eu sei que hipérboles deste tipo são sempre algo perigoso, mas se você for pensar na história dessa indústria, que nos deu e continua dando continuamente performers maiores que a vida, todos empalidecem diante do Undertaker. Eu sei, The Rock é um dos rostos mais conhecidos do planeta. John Cena vai pelo mesmo caminho. Antes deles, Hulk Hogan tinha HQ, desenho e "certa carreira" cinematográfica (não entro em juízo de valor aqui). Mesmo assim, considerando a fama do pro-wrestling no mundo - e se existem momentos em que luta livre me soa como algo mega de nicho, em outros é assustador o quanto essa forma de contar histórias, misto de teatro e esporte, parece tocar todo tipo de pessoa, em maior ou menor nível - é indiscutível dizer que, se não conhecem o lore do Taker, as pessoas já viram a figura do homem de preto de expressão soturna e, ocasionalmente, olhos vazados o suficiente para que a mera menção faça certas partes da memória delas se ativar.

E isso não é pouco, de forma nenhuma. 

O doc. cobre desde 2017 até a boneyard match que ocorreu no Wrestlemania, ano passado, incluindo também cenas de arquivo e backstage. O projeto é maravilhoso, mostrando o homem, Mark Calaway, com o mesmo carinho que destina para o undead man. É uma celebração da história de uma vida, mais de 3 décadas dedicadas ao wrestling. E também a eulogia para um personagem que encontrou seu momento de, citando palavras do protagonista da série, "cavalgar em direção ao por do sol". 

Curiosamente, lembrei por diversas vezes durante os episódios, de uma entrevista com outro artista que dedicou quase toda sua existência ao personagem que o consagrou e à forma de arte que amava tanto, o palhaço Carequinha. Eu não saberia nem como começar a descrever aqui, para quem não conhece, a história de vida dele. Vou me restringir a dizer que era alguém que respirava a vida circense em um nível que transcendia seu público mais próximo, atingindo todo mundo. Eu nunca vi o carequinha no seu ambiente natural, o circo. Eu vi algumas entrevistas e participações na TV. E mesmo assim, quando você ouvia o homem falar, você conseguia absorver a gravitas e a profunda dedicação que ele tinha pela sua arte. E eu lembrei do Carequinha durante o binge watching do documentário do Taker por causa de uma declaração que ele deu e da qual eu jamais me esqueci. Com a serenidade típica de um buda, ele dizia que seu objetivo de vida, isso em um momento em que ele era entrevistado já em idade avançada e sem planos de se aposentar, era continuar entretendo as pessoas e, se possível, realizar o seu sonho de morrer na arena do circo, durante uma apresentação.

Infelizmente ele não conseguiu realizar seu sonho, morrendo em casa, em 2015. Mas eu sempre gosto de pensar que apesar disso, ele conseguiu viver da arte que ele amava até o fim dos seus dias. 

Pode parecer uma conexão estranha, um pro-wrestler americano e um palhaço brasileiro, mas quando você se lembra do elemento do kayfabe na luta livre, as semelhanças ficam mais claras. Como toda mídia, o pro-wrestling também tem suas singularidades que o separa da literatura, do cinema e de outras formas de contar histórias. Um desses elementos identificadores é exatamente o kayfabe. Tirando a semelhança física, você não espera encontrar elementos em comum entre Keanu Reeves e Neo. Ninguém espera que Tyler Durden e Brad Pitt acreditem nas mesmas coisas. Mas na luta livre, em maior ou menor tom dependendo da época em que você vive, esses limites ficam mais turvos. A WWF/WWE dava, além do salário, uma quantia de dinheiro extra para Ted Dibiase, cujo personagem nos ringues era o Million dollar man, um mega milionário, gastar pagando jantares e bebidas para estranhos, como forma de manter o personagem mesmo em seus momentos particulares. Muita gente foi aprender apenas anos depois que Undertaker e Kane não são, de fato irmãos. 

"Still real to me". Pode parecer algo menor, mas eu sempre gosto de lembrar uma frase do Pablo Villaça, no seu comentário sobre "The Wrestler", onde ele dizia que o nível de dedicação dos lutadores é algo invejável e incomparável na maioria das artes e que mesmo um ator como Laurence Olivier, que respirava a arte que o consagrou, não precisava LITERALMENTE se auto-mutilar com uma gilete para aumentar o impacto dramático. Novamente, kayfabe.

Retornando para o doc., é assustador ver a profunda entrega de Calaway para o personagem. Quem consome luta livre sabe que, ainda que isso tenha se diluído um pouco através dos tempos, o kayfabe ainda é uma força para a comunidade de fãs. Aquela linha separando realidade e ficção, o que é verdade e o que não é. O que eu quero saber e o que eu vou conscientemente ignorar para permitir que a magia continue rolando na minha frente. Realidade líquida, me apropriando mal e porcamente do conceito do Bauman.

Se vestindo de preto pq eram as cores do personagem, monossilábico, extremamente econômico quando o assunto era a vida pessoal. Mesmo em uma indústria marcada por pessoas que viveram vidas inteiras sob o véu do kayfabe, o Undertaker ainda é um caso extremamente notável. O que explica, junto com, obviamente, as habilidades in-ring e o carisma insano, a longevidade do personagem. 

Excelente documentário, mais um de uma safra de documentários maravilhosos que vi recentemente. Outros casos são "O.J.: made in america", "The Last Shot" e "the King". Respectivamente, sobre O.J. Simpson, a carreira de Michael Jordan e dos Chicago Bulls dos anos 90 e, finalmente, sobre os paralelos entre a vida de Elvis Presley e o aspecto mercurial da história recente dos EUA. 

Podem parecer exemplos díspares com apenas alguns elementos conectivos entre eles, mas um olhar mais aprofundado consegue traçar paralelos entre eles e o já mencionado palhaço Carequinha. São todas histórias reais, sobre pessoas que orbitavam em um 'uncanny valley" que borrava as linhas entre ficção e realidade, personagem e pessoa real, de carne e osso. Todas histórias reais, mas com elementos de tal epicidade que são, por si só, narrações quase fantásticas. E sobre pessoas que, com diferentes níveis de sucesso, tentavam controlar a narrativa a ponto de poderem escrever um capítulo final tão digno quanto o restante da jornada. No caso do supra-citado palhaço e do lutador que protagoniza "the Last Ride" e que motivou a existência desse texto, com direito a final feliz. O que vem depois do capítulo final de suas personas famosas, não é mais da nossa conta. 

A história e as histórias seguem. The show must go on. Rei morto, rei posto. O finado Curtis Hanson, no documentário sobre a trilha sonora de seu filme, 'Wonder boys" menciona que nós fomos sortudos demais por conseguir viver em um mundo que tinha as músicas de Bob Dylan nele. Da mesma forma, que bom que pudemos ter o Undertaker por 3 décadas em nossa vida. Que seu intérprete possa aproveitar o pós-carreira tranquilo com a família agora em sua aposentadoria. 


....e não, eu não vou fugir do clichê. Vocês depositam fé demais em mim...


...aham... e que sua criação lendária possa finalmente rumar de volta para as sombras e....you know...


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