terça-feira, 23 de junho de 2020

O novo normal

Há pouco mais de uma semana eu tive não apenas que quebrar a quarentena, mas de me jogar num dos pontos mais concentrados de gente aqui em SP. 

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Okay, eu entendo se já tiver gente desistindo deste texto. Esse geralmente é o começo de artigo que você espera vindo de um blog negacionista, daqueles que dizem que o COVID-19 é apenas "uma gripezinha". Que é "coisa da esquerda". Que (insira sua doença favorita aqui) mata bem mais. #forçafeefoco

Mas sério, ursem comigo: não vou entrar em detalhes em excesso aqui, mas tive que ir pra Santa Ifigênia, bairro de lojas de produtos de tecnologia famoso aqui da capital. Se tu precisas de itens de informática, jogos e tudo relacionado a essa área, lá é o lugar pra ir. Precisava de uma bateria de notebook. Sim, lojas online foram pesquisadas. Não, não dava pra pedir online, já que as taxas de entrega eram abusivas. E se os senhores se lembram, eu ainda sou um homem desempregado. E o computador pedindo por uma bateria nova era justamente o usado pra trampos aqui em casa. 
Enfim, este era o cenário. Sem opções, peguei as roupas mais grossas que tinha, minha máscara, meu tubinho de álcool gel. E fui. 
Não, eu estou fazendo parecer que esse foi um processo fácil. Não, não foi. Sair de casa pra qualquer coisa, nos últimos 90 dias não é um processo fácil. Nunca. Saio uma vez a cada 15 dias. Ocasionalmente, se surge uma emergência, vou no mercadinho que fica há uns 200 metros de casa. Mas raramente. 
Sério, eu estou no modo Howard Hughes. Pânico descreve.

Anyway, voltemos ao conto de horror que foi minha incursão em plena pandemia a um dos locais com maior concentração humana desta cidade: armado com as roupas e as armas de 2pac, eu fui.

Uma representação visual bem próxima de como eu sai de casa nesse dia
A ida foi tranquila. Metrô quase vazio, o que é sempre uma coisa ao mesmo tempo confortadora e ligeiramente perturbadora. Menos de 10 minutos, saio pela estação São Bento e vou a pé pelo resto do caminho. 
A estada lá, no entanto, foi bem menos "de boa": fui o mais cedo que deu e chego às 9h40 no local. Mas a pandemia e as leis municipais determinam a abertura das lojas ali somente às 11. Ou seja, mais de uma hora lá. Parado. Esperando. De máscara, com sede e fome mas sem poder tirar pra nada pq vcs ESTÃO LOUCOS???
Tem um vírus matando gente por aí, sabe?
So...... só resta esperar. As 11, as lojas abrem. As gurias donas da loja onde vou estão reorganizando a loja, depois de levarem todo o estoque pra casa pra venda via Mercado Livre. Mais uns 30 minutos até uma delas ir até em casa e pegar a bateria que eu precisava. Volto pra casa.
Metrô igualmente vazio na volta, com nem 1/3 da carga que deveria ter nesse horário.
Entro em casa, direto pro banho. Missão cumprida.

Nesse caminho, no entanto, o olhar vai e volta aos lugares. Fazia tanto tempo que eu não saia de casa de fato, que eu cruzava a linha de 1km daqui do apartamento. Pq afinal, quarentena é coisa séria.
Foi estranho notar que o mundo entrou naquilo que o pessoa da área de estética e computação gráfica chama de uncanny valley. Resumindo: uncanny valley é aquela sensação de estranheza que temos ao ver réplicas humanas imperfeitas. Pensem no personagem do the Rock em "Scorpion King". Nos bonecos digitais de Matrix Revolutions e Blade II. Nas cenas de close naquela animação do Bewulf. Perfeitos, mas com olhos mortos. Algo errado.

Uncanny valley
Bem isso. O mundo pós-corona, pelo menos na parte que cabe do meu quintal, virou um gigantesco uncanny valley. Reconhecível, mas....
Quase todo mundo de máscara nas ruas. Inclusive, vendedores informais tirando o do mês vendendo máscaras. Descartáveis ou de pano, fica como opção pro cliente.
Na saída da mini-galeria onde ficava a loja em que fui, um segurança com um daqueles termômetros digitais portáteis, medindo a temperatura de todo mundo entrando e liberando apenas um por vez. 
A espera lá, até as lojas abrirem, era tensa. Ninguém muito perto uns dos outros. Mesma coisa no trem, como se as pessoas já pensassem em suas posições no transporte em relação a possíveis freadas súbitas, evitando que, nesse caso, fossem surpreendidas encostando umas nas outras. Inclusive, imaginem isso: assentos vazios. Não muitos, mas o suficiente pra chamar a atenção. 
Lojas anunciando horas especiais de reabertura. Restaurantes, apenas com delivery. 
A impressão que dá é que mesmo o pessoal sem máscara parece assustado. Como se sua credulidade estivesse por um fio de ser quebrada. Deus pode ser grande, mas mesmo ele parece assustado sob a sombra de um vírus tão pequeno e tão gigantesco.
Esse é o uncanny valley ao qual me refiro. A cidade tenta voltar ao normal, mas eles ainda não entendem, apesar de num nível subconsciente provavelmente já suspeitarem, de que as noções de normal vão ter que ser redefinidas.
"Normal" implica frequência. Perenidade no tempo. O cotidiano. E elas sabem que o normal que existia pré-virus se foi. Os trabalhos, a escola, as faculdades, o entretenimento vai ter que ser repensado neste mundo de novo normal. Tudo vai demandar um redesenho. Não existe "voltar ao que era antes". Talvez, apenas por um tempo. Talvez, pra sempre.

Old man Burns me entenderia.
Esse texto é só uma crônica. Se vcs estavam esperando alguma reflexão sobre o que nos espera que fosse terminar com um insight brilhante, que tudo acima escrito fosse um preambulo precedido por "mas" ou outra conjunção adversativa e que agora eu fosse dizer algo edificante sobra a resiliência do espírito humano.....bom, a vida é isso, fiote. Um amontado de decepções.
Essa é só mais uma. 
E eu estou no mesmo barco que vocês, senhores. Sem certeza de nada. Sem saber se o chão vai estar adiante esperando meu pé pro próximo passo. Pós-modernismo tornado quase literal. Kali-Yuga. 
Fim do mundo. 
A única certeza: em conversas informais, "nerds" adoram discutir sobre seus cenários distópicos favoritos. Apocalipse zumbi. Mad Max, Matrix. Invasão Lovecraftiana.
Bom.... ninguém esperava que a nossa distopia tivesse a cara que tem. Uma mistura de neo-fascismo pentecostal, crise climática e de saúde. Morte por excesso de capitalismo + uma arbitrariedade da natureza. A roda da História, acelerada por um organismo microscópico 
Nada quebrando o mundo num nível irreconhecível, pelo menos até o momento.
Apenas isso. Algo parecido com o normal. Mas errado. E uma cicatriz formada por, só pra me concentrar aqui no Brasil, 50.000 vidas ceifadas (até o momento). Que vc pode fingir que não vê, mas que vai estar lá, chamando teu olhar, tirando você da zona de conforto. 
Bem vindo ao novo normal. Puxa uma cadeira.

Mas higieniza as mãos com álcool depois. 

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