quinta-feira, 4 de maio de 2017

Twin Peaks S01e02 - Zen, or the skill to catch a killer: "....and there is always music in the air"


Sonhos tem poder.
E não me refiro ao termo aqui em sua versão "projetos de vida de longo prazo" ou "objetivos inatingíveis" mas àquela coleção de imagens normalmente desconexas que experienciamos ao dormir.
E não me refiro à algum tipo de poder místico ou de origem divina, até pq não acredito nesse tipo de bullshitagem. Falo de sonhos em seu elemento mais básico como uma coleção de imagens geradas pelo nosso subconsciente enquanto repousamos, a definição mais "Dicionário Aurélio" possível. 
E creiam-me, falo em primeira pessoa aqui: um sonho me tornou evangélico aos 11 anos de idade. Outro, me tornou ateu, 3 anos depois. 
E sonhos ocupam uma posição de destaque em toda a obra de David Lynch, desde Eraserhead, passando por Blue Velvet, e culminando no excelente Mullholand Drive (que tem a mais perfeita representação de um pesadelo que me lembro) e Inland Empire, tour de force de 3 horas de duração que ainda não vi mas repousa lá, me olhando criticamente, no meu hd externo reservado para filmes. 
Preciso dizer que esse elemento onírico também marca presença na obra musical de Lynch, com suas canções todas com aquele tom de sonho e pesadelo e texturas sonoras alternando entre o confortador e o macabro.


Considerando, no entanto, que boa parte das obras citadas acima foram criações posteriores ao seriado protagonizado por Dale Cooper e Laura Palmer, não é difícil imaginar o impacto que "Zen, or the skill to catch a killer" deve ter causado no público, pego de guarda baixa em sua exibição inicial. No começo do episódio, quando o agente do FBI utiliza de uma tática aprendida em um sonho para "investigar" possíveis pessoas de interesse para o caso, nossa tendencia, público que vê o ep. pela primeira vez sem informações de antemão, é achar apenas mais uma peculiaridade engraçada do policial, mais uma de suas esquisitices quirk que o fazem tão carismático. Quando o método, no entanto, faz com que os nomes de Leo Johnson e do dr. Jacoby passem a constar sob o radar de Dale.....aí a coisa complica. Sabemos que o psiquiatra tem informações que podem ser cruciais para solucionar o mistério, ao mesmo tempo em que temos ciência do papel de Leo como cabeça do tráfico de drogas local, então.....uma fortuita coincidência ou.....??*
O tom de sonho perpassa inclusive nos momentos "vida real" do programa: percebam como Leo parece saído de um pesadelo no momento em que confronta Bobby e Mike no meio da floresta, banhado numa luz vermelha que lhe dá ares demoníacos.
Ou a cena de Leland dançando.



Ou Shelly no restaurante também dançando ao som da canção saída da jukebox, canção essa que ela descreve como "too dreamy". Ou mesmo os diálogos entre Nadine e Big Ed, bizarros como se concebidos por uma mente vagando pelo reino de Morpheus
Mas, novamente, até aí, peculiaridades quirks e uma piscadela do diretor para seus fãs de longa data além de um elemento de assinatura estilística.
Mas aí, o agente Cooper vai fazer naninha...... and then......




okay.....
nope.....tipo.....ooookay....

Esse é o momento de virada da série. Quando ela deixa de ser APENAS um novelão classudo e bem feito e passar a ser algo mais......estranho...... Elementos de sobrenatural já apareciam desde o ep. anterior, com a aparição da misteriosa figura que, agora, sabemos se chamar Bob. Mas...... o que era um pouco mais sutil até então, agora vem com os dois pés no peito do público.
Algo muito, MUITO estranho está acontecendo em Twin Peaks.
Vamos ao sonho?

Okay....
Numa sala escura, vemos o homem de um braço só olhando pra câmera e ele diz o seguinte:



Through the darkness of future past, the magician longs to see. One chants out between two worlds ... fire ... walk with me. ... We lived among the people. I think you say, convenience store. We lived above it. I mean it like it is, like it sounds. I too have been touched by the devilish one. Tattoo on the left shoulder ... oh, but when I saw the face of god, I was changed. I took the entire arm off. My name is Mike. His name is Bob.

Ok, parte por parte:


Through the darkness of future past (o futuro do passado. Ou, o presente. então, algo que está acontecendo, tipo, AGORA)
The magician longs to see. (O mago.... Dale? Vamos nos concentrar um momento no termo "mago". Segundo o tarot: 

Nos baralhos franceses, O Mago era geralmente representado como "o charlatão" ou "golpista". Nos baralhos esotéricos, ocultistas como Oswald Wirth transformaram o termo pejorativo em um simples praticante de magia, um mago. São símbolos principais da carta uma pessoa trabalhando em uma mesa, utilizando como instrumentos principais taças, moedas, facas e bastões, que também são as representações diretas dos quatro naipes do baralho de Arcanos Menores: Paus (os bastões), Ouros (as moedas), Copas (as taças) e Espadas (as facas). Esses objetos também fazem referência direta aos quatro elementos clássicos, que são terra, ar, fogo e água. O bastão que a figura segura mais tarde também ficaria conhecido como a "varinha" de um mágico. Na mão direita do Mago está a varinha voltada para o céu, enquanto a mão esquerda está apontada para a terra. Esse gesto tem múltiplos significados, mas é endêmica aos mistérios, simbolizando a imanência divina e a capacidade do Mago de ser a ponte entre o céu e a terra.




A ilustração da carta d'O Mago no Tarot de Rider-Waite foi desenvolvida por A. E. Waite para a Ordem Hermética da Aurora Dourada em 1910. A carta O Mago de Rider-Waite caracteriza o símbolo do infinito sobre a cabeça da figura principal e um cinto de ouroboros, ambos simbolizando a eternidade. A figura está entre um jardim de flores, para implicar a manifestação e cultivo dos desejos

O mago, portanto, uma figura que oscila entre o sagrado e o ordinário, é uma ponte entre dois mundos e o responsável por uma transformação, uma alteração de estados. 

Ainda segundo a página do wikipedia sobre o mago no tarot: "Na caminhada espiritual, o Mago representa o ponto de partida e a necessidade de fazer uma canalização de vibrações superiores para poder realizar uma evolução"

A realidade está em mudança. O mundo mercurial, indo de um ponto ao outro e cabe ao mago (Dale?) o papel de guia-lo até a evolução se completar.

One chants out between two worlds ...
 fire ... walk with me 

A frase acima está no braço esquerdo de Bob (o mesmo braço que está ausente em Mike). E a frase escrita no papel encontrado no vagão de trem onde o assassino estuprou e matou Laura e Ronnete.
"Two Worlds"
Ainda não temos informação o suficiente para concluir que "dois mundos" são esses, mas, considerando tudo, são mundos aos quais provavelmente apenas o mago (Dale, certo?) tem acesso e liberdade para transitar livremente. 

"We lived among the people. I think you say, convenience store. We lived above it. I mean it like it is, like it sounds"


"Vivemos acima de vcs" E ele quer dizer "acima" mesmo, exatamente como soa. Uma dimensão acima? Num mundo mais alto? Mas ao mesmo tempo, entre nós. "Among the people"
"Eles" vivem acima mas entre nós. Espíritos? Fantasmas? Ou o que vemos como sonhos do agente Cooper são, na verdade, incursões à alguma dimensão de existência diferente? 

I too have been touched by the devilish one. Tattoo on the left shoulder ... oh, but when I saw the face of god, I was changed.


Sem rodeios: Mike se refere à Bob. "The devilish one" with the "tattoo on the left shoulder". Mas ele mudou quando viu a face de Deus. 

I took the entire arm off.


Mike arrancou o próprio braço. Como sacrifício ou como punição? Remetendo, talvez, à Mateus 5, versículos 29 e 30 que dizem:

"Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno."

Mike e Bob talvez, remetendo aos dois adolescentes de mesmo nome da série, tenham sido parceiros de crimes até o momento em que o primeiro, citando John Locke (o "mago" de Lost, não o filósofo), "olhou nos olhos da Ilha e o que ele viu foi lindo" e, em sinal de subserviência e desejo de redenção, se auto-mutilou. 

My name is Mike. His name is Bob.


Auto-explicativo.

A cena muda e agora vemos Bob que diz:

Mike? Mike, can you hear me?
Catch you with my death bag. You make think I've gone insane ... but I promise, I will kill again.

Percebam o detalhe: na carta do tarot do mago, a figura geralmente tá com uma das mãos apontadas pra cima e a outra pra baixo, remetendo à citação clássica do mago hermético Hermes Trismegistus, que reproduzo abaixo: 

"That which is Below corresponds to that which is Above, and that which is Above corresponds to that which is Below, to accomplish the miracle of the One Thing."


Trismegistus se referia à dicotomia da realidade, o "mágico" e o "físico" que se unem pra, juntos, resultar, tal tese e antítese, dialeticamente gerar a síntese que seria nossa realidade, o mundo físico que experienciamos todo dia. 

Pq cito isso: a citação de trismegistus: "as above so below". Tanto acima quanto abaixo.
Mike diz que "vivemos ACIMA de vcs"
Bob, quando chama Mike, tá olhando pra cima, como se estivesse num plano ABAIXO dele. E imediatamente, ele olha pra câmera pra falar conosco. Ou no caso, com Dale, que está tendo o sonho. 
"Two worlds". Bob está preso entre dois mundos. O de Mike (acima) e o nosso (abaixo) e o agente Cooper é a ponte entre ambos. 

Catch you with my death bag. You make think I've gone insane ... but I promise, I will kill again.

De novo, auto-explicativo. 

Sigamos: 

Temos uma transição pra uma sala vermelha com chão com padrões listrados em preto e branco. Lá estão Dale, Laura Palmer e, entre os dois.... well... um anão de vermelho.



A estátua atrás deles é a Afrodite de Menofanto, estátua datada do século I A.C, encontrada no mosteiro camaldulense de San Gregorio al Celio em Roma e que hoje pode ser visitada como parte do acervo do Museu Nacional de Roma. (thanx wikipedia).


A estátua retrata a deusa Afrodite nua prestes a se banhar. 
Primeiramente, o óbvio: as mãos. Protegendo as partes, mas também, uma para cima e outra para baixo. As above so below.
Além disso: especialistas apontam algumas dicotomias envolvendo as interpretações simbólicas da estátua
- Vergonha X Sexualidade
- Autonomia X Dependencia

Também vale menção: o simbolismo do banho para a sociedade greco-romana, onde a água simbolizava pureza, frescor, renovação. E também: Afrodite, ao cobrir sua genitália, não está SE protegendo de nossa visão mas NOS protegendo da nudez dela. Segundo a mitologia da época, SEMPRE dava merda quando algum humano vacilão tentava ver um deus ou deusa pelada enquanto este/esta se banhava em algum rio. SEMPRE.  Ver uma deusa nua sem permissão NA MELHOR DAS HIPÓTESES, resultava em morte. Semioticamente falando, compreensível pq a estátua estava ali, não? Mas um detalhe que quase me escapou: a estátua nessa sala NÃO está com a toalha para se secar que a versão original da estátua tinha.
ANYWAYS, sigamos again...

Let's Rock

O anão começa a esfregar uma mão na outra. Vemos a sombra de um pássaro na cortina ao fundo.

I've got good news! That gum you like is going to ... come back in style.

O anão olha para Laura

She's my cousin, ... but doesn't she look ... almost exactly like Laura Palmer?

Confuso (não só ele, creiam-me), o agente Cooper pergunta se a moça é a filha de Leland e Sarah, ao que ela responde


I feel like I know her, but sometimes my arms bend back.

O sonho acaba com o anão dizendo

She's filled with secrets. Where we're from, the birds sing a pretty song ... and there's always music in the air.

A mulher que pode ou não ser Laura levanta-se, dá um beijo no policial e sussurra algo ao seu ouvido
E então, na cena mais clássica de que me lembro da série, o anão começa a dançar ao som de "dance of the dream man"



Tal qual Shelly no restaurante. Ou Leland, em sua residência. "We have to dance. For Laura"



Dale acorda, liga pro xerife Truman dizendo que sabe quem é o assassino de Laura Palmer e o episódio acaba com imagens do anão de vermelho dançando. (e vemos de cima, como da perspectiva do pássaro cuja sombra vimos momentos antes)

UFA...... That happened. Eu não sei exatamente o que tirar dessa interação entre os 3. O lance do chiclete me parece ser só o tipo de coisa que dizemos e ouvimos em sonho. A parte dos "braços que se dobram", no entanto, parece remeter a algum tipo de sofrimento pós-morte (ou trauma pós morte, se é que isso é possível) experienciado pela moça após os violentos eventos de seu assassinato, uma memória post mortem residual da brutalidade sofrida. De resto, parece que este é um "lugar melhor", onde "pássaros cantam e música permeia o ar" (um indicativo disso: quando Hawk vê o homem de um braço só no ep. anterior, isso o leva até uma sala - acho que a de autópsia - onde ele termina banhado por uma luz azul. Percebam como ela contrasta com a luz vermelha que banha Leo na já citada cena na floresta. Será que, tipo, azul = bom e vermelho = evil? Mas se for esse caso, pq demônios a sala do "lugar bom" seria vermelha e o guardião dela - o anão - também estaria vestindo tal cor dos pés à cabeça?) . Será o little man o tal Deus cuja visão levou Mike a tal nível de arrependimento e êxtase religioso que o levou a arrancar um dos braços?
E afinal.... o que demônios Laura sussurrou ao ouvido de Dale Cooper? 

I feel you, bro. Same here

*Maldita Lucy, por ter lembrado que o One Eyed Jack's não era uma pessoa. Fico pensando se a pedra teria acertado a garrafa ou não. 
- Falando dela, inclusive: grandes probabilidades de que todos os eventos sobrenaturais de Twin Peaks sejam frutos de uma onda de alucinações coletivas causadas por overdose de açúcar já que, DAMN, son, vcs viram o tamanho da mesa de donuts, docinhos e café que a secretaria faz DIARIAMENTE pros policiais da delegacia local?? O risco de diabetes deveria garantir pagamento extra por insalubridade para os agentes da cidadezinha...


- Ah, e pra não dizer que eu fui só elogios à esse excelente episódio: vislumbramos aqui os primeiros passos de uma das storylines mais constrangedoras da segunda temporada da série. Me refiro à Super Nadine. Mas falo disso quando chegar a hora........

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