terça-feira, 22 de março de 2016

This is your cosmic wake up call - Evangelion, Flex Mentallo e o marco zero evolutivo: parte 03

SO......recapitulando: Flex, enquanto seguia as pistas do misterioso personagem conhecido como "the Fact"/"Faculty X" encontrou um transportador que pode lhe dar acesso até o qg da legião das legiões. Enquanto isso, seu aliado na polícia, o Tenente Harry, ainda se recuperando do baque emocional da morte de sua mulher, decide ajudar o protagonista e, pra isso, recruta o Hoax, um vilão ilusionista pra sua missão. E Wally finalmente se recorda dos eventos ocorridos enquanto criança .
Já em Evangelion....bom, todo mundo zoado. Asuka em coma, Rei em depressão, Shinji e Misato idem, Ritsuko aprisionada e Gendo recebendo um ultimato da SEELE e escalando as coisas ao nível das hostilidades armadas. (mais detalhes nas partes 01 e 02 deste artigo)

"who's gonna save us?" 

#4 A RENASCENÇA: 


A verdade. The faculty X (um dos nomes pelos quais o "The Fact" é referido na trama). THE FACT IS: todos estes personagens em ambas as séries, são peças a serviço de forças muito maiores do que eles mesmos, e, em ambos os casos, só percebem a verdade quando não há mais como evitar os eventos acontecendo. Wally e Shinji são ambos vítimas da verdade. E que verdade é essa?

EVANGELION: Pelo universo, em diversos planetas, são espalhadas sementes (por quem? nem imagino) que vão determinar o rumo da evolução da vida inteligente ali. Nos mundos em que a semente que cai é a de Adão, surgirão os anjos. Nos mundos que recebem a semente de Lilith, surgem os humanos. Na Terra, no entanto, as duas sementes caem, o que é a raiz do conflito mostrado na série, já que as duas espécies são incompatíveis. Em 2000, cientes da existência dos anjos, um grupo de cientistas, entre os quais o pai da  Misato faz parte, tenta manipular o corpo de uma destas criaturas. O objetivo é conseguir desenvolver um embrião a partir dele, peça chave no plano conhecido como o "projeto da instrumentalidade humana", que consiste em acelerar o processo evolutivo humano. Estagnados, a espécie se encontra num beco sem saída evolutivo e, a partir deste projeto, todas as almas humanas serão combinadas em uma unica mente coletiva, libertas de seus corpos físicos, eliminando assim a solidão. Este é o motivo dos ataques dos anjos. Gendou, ciente disto, continuou com o projeto, mas visando unir o embrião de Adão ao próprio corpo, e depois se unir ao clone de Lilith, (que descobrirmos ser a Rei) e poder ser o "foco" principal do salto evolutivo. No entanto, Gendou não esperava que Rei fosse desenvolver um forte carinho por Shinji. Além disso, a personagem que mais teve problemas a respeito da própria identidade acaba, exatamente por meio dos laços desenvolvidos com o piloto, achando sua própria personalidade e tomando uma decisão consequente disto: não Gendou, mas Shinji vai ser o foco da evolução. A partir da mente dele serão reunidas as mentes de todos os humanos que existem e já existiram, e ele irá guiar os rumos do processo. Cabe a Shinj decidir o futuro da humanidade.....

FLEX MENTALLO: Lembram-se que eu disse que haviam 3 layers na historia e que eu falaria desta terceira camada quando chegasse a hora? bem, a hora chegou. 
Num mundo de super seres, a ameaça definitiva ataca: uma forma de energia conhecida como o Absoluto devora o planeta e mesmo a Legião das Legiões, principal grupod e super heróis desse universo, não é capaz de deter o adversário. Só resta a eles apelar para um ultimo plano: Com a ajuda de Nanoman e Minimiss, dois personagens capazes de se encolherem a tamanhos subatômicos, se esconderem num "mundo falso" até terem condições de voltar. O mundo, no caso, é o nosso (ou o de Wally). Neste mundo, tais super seres existiriam numa forma ficcional (as HQs) onde viveriam numa dimensão distinta, até que a humanidade estivesse pronta para traze-los de volta. Flex e o "The Fact" nada mais são do que resíduos destes super seres, tentando iniciar o processo que vai liberta-los do mundo 2D e Wally é o "vetor" a partir do qual os heróis serão libertados. A decisão de Wally, portanto, não é apenas entre vida e morte, mas também, qual mundo vai sobreviver à queda das barreiras, o mundo "falso" ou o mundo dos super humanos. Cabe a Wally decidir o futuro da humanidade...... 



Como se fossem imagens sobrepostas num gigantesco espelho cósmico (nota mental: isso dá um excelente nome de disco) Shinji e Wally são o marco zero da evolução humana. Cabe a eles, e a eles apenas decidirem, a partir de uma questão de perspectiva, qual futuro nos espera: evolução ou oblívio. A decisão deles é extremamente solitária, mas o fardo não é carregado sozinho. Ao lado deles, o tempo todo, estão os super seres, para levanta-los no momento da queda. Em Flex Mentallo não há muito mistério: o papel de guia pra ambos cabe ao próprio Flex e.....ao super ser conhecido como The Fact. Quem ele é e sua importância, eu menciono mais a frente, mas os dois vão levar Wally pela mão rumo ao momento de sua decisão final sobre qual plano de realidade vai sobrar no final do processo "apocalíptico" pelo qual Wally está passando.




"The thing people lost, in other words, the complimentation of the mind is on the run. However, it's too short a time to describe the entire process. Therefore, we discuss on the complimetation of the mind of one single boy named Ikari Shinji."

Quem vai desempenhar esse papel em Evangelion? Num primeiro momento eu acreditei que Kaworu unicamente, mesmo considerando a natureza do personagem, iria ser o estopim das mudanças em Shinji, mas observando com mais cuidado, dá pra perceber que cada um dos personagens é o "Flex Mentallo" de Shinji. Kaworu e Rei vão desempenhar o papel de forma mais clara, mas os demais personagens vão ter sua importância: Misato, ao incentivar o garoto a se tornar mais sociável e mesmo Asuka, que se nega a assumir o papel "maternal" que as demais personagens femininas desempenham na vida do garoto. A tensão entre ela e Shinji é, paradoxalmente, causa de parte do sofrimento do personagem, mas, também elemento gerador de ação propriamente dita. É a base dos chutes e pontapés, literais ou não, da Asuka, que o personagem passa a sair da própria concha. Ela vai lhe dizer verdades inconvenientes, verdades as quais o próprio personagem se recusa a enxergar, mas que, uma vez aceitas, vão traze-lo à condição de poder tomar sua decisão final, diante do projeto da instrumentalidade. 




Então, retomando: a primeira "fase" de ambas as histórias foi a da descoberta, cheia de fascínio e encantamento.
A segunda, a fase da "identidade", da fluidez, de redefinir sua personalidade e a percepção de si mesmo dentro desse novo contexto.
A terceira, a do desespero, da mudança. A nova identidade é atacada em suas bases mais intrínsecas e os protagonistas são deixados figurativamente nus e alquebrados, não tendo nada além da essência de si mesmos como fonte de um potencial resgate. É hora de reinvenção ou morte. 



Chegamos ao clímax da história, a fase da "ação", do abandono da letargia, a fase da "verdade". the FACT is.....
Diante do abismo, os dois protagonistas precisam dar seu salto de fé, tão encerrados em seus demônios internos que são incapazes de ver super humanos de capa e cueca em cima das calças ou humanoides gigantescos, meio homem meio maquinas, ali, prontos para amparar-lhes a queda. Aqui, podemos ver qual o ponto defendido por ambos os autores: os super humanos, sejam eles super heróis ou robôs gigantes, da ficção, tem como objetivo nos inspirar, provocar mudanças reais em nosso mundo, como aliás, toda boa arte. 



Hora das cartas na mesa: Wally, tal qual Shinji, tal qual Donnie Darko, tal qual o Bastion de "A história sem fim" é o ponto focal de uma mudança cósmica. Por que eles? 
Três respostas possíveis: Primeiro, pq Shinji é o piloto do Eva 01, Eva construído para ser o foco da Instrumentalidade. Segundo, porque ele consegue o afeto de Rei. E, por ultimo, porque ele é o primeiro Eva a evoluir a ponto de entrar em berserk e devorar o núcleo de um anjo, se tornando uma entidade autônoma. E no caso de Wally, porque ele é um humano, a beira da morte e passando por uma viagem de drogas, o que torna sua consciência extremamente fluida, em transição entre mundos, sejam eles a vida e a morte ou a lucidez e a psicodelía. Também há o fato de que ele é um fã de quadrinhos e ele próprio um quadrinista, portanto, alguém profundamente conectado com o mundo que serve de esconderijo para a Legião das legiões.

Essa seria uma resposta um pouco mais elaborada. Uma resposta um pouco mais simples seria apenas: porque eles são os protagonistas e os autores queriam assim.

Mas, considerando o tom das histórias, há a terceira possibilidade: Porque, de certa forma, todos somos um

Todos estamos conectados, num nível mais básico, não apenas como espécie, mas com todo o mundo e, desculpem se soar excessivamente hippie, com todo o universo. Mude as características básicas de um átomo e você verá mudanças em todos os demais instantaneamente. Teoria dos campos morfogenéticos, a sincronicidade de Jung, o próprio conceito do "religare" de onde vem a palavra religião, todos conceitos que giram em torno da mesma idéia: acima das fronteiras que nós mesmos criamos, sejam elas pessoais (o tal do AT-FIELD dos anjos nada mais é do que uma representação literal da nossa própria bolha pessoal, a fronteira que cada um de nós cria, onde definimos nossos limites e onde guardamos aquilo que é valioso pra nós, em termos de identidade), políticas ou geográficas, está o fato de que somos todos uma mesma espécie. 
A instrumentalidade/escathon não precisava ocorrer com a humanidade como um todo (apesar de ser isso que ocorre): bastava mudar UM individuo e ver toda a espécie se transformando. "Salve uma pessoa e vc salvou o mundo". Mesmo nossas mentes, como já disse acima, não são um território tão solitário: afinal, eu sou o eu que existem em mim e o eu que existe na visão dos outros. 



O próprio conceito de identidade, que nos torna únicos e nos define, nos separa. Ao invés de nos concentrarmos no que nos conecta, no entanto, a humanidade vem, nos seus 10.000 anos de existência, se concentrando no que nos divide. a alteridade passa a ser o inimigo. como dedos de uma mesma mão lutando entre si. 
Não é pra menos que o titulo da quarta edição de Flex mentallo é "We are all UFOS". Como já dito, Morrison frequentemente usa a imagem dos alienígenas como simbolo para designar o outro, o diferente. Mas mesmo isso é uma questão de perspectiva. Em Evangelion, lembremos, o 18º anjo é a própria humanidade. Os 17 anjos anteriores, em maior ou menor grau, eram portanto, um reflexo da própria humanidade. Percebam como o primeiro anjo a aparecer na série tem formas levemente humanoides, enquanto os demais são mais abstratas, até os anjos que violam e quase matam Asuka e Rei. Um, estudando uma mente humana (lembrando, mais uma vez, o estupro mental da Asuka) e o outro um corpo humano (o que tenta dissecar Ayanami). A partir desse estudo, eles vão se tornando humanos, culminando na forma do penúltimo anjo, Tabris (ou Kaworu) Mais uma vez, dedos de uma mão lutando por individualidade. Os inimigos não são outros senão nós mesmos.


O feto-clone de Adão, o primeiro anjo, peça chave do processo da instrumentalidade
E aí, eu remeto novamente a Grant Morrison, mas agora aquela vista por muitos como sua obra máxima: The Invisibles. Este macro-conceito da guerra ilusória com um inimigo que nada mais é do que um reflexo distorcido de nós mesmos também está lá, e vários momentos da série indicam isso, mas nenhum com a clareza da passagem registrada a seguir: 



Maneiro, né? Mais uma vez, tudo tem a ver com evolução. O novo, o desconhecido, visa agregar novos conhecimentos, promover evolução. Os conflitos, os desafios, os horrores enfrentados no meio do caminho, são as contrações do parto. O momento do corte do cordão umbilical (quase literalmente em Evangelion. Lembrem-se que os Evas entram em Berserk, desenvolvendo poder total apenas quando o cabo de força era cortado e eles tinham que se virar com as baterias internas. Simbolismo sem muita sutileza aqui, até porque nem precisava). O terror que antecede o nascimento. Os anjos em Evangelion e os desafios passados por Flex nada mais são do que uma ilusão de inimigo, visando preparar o herói e Wally para o fim de um paradigma de realidade e o começo de outro.
Na quarta edição, descobrimos o articulador de todos os horrores que Flex vem enfrentando, o super vilão auto-denominado Man in the moon.  

E quem é o vilão em questão? Seu poder vem do fato de reduzir a vida de Flex ao argumento mais básico possível.



Todos os diálogos do personagem apresentam a mesma estrutura básica, se referindo aos desafios fantásticos os quais Flex enfrenta como se fossem apenas idéias ultrapassadas, tolices criadas para entretê-lo. Os feitos extraordinários do super herói são despidos de sua aura mágica, sendo diminuídos ao nível mais terreno possível.




No entanto, with a little help of some friends...


....Flex consegue derrubar o vilão que se revela ninguém menos que uma versão adolescente do próprio Wally.
dedos de uma mesma mão, lembram-se?



Com relação a simbologia da coisa, um pequeno lembrete sobre o sentido simbólico do arcano lunar no tarot:



Longa, longa viagem através da escuridão” – A Lua, XVIII, Arcano Maior, é um arcano misterioso e noturno. Remete-nos a uma jornada nesse período obscuro, pela qual vivemos e lidamos com a escuridão e lado sombrio da vida e de nós mesmos.

..............as coisas se conectam, né? Lembram-se que eu disse que os dois principais personagens a adotarem o papel de Flex Mentallo do Shinji eram Kaworu e a Rei. E agora vejamos um elemento que por mais de uma vez é associado a garota piloto do eva-00






.........magicka. ^^

"Tudo é simbolismo."

Lembram-se da história do peixe do tenente Harry que eu citei lá em cima? Durante o confronto contra o Man in the moon, Flex possui em mãos um cartão do The Fact, que descobrimos que foi desconectado do continuum espaço temporal depois de um combate contra o próprio vilão, e esse cartão diz "the fish got changed more times than the water". Man in the moon, o proprio Wally, diz que seu papel é trazer "realismo" pra vida dos seus inimigos, os super heróis. Nada mais é do que uma personificação dos próprios leitores, publico alvo de ambas as séries, cobrando "realismo", "verossimilhança" e "pés no chão" em obras que deveriam ser o escapismo em essência. Presos, eles próprios, à própria memória afetiva de quando tiveram contato com tais histórias pela primeira vez (e fazendo o paralelo aqui, pro caso de não ter ficado claro, GENDOU IKARI é, segundo a interpretação do Lancaster que citei acima, o Man in the Moon, do Shinji, ele próprio preso num mundo de fantasia e numa eterna adolescência, tentando, com sua boneca sem vida - na opinião dele, vejam bem, que desumanizou Rei de qualquer elemento de personalidade - recriar esse momento e se congelar dentro dele pela eternidade). Ironicamente, portanto, enquanto Wally tem que domar seus medos adolescentes que lhe prenderam numa gaiola de letargia e pessimismo, Shinji tem, diante de si, um vislumbre do adulto que pode vir a se tornar caso faça as escolhas erradas. 



Quadrinhos (como boa parte da industria de entretenimento) não precisa ser limitar ao papel do escapismo fútil. O lado meramente divertido da coisa pode vir aliado á algo que se permita mirar nas estrelas, no fantástico, de forma a servir de referencia para aquilo de mais magnânimo que existe na humanidade e, mais importante, que pode vir a existir. Se a Lua simboliza um salto no escuro, os heróis simbolizam uma estrela guia, uma bússola. E se isso estiver soando deveras religioso, não é a toa: mais de uma vez Grant Morrison afirmou em entrevista que os super heróis simbolizam, hoje, o que os deuses representaram no passado da humanidade.




Heresia?

Não necessariamente. Pensem comigo: pra que serve um deus?

Pra oferecer conforto a humanidade? Exatamente como um super herói.

Pra explicar os fenômenos naturais aos quais a humanidade, em algum momento, não teve condições de entender?

"HAH, se ferrou, Urso escroto, heróis não servem pra isso"


........well....... dizendo isso de outra forma, deuses, portanto, servem para explicar o que existe de fantástico na relação do homem com o seu contexto, físico ou metafísico, certo? pra uma aldeã escandinava do séc V, você ouvia um estrondo vindo dos céus seguido de um relâmpago, e precisava de uma resposta. Oras, era Thor com sua carruagem, liderada por Toothgnasher e Toothgrinder, enfrentando gigantes de gelo.
Os raios eram os disparos de Mjolnir.




Havia a entressafra entre as colheitas em que, por metade do ano, as plantas cresciam e na outra metade, não. Como se explicava isso? A deusa da fertilidade foi sequestrada por deuses malignos e seis meses passaram até seu resgate.




Portanto, esses deuses, estes mitos, estas historias, serviam de fronteira entre o ordinário e o extraordinário.

Da mesma forma que os super herois. Permitam-me citar Elijah Price, co-protagonista do melhor filme de super herois feito até hoje (chupa Marvel E Dc)

ELIJAH
 There are probably only four or five individuals in the world who can claim more knowledge of comics than myself. I've spent a third of my life in a hospital bed with nothing else to do but read. I have studied the form intimately. I have seen the patterns in them... The references to social and cultural events and the atmosphere that surrounded them. I've come to believe that comics are our last link to the ancient way of passing on history. The Egyptians drew pictures on walls about battles, and events. Countries all around the world still pass on knowledge through pictorial forms. I believe that comics, just at their core now... have a truth. They are depicting what someone, somewhere felt or experienced. Then of course that core got chewed up in the commercial machine and gets jazzed up, made titillating - cartooned for the sale rack.

"Affff, mó viagem, nada a ver, mó herege você, Urso, mesmo assim, nada a ver, não tem nada a ver entre os deuses e os super herois"

Ah é?











Mais alguma pergunta??

Continuemos, portanto......

- Os heróis, assim como os deuses, são histórias, contadas por alguém com o objetivo de oferecer não apenas diversão, mas também, por meio alegorias (tais quais aquelas do filho do carpinteiro crucificado alguns milênios atrás) oferecer lições e conselhos para o aperfeiçoamento do publico alvo como indivíduos. Não é pra menos que os criadores foram atrás de símbolos e referências dos arcanos mais antigos que existem, agora, readaptados para funcionarem dentro de um contexto comercial.
- A arte reflete, numa relação simbiótica, seu contexto e o retroalimenta com imagens e mensagens que podem (ou não) reforçar os valores absorvidos num primeiro momento.
- Hqs são arte

Qual a profilaxia sugerida por Grant Morrison e Hideaki Anno? A resposta não é simples, mas uma das possíveis soluções vem exatamente do papel social da arte em mostrar um mundo melhor. Como diria o Angel, protagonista da série de mesmo nome

Nothing in the world is the way it ought to be. It's harsh, and cruel. But that's why there's us - champions. Doesn't matter where we come from, what we've done or suffered, or even if we make a difference. We live as though the world is as it should be, to show it what it can be.

A postura de Flex, seu encantamento com as coisas está lá pra mostrar uma perspectiva de mundo possível, a do já citado "sense of wonder", tão esquecido pela indústria de super herois.
Quando o principal editor da Dc, Dan Didio, vem a publico dizer que seus heróis não podem constituir família porque "eles não deveriam ser felizes, considerando a vida que adotaram", você percebe o quanto a industria (a DC em especial) está desconectada completamente do seu papel. Sim, temos que ser práticos, como empresa eles querem lucro, mas simplesmente entregar o que o publico aparentemente quer nunca foi nada além de nivelar por baixo. A boa arte é provocativa, instigante, no sentido de nos desafiar a destruirmos parte de nossa auto imagem de forma a conseguir algo melhor.
Ao criticar o sistema de coisas e as noções de sucesso e felicidade em voga até então, os japoneses deram um passo fundamental, que é o de fomentar a discussão e mostrar que algo está errado, mas, filhos do pós-modernismo que são (como todos nós, aliás), a população do país parece ter parado no meio do processo. Algo começa a ser destruído, mas nada está sendo erguido no local, aparentemente satisfeitos em ficar parados olhando os destroços. No resto do mundo a questão é menos alarmante em termos políticos mas igualmente fascinante - de um jeito macabro - da perspectiva comportamental. Encerrados em ficção, nos desconectamos do mundo, o futuro é alarmante, tudo que resta é o oblívio e nada vai funcionar no final.....

Ou não? Porque ambos os autores apontam a saída desse labirinto fractal: toda mudança começa com uma idéia. Citando Morrison, "O Superman e a bomba atômica: ambos em algum momento foram meras idéias. Tornamos uma delas real. Por que não fazer o mesmo com a outra?"
Isso vai soar meio brega, mas vá lá: começa em termos individuais. Cada um de nós que se tornar vetor da mudança vai, lembrando do "as above so below" começar uma reação em cadeia. 



“As above, so below, as within, so without, as the universe, so the soul…” Hermes Trismegistus

Não sozinhos. Precisamos de nossos guias, nossos Cristos, nossos Budas, nossos Ganeshas, nossos Neos, nossos Flex  para nos guiar em meio as trevas.
Shinji se encontra perdido no meio do projeto da instrumentalidade quando é confortado por Rei e Kaworu. Observem esse diálogo, em que Shinji ainda está indeciso entre se manter na mente coletiva ou voltar a ser um sujeito com corpo e mente individual:

Kaworu: Is it all right for the AT field to cause you and others pain again?
Shinji: I don't mind. But what are the two of you within my heart?
Rei: The hope that people will one day be able to understand one another.
Kaworu: The words 'I love you.'
The End Of Evangelion


Voltamos pra Flex Mentallo: Wally em algum momento no começo da história pode ter tentado suicídio. a palavra chave aqui é "pode", já que o herói, tal qual Shinji, tem o poder de decidir qual o próprio futuro. 



O papel da perspectiva vem sendo jogado na nossa cara desde a primeira edição, mas incapazes de ver o todo, não entendíamos o que estava ocorrendo: lembram-se da memória recorrente das crianças no circulo? Wally incapaz de lembrar-se quem era o homem segurando-o pela mão permitiu que a amargura da vida adulta (que consideramos indissociável do processo de crescer, o que mostra o quanto a sociedade está doente) transformasse uma memória magica e extraordinária em algo sinistro. Aquilo nada mais era que Lorde Limbo, o líder da Legião das legiões, revelando a verdade para o garoto, preparando-o para seu papel como aquele que trará essa dimensão de maravilhas de volta.



Da mesma forma, é através de uma mudança de perspectiva e de visão de mundo que Wally vai decidir qual realidade sobreviverá: Aquela onde ele tomou paracetamol, portanto, onde ele morre ou aquela em que ele consumiu um punhado de mms, portanto ele vive. Fria realidade cínica ou algo.... melhor?
Na história dentro da história, o "Man in the moon" continua, mesmo derrotado, tentando mostrar a inverossimilhança do futuro que Flex, tenente Harry e o Hoax tentam trazer de volta, ao que o Hoax brilhantemente diz

Percebam como Flex olha pro leitor enquanto  oferece sua mão para o vilão derrotado. Porque ele está acima da ironia e do cinismo que permeiam toda a cultura pop, mesmo em obras infantis, já indocrinando as crianças para essa postura cool e blasé que se espera delas quando adultas.




O que Anno e Morrison estão mostrando é que existe uma alternativa a isso: pura e simplesmente o amor. Não me refiro ao amor romântico, mas ao conceito de amor como oposto do cinismo. E também suas variações, como a auto-estima, a empatia e o puro sense of wonder, ele mesmo uma espécie de amor, um constante processo de re-encantamento com as coisas. 
Wally decide viver e logo em seguida, já dotado de uma nova perspectiva, ele encontra a palavra cruzada que Flex havia recebido na primeira edição. Ela continua com a ultima palavra incompleta. SHA A . E agora Wally é capaz de preencher a lacuna: SHAMAN.



The word shaman, used internationally, has its origin in manchú-tangu and has reached the ethnologic vocabulary through Russian. The word originated from saman (xaman), derived from the verb scha-, "to know", so shaman means someone who knows, is wise, a sage

O Shaman também é um homem entre dois mundos, o físico e o espiritual e também, um curandeiro, ajudando a remediar feridas físicas e espirituais.

Tal qual um deus ou um super herói.

E o elemento de conexão dele com seu contexto? Amor, puro e simples.

Anno pode criticar a letargia da sociedade e o papel da arte e, em maior escala, dos mitos e histórias humanos e da forma como nós humanos, como sociedade, usamos tais historias para explorar camadas e dimensões extraordinárias do nosso mundo. Mas nesse ponto ele abraça o extraordinário da mesma forma que Morrison: enquanto Asuka simboliza a tensão dialética que provoca a fagulha da mudança e do aperfeiçoamento, Rei e Kaworu simbolizam, respectivamente, a esperança e o amor. São os shamans pessoais de Shinji, da mesma forma que Flex e a legião das legiões são os shamans de Wally (como já disse, as aparições do The Fact pela história, que aliás, é o tal samaritano com quem Wally conversa durante toda a trama, nada mais são do que o personagem, destacado pelo "Man in the moon" do espaço tempo, agindo para garantir o retorno dos heróis, o que encontra um paralelo curioso com o papel de Kaworu. 


"Bata palmas se vc acredita em super heróis!!!"



Quando à época do lançamento do filme de Evangelion no cinema, o publico ganhava um livrinho, na entrada, explicando os detalhes da trama e é fascinante notar que ele se referia a uma cena especifica do longa, em que vemos os 4 protagonistas, Shinji, Asuka, Rei e Kaworu tocando o Kanon de Pachelbel, obra que gira em torno da mesma musica sendo tocada em ciclos diferentes mas com algumas diferenças - sutil, né? 


Neste livro, o papel de Kaworu era descrito como, numa tradução mega coxa "aquele capaz de alterar as notas, por estar destacado". O garoto, por ser um anjo, é capaz de adotar uma visão geral das coisas, ao contrário de todos os demais, perdidos em seu próprio inferno pessoal)

Cito aqui Patrick Meaney, dono de um dos meus blogs favoritos sobre cultura pop, o thougts on stuff e onde ele fez uma série de posts melhores do que qualquer coisa que eu posso vir a escrever um dia, sobre Flex Mentallo e onde, especificamente sobre esse ponto, ele cita:

The word Shaman has a bunch of layers. One is the obvious play on Shazam, subverting out expectations by giving us a different magic word. Sha-Man could also be a superhero name. The reading I like most is the idea that superheroes are today’s religious figures, they’re the ones guiding us forward, so a magic superhero would be a Shaman. Shaman are all about exploring consciousness, trying to heal wounds and help people. That’s what the best superheroes do, they’re explorers, charting humanity’s path forward. 




Shinji: Yet, don't you hate me? 
Asuka: You idiot! It's you that is always trying to think so. 
Shinji: Yet, I hate myself.
Rei: Those who hate oneselves cannot love or trust others. 
Shinji: I am wicked, coward, weak and .. 
Misato: If you know yourself, you can be kind to others. 
Shinji: I hate myself. But, I might be able to love myself. I might be allowed to stay here. Yes. I am nothing but I. I am I. I wish to be I. I wish to stay here as do I. I can stay here as do I!

O efeito é automático em ambos os lados do espelho: Shinji pode temer o futuro e abraçar a mudança com hesitação, mas ainda assim, ele o faz.
O black mentallium, rocha que funciona como kryptonita para Flex, que o "Man in the moon" usava como arma reaparece na historia momentos depois como um pedaço de carvão, e, mais a seguir, uma pedra de diamante.
O Tenente Harry se lembra da história do peixe. Sim, ele poderia enxergar isso como uma mentira que ele contava pra sua esposa doente....ou algo magico, um ato de amor, capaz de tornar um peixinho de aquario imortal. 
Wally continua vivo. E se tornou algo muito maior.




O cinismo já teve um papel social importante como forma de resistência social contra o amor bicho grilo acrítico dos hippies, mas hoje, HOJE, ele já foi completamente assimilado pelo sistema ao qual tenta se opor. Dessa forma, a coisa mais punk que qualquer um pode fazer, é amar ao próximo da forma mais rasgada possível.
Citando um dos meus bloggers e artistas favoritos desde sempre, Alexandre Mandarino, do seu blog "Hypervoid": 

A única inteligência e rebeldia possíveis no cenário atual (e considero aqui a palavra "cenário" em seu sentido mais amplo, aplicável a qualquer aspecto da vida atual) é o amor. E a arte. O resto já foi feito, dito - até demais.
Os anos 70 precisavam de John Lydon, os 80 precisavam de John Constantine, os 90 precisavam de Kurt Cobain. Os 2000 não precisam de cínicos. O cinismo é levado ao pé da letra agora, a ironia não é mais Entendida e foi assimilada como comportamento desejável. O que precisamos agora é de Amélie Poulin.
Boa vontade, compreensão e amor esfregadas na cara do "sistema".

"We can be heroes", já dizia Bowie. (eu digo, TODOS OS CAMINHOS LEVAM A DAVID BOWIE. Seria Ziggy um Shaman pra nos guiar a um mundo melhor? bom..... eu me tornei uma pessoa melhor do que eu era depois que passei a ser fã - eufemismo, sou mais tipo uma bitch mesmo - do cara, então, apenas talvez........)

Os desafios enfrentados, as dificuldades, são como uma vacina, em que vc inocula os agentes patogênicos no corpo do doente, para que o corpo se fortaleça e crie defesas contra os mesmos. Os anjos de Evangelion, o "Man in the moon" e a própria depressão de Wally, são apenas aquilo que os fortalecerá e os tornará prontos para a próxima realidade. A própria idéia da instrumentalidade, da junção de todas as mentes humanas em uma só como solução dos problemas humanos é falaciosa pq toma o conceito de alteridade e individualidade como um problema. Sim, humanos são escrotos uns com os outros, mas é da relação humana que todo a nossa produção cientifica surgiu. Se existem guerras e problemas surgidos a partir de egoísmo, obscurantismo e bairrismos de toda sorte, também há empatia, caridade e gentileza. Sermos entidades sencientes individuais é, sim, a causa de todos os nosso problemas enquanto espécie, mas também é, paradoxalmente, aquilo que nos torna espetaculares.E, em maior escala, a solução berrada a plenos pulmões por ambos os autores para suas respectivas indústrias é: parem de pensar nos quadrinhos/animes meramente como veículos pra fetiche. E parem de parecerem pedir desculpas constantemente pela idéia dos super heróis, como se fossem algo tipo "ok, sabemos que nossos personagens são rídiculos, vamos continuar tentando...". Ambas as mídias são meios de representação, de resignificação da realidade. Veículos escapistas sim, mas seguramente, meios de inspiração, vetores pra uma mensagem que tem (ou deveria ter) como resultado final, nosso aprimoramento como pessoas. E que, ainda por cima, são divertidos pra cacete.

Sim, é um tapa na cara de ambos os autores pros seus respectivos fandoms mas também pra sociedade em geral: a vida é difícil e desesperadora em alguns momentos. E nestes as histórias vão estar lá, não para nos alienar e servir de realidade-simulacro aonde poderemos nos enclausurar, mas pra nos guiar e nos oferecer conforto e apoio. É o que você faz depois que termina de ler/assistir tais historias que vai determinar sua vida, as lições que você tirou, as idéias que absorveu e o quanto elas nos mudaram no processo. É isso que importa (e falo de HQs e animes mas isso vale pra tudo, teatro, livros, cinema, música, games, etc.). 
C'mon, guys. Vcs tem mídias e mídias que não tem que se limitar a barreira alguma e tudo que vcs querem fazer delas é material pra punheta e um espelho distorcido da realidade? (ou daquilo que vcs enxergam como tal). 
O final feliz de Anno é, ele mesmo, uma desconstrução do conceito de finais felizes. Dotado de alguma esperança mas ainda receoso. Já o de Morrison abraça a magia e nos diz, com um sorriso no rosto, que quando precisarmos, Flex e os demais heróis vão estar lá pra nos salvar.
E em caso de qualquer duvida, tudo que precisamos fazer é seguir o conselho que é a ultima frase da minissérie do autor escocês: "Look up!"





Excellent ^^




Ps: Pro pessoalzinho que adora vomitar os nomes de Miller e Moore como símbolos da ultima palavra a se dizer sobre super heróis, como defensores do realismo e da descompressão, só um toque: AMBOS vão fazer as pazes com o "sense of wonder" em trabalhos futuros. Miller com o mega criticado (exatamente por isso) "TDKR II" e com o "Big Guy and Rusty". Já o Moore com "Promethea" e "Tom Strong". O estilo de "TDKR" e "Watchmen" era UMA visão possível, relevante para AQUELA época, não a palavra final sobre o gênero. 

REFERÊNCIAS:

- Já citei o obrigatório blog do Patrick Meaney mas fica aqui a sugestão novamente: Patrick inclusive produziu e dirigiu um documentário sobre o Morrison muito legal que ajuda a entender como a cabeça do autor funciona, tem inclusive a bagaça inteira no youtube. \o/ 
- Tem essa matéria bem legal sobre Flex Mentallo aqui também...
- todas as imagens, tirando as que eu tirei dos próprios filmes, vieram do evageeks.com ou do Evangelion.com.br. Lá inclusive tem varias teorias em português  alem, claro, de todos os episódios, filmes e demais trequinhos legais ligados à série.
- Usei esse livro aqui sobre Invisíveis como referencia. Ele é OBRIGATÓRIO pra qualquer  do trabalho mais denso que o escocês careca já fez.
- Não posso postar o link aqui porque não tenho, comprei o livro físico mesmo, mas uma recomendação óbvia é o livro meio estudo da história de HQs/meio auto-biografia do Morrison, Supergods
- Bowie. sempre, sempre, sempre. ^^

Nenhum comentário: