terça-feira, 13 de outubro de 2020

Em rumo a Krakoa: Heróis da classe trabalhadora


Bom, como dito ontem, quase 100 edições de gibis mutantes foram consumidas por este relativamente humilde escriba, nas ultimas 3 semanas. O que eu tirei disto?

Inicialmente, falemos do título principal, Uncanny X-Men. Decidi que meu ponto de entrada seria a edição 169, primeira aparição dos Morlocks no universo mutante, exatamente pela memória que tinha deles, por seu papel dentro do lore e por achar que essa edição confirmaria uma hipótese que eu carregava naquele momento. Hipótese que se provou correta, devo afirmar: Chris Claremont, como disse outro dia, foi o escritor que transformou estes personagens no que eles são hoje. Alguns declararão que a afirmação é exagerada, mas sinceramente não acho que é o caso. Não sozinho, já que temos aí Byrne nos roteiros, até um ponto, além de todos os desenhistas que passaram pelo título, de Romita Jr. a Jim Lee. Mas confesso que, com todos os méritos à fase em que ele co-escreveu o gibi com o roteirista canadense, a parte suculenta do lore vem do seu vôo solo. 

"E o que ele adicionou a esse lore?", vocês me perguntam. 

Vamos por partes: Claremont chega no título na edição de número 94, de Agosto de 75. Seis edições depois, ele introduz a Fênix, que faz sua gloriosa aparição inicial no número 101. 

Quase todos os elementos que o fandom ama nesses personagens, vem dos seus 17 anos no título.

Mas novamente, não se trata apenas dos personagens que o roteirista criou, mas do como, do tom daquelas histórias, das metáforas ali contidas. Mais uma hipérbole que provavelmente vai ser contestada aqui e ali mas: Claremont tornou os discípulos de Xavier no símbolo de minorias que são hoje. Não que o elemento do preconceito não estivesse ali desde as primeiras edições de UXM, como já apontamos nos textos anteriores desta série do blog. Mas antes, era sutil, delicado.

Aqui, não. O subtexto vira "sobre"texto. O nêmesis dos personagens não é mais Magneto, que aqui ganha ares de líder mutante e ativista, mas o preconceito racial. O arqui-inimigo destes heróis deixa de ser uma figura personificada e passa a ser um conceito abstrato. 


Além disso, o criativo do gibi soube aproveitar e captar muito bem o "espírito" de sua época: Uncanny X-men é um quadrinho punk, desde sua arte até seus temas. Anti-establishment até a medula: o governo, antes formado por "algumas maçãs podres" agora é retratado em sua maioria como o "inimigo". Fantasmas como a "lei de registro de mutantes" pairam o tempo todo sobre os residentes do Instituto Xavier. Quando pessoas comuns são retratadas, a multidão normalmente aparece como um bando de racistas, preconceituosos, aproveitando o comportamento de turba pra expressar seu ódio. Novamente: as maçãs podres viraram maioria. Ainda é sobre "nós vs eles", onde o gibi ainda toma a postura segura - alguns diriam ingênua - de achar que o leitor vai se identificar mais com o "nós", vítima do ódio das massas, do que com o "eles" lançando pedras e ofensas com a mesma ferocidade. Novamente, não alienar o público leitor e ainda assim criticar a sociedade de forma menos superficial é uma linha fina, sobre a qual poucos tentam orbitar. Claremont, dotado da coragem de alguém que sabe que o título ia mal nas vendas e que, portanto, o editorial estava aberto a certos riscos, vai sem dó. 

O que nos traz a um elemento que me parece fundamental pra explicar o porquê do sucesso deste título: Claremont introduz a luta de classes, o conceito de classe social, na HQ. Até então, se tratava de heróis versus vilões. Os vilões variavam, indo desde o sujeito procurando uma oportunidade num mundo hostil até o vilão milionário de monóculo que anseia pela dominação mundial como forma de conter seu ennui. Com o tempo, no entanto, a equipe criativa do título introduz um grupo de coadjuvantes e antagonistas que vão borrar essas linhas e acrescentar alguns tons de cinza nelas. 

Os dois extremos disto são os Morlocks de um lado e o Hellfire club do outro. 


Os Morlocks são um grupo de párias mutantes que vivem nos esgotos. Quando o gene-x se ativou neles, suas mutações alteraram seus corpos de forma brutal, não deixando a eles a possibilidade de passarem despercebidos pelas pessoas "normais" como acontece com a maioria dos X-Men, restando a eles apenas o exílio social. Liderados por Calisto, tais mutantes encontram força na idéia de comunidade e conseguem sobreviver coletivamente.




O Clube do Inferno, em oposição, é um clube de elite formado secretamente por mutantes ricos, usando seu poder ($$$) e seus poderes para penetrarem nos círculos de influência da sociedade. Imaginem algo tipo aquela sociedade secreta de "De olhos bem fechados". Incluindo a parte do sexo, ainda que isso não seja retratado já que é um gibi para crianças (mas não é uma coincidência que Selene e Emma usem trajes de fetiche como seus "uniformes", enquanto as serviçais adotem roupas de "maiden" francesas). Num mundo pós-reabilitação de Magneto, o clube liderado por Sebastian Shaw vai funcionar como os antagonistas de fato dos heróis, inclusive assumindo aquele trope típico do vilão que é o extremo oposto do seu adversário, também funcionando como um colégio para mutantes, tal qual o Instituto Xavier. Dessa forma, Shaw seria o prof. X reverso, também utilizando poder e influencia para secretamente garantir a própria existência, mas onde Charles faz isso de forma abnegada, o vilão o faz por pura sede de poder, a ponto de permitir anti-mutantes como Donald Pierce e figuras de moral questionável como o jovem "Empata" entre suas fileiras. 

Em ambos os casos, temos o elemento da existência num contexto capitalista sendo introduzida na história. Na história de estréia, os Morlocks sequestram Warren Worthington III, o Anjo dos X-Men, porque Calisto quer se casar com ele. Falando dessa forma, parece uma trama superficial, digna de episódio dos Super-Amigos. Ledo engano: Worthington é, nesse momento, um dos poucos mutantes "fora do armário", tendo declarado publicamente a respeito de sua mutação. Além disso, como o sobrenome pomposo indica, ele é herdeiro de uma família de elite. Além disso tudo, seu codinome é "angel", um símbolo cristão. Seu poder, permite que, tal qual Ícaro, ele voe "próximo a Deus". Calisto deixa claro que o que ela quer não é "um marido", mas tudo que Warren representa. Porque alguns mutantes podem sair ao sol enquanto ela e os seus tem que se conformar em literalmente sobreviver nos esgotos?



 Mesmo "Masque", o morlock mais retratado, nesse momento, em tons vilanescos: a fonte do seu ódio vem do fato de que seu poder permite que ele altere o rosto alheio da forma como ele bem entender, podendo moldas as feições de terceiros como se fosse argila. A ironia, no entanto, é que ele é profundamente deformado e seu poder não funciona nele mesmo. Novamente, o ódio vem daquilo que os outros possuem e que lhes é arbitrariamente negado. 

Voltemos ao Hellfire Club e, sob o mesmo prisma, vamos nos concentrar no seu grupo de líderes, o "círculo interno". 

Sebastian Shaw tem o poder de absorver a energia cinética dirigida ao seu corpo e usa-la de volta contra seu oponente. Emma Frost é uma telepata sem muitas limitações morais a respeito do uso indiscriminado de seus poderes. Harry Leland pode controlar a massa de seus oponentes, tornando-os leve como o ar ou pesados como titânio. Selene é literalmente uma vampira, uma parasita vivendo sugando energia vital de terceiros. Jason Wyngarde pode gerar ilusões telepáticas, podendo aparecer como quiser diante das pessoas e fazendo-as ver o que ele quiser. Donald Pierce é um humano normal mas que ganha habilidades super-humanas depois de se tornar um ciborgue. 

Novamente, Shaw usa aquilo que lhe foi direcionado contra seus opositores. Emma e o Mestre Mental são ilusionistas controlando a percepção pública. Leland é alguém pateticamente inseguro (e simbolicamente, seu poder remete a idéia de transformar pessoas em "pesos"), Pierce é um hipócrita, gritando por pureza sendo, ele próprio, algo "supra-humano". E, sem medo de me repetir: Selene é LITERALMENTE um parasita. 

Claremont não estava preocupado em ser sutil aqui. 

No meio do caminho, estavam os X-Men. Futuramente, eu comento sobre os Novos Mutantes, mas nos focando apenas no time principal: é interessante como, do time original para este, temos uma transição em termos de estabilidade financeira. Os 5 originais são quase todos vindos de família estáveis, com Warren se destacando como o mais abastado entre eles. Já o segundo grupo: Wolverine é alguém quase desapegado completamente de necessidades materiais. Ororo era vista como uma deusa entre os locais na Africa, mas na infância teve uma vida de miséria, tendo que recorrer a pequenos roubos sob a tutela de Amahl Farouk, o Shadow King. Noturno e Proudstar vinham de situações relativamente estáveis. Piotr era um trabalhador numa fazenda coletiva na União Soviética. As exceções eram Solaris, de uma nobre linhagem japonesa e Banshee, ex-policial e ex-agente da Interpol, de onde podemos concluir que ele deve viver confortavelmente. Mesmo assim, é uma transição interessante. Curiosamente, os mais abastados destes se afastam para suas vidas pré-heróicas. Os demais, aceitam a vida na mansão do benfeitor rico. No entanto, com o afastamento de Xavier em decorrência de um ataque sofrido por uma turba anti mutante e uma série de outros eventos, os mutantes terminam quebrados, tendo que pedir refugio com colaboradores na Austrália e, em uma circunstancia específica, com os Morlocks, nos esgotos. 

Estes não são heróis que, tal qual Tony Stark, vão em missão entre um banho de jacuzi e outro, oscilando entre a persona heróica e o playboy bon vivant. Os X-Men do Claremont são figuras urbanas, que vivem naquela zona cinzenta pela qual Batman e os demais apenas transitam ocasionalmente entre um combate e outro. Como já dito, eles são punks, contra-culturais, anti-establishment (ou o mais nessa direção que um material de cultura pop voltado para a mídia mainstream pode ser). E por que não seriam? Lembremos: este é um momento em que os membros da "Brotherhood of EVIL mutants" foram assimilados por este mesmo establishment, trabalhando para o governo agora sob o nome de "Freedom Force". O establishment é responsável pela lei de registro e pelo financiamento do programa de desenvolvimento de sentinelas. O mesmo governo que financiou e usou uma arma que foi responsável pela perda dos poderes de Tempestade. O establishment não é e NUNCA FOI amigo das minorias, estas sendo obrigadas a se reafirmarem como seres humanos e como consumidores para poderem existir (Porque lembremos, historicamente, minorias só foram socialmente reconhecidas - leia-se "toleradas" -  por seus opositores quando se provaram financeiramente hábeis. Vide a situação atual da comunidade queer e toda a questão envolvendo o "pink money"). 




Este tema vem como um fantasma pairando sobre os personagens e é tornado plot point na primeira incursão dos personagens à cidade-estado de Genosha (esta passagem em si vai ganhar um texto só pra ela futuramente). Não podendo retratar os EUA como o inimigo - de novo, limitações de um quadrinho mainstream - Claremont cria um lugar fictício onde ele pode mostrar esse processo de desumanização da figura do outro sem medo de críticas. 

Pra efeitos de concisão, esta é a principal dicotomia, desenvolvida pelo criativo neste momento, que funciona como a base fundamental de tudo que vai ser feito com os mutantes nas décadas seguintes: o governo não é um aliado, a sociedade não é uma aliada e o sistema capitalista funciona contra você, numa imagem que pode ser resumida na arte de capa da edição número 208. 


X-men à esquerda. Urbanos, desafiadores, sozinhos contra o mundo e com os punhos em riste. 

O clube do inferno à direita. Ricos, poderosos mas patéticos em seus trajes clássicos tentando evocar um ar de burguesia francesa, em mais um típico exemplo da cafonice dos afortunados.

No meio, entre ambos, Nimrod, um sentinela, a personificação do ódio e do preconceito racial.

O único poder, a única força de fato - desconsiderando, obviamente seus poderes mutantes - vem da comunidade, da união entre estes marginalizados, numa situação em que o simples ato de existir é, em si, um ato de protesto. 

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