quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Em rumo a Krakoa: Sangue novo.


 Star Trek tem "Star trek: The new Generation"

Star Wars tem o trio de protagonistas dos filme 7, 8 e.... ugh... 

Os X-Men, por sua vez, tem os New Mutants. Surfando a onda de sucesso de seu período no título dos mutantes, Claremont recebeu carta branca do editorial para um spin off sob sua tutela. Ao invés de se repetir, ele decidiu tomar uma abordagem fresca: como é ser um adolescente mutante neste contexto de ódio racial? Como é ser a geração seguinte a de ativistas? Como é ter que continuar a luta sob a sombra de gigantes? E, afinal, como ocorre com toda história de fantasia focada na perspectiva de jovens protagonistas, como é "aprender" a ser um super herói?

Como no texto anterior, eu vou falar por cima sobre questões de classe aqui, já que este é um ponto importante no lore deste título. Até porque, num primeiro momento, o Clube do Inferno também funciona como os principais antagonistas destes personagens.

Então, Novos Mutantes. Surgidos inicialmente na graphic novel "New Mutants: Renewal" de Setembro de 1982. Os X-Men, novamente, haviam sido dados como mortos, desaparecidos numa missão e o Prof. X decidiu que era hora de seguir adiante e abraçar um novo grupo de mutantes precisando de sua ajuda, grupo este formado por Sam Guthrie (Cannonball), Dani Moonstar (Mirage), Rahne Sinclair (Wolfsbane), Roberto DaCosta (Sunspot), Xi'an Coy Mahn (Karma) e, mais adiante, Warlock, Amara Aquilla (Magma), Douglas Ramsey (Cypher) e Illyana Rasputin (Magik/Darkchyld). 

Primeiro comentário e aquilo que mais salta aos olhos na leitura desse gibi: a quase completa ausência da "fase de encantamento". Pensem em Luke Skywalker, na primeira vez que pegou num sabre de luz. Harry Potter, da primeira vez que entrou em Hogwarts. Aquele momento em que a história permite que o protagonista - e a gente junto dele - enxergue aquele contexto com um olhar de fascínio, onde  tudo é novo e mágico. 


Aqui, isto é negado aos personagens. Mal chegam no Instituto Xavier e eles já são confrontados com perigos que tornam aquelas paredes mais claustrofóbicas do que convidativas. O colégio é um esconderijo, mas não um lugar seguro. E de fato, os riscos estão ao redor dessas crianças o tempo todo, como lobos em busca de carne fresca, o que nos traz ao principal tema da série: pais. Maus pais. 

New mutantes é uma série dominada por personagens que vão se apresentar para os protagonistas como figuras paternas em potencial, até o óbvio momento em que eles se revelam como ameaças de fato, o que, num primeiro momento, inclui o próprio Professor Xavier - aqui, possuído por uma larva de uma raça alienígena, a Ninhada. Pensem nos face huggers de "Alien". Superado esse desafio inicial, o contexto não é particularmente amigável (pelas minhas contas, são 21 edições até esses guris aparecerem fazendo coisas típicas da idade, como participando de festas com os amigos e coisas do tipo). 

Dos 5 originais, 4 deles são orfãos. A exceção é Roberto mas mesmo este não esta em condição confortável em comparação aos demais. Sua mãe é uma arqueóloga, constantemente em viagem. Seu pai, um magnata brasileiro emocionalmente distante (e que, spoiler alert, vai se revelar um adversário). 

Falei no começo do texto sobre a questão de classe no gibi e se já tivemos uma mudança de paradigma do time original pro de "giant size x-men", aqui a coisa é ainda mais óbvia: Rahne foi criada por um pastor ultra radical, o que implica uma vida regrada. Samuel tinha um futuro brilhante pela frente, podado pela morte do seu pai, o que lhe condenou ao papel de provedor da casa, trabalhando nas mesmas minas de carvão que mataram o patriarca da família. Dani é criada pelo avô numa reserva indígena e Xi'an tinha que cuidar dos dois irmãos menores, enquanto ela e seu irmão mais velho tinham que sobreviver obtendo o que podiam por meio de seus poderes. 


De novo, crianças (Karma - 19 anos de idade - sai cedo do título, deixando pra Sam o papel de mais velho do grupo, com 16 anos. Os demais tem 14 anos, com Rahne como a mais nova com 13), em condições financeiras que orbitam entre o estável e o "complicado", deixados sob os cuidados de um benfeitor rico, constantemente em situações de risco com outros tentando ocupar a vaga de tutores para uso de seus poderes em benefício próprio. 

Inicialmente, Manuel DaCosta. Depois, o líder de Nova Roma e Selene. Na minissérie que mostra os eventos ocorridos com Illyana durante sua passagem no limbo, Belasco via ocupar esse papel. A seguir, Emma Frost. De novo e de novo, esses adolescentes vão tentar confiar em adultos, apenas para serem traídos. Obviamente, o custo emocional disto nessas mentes em formação vai ser devastador. 


Aliás, um aviso: este é um gibi difícil de ler. Exatamente porque o criativo faz um excelente trabalho em nos deixar apegados a estes protagonistas e, ao mesmo tempo, ao expor os jovens a pressões que quebrariam adultos com décadas de experiência. É ligeiramente doloroso avançar na leitura deste título. Como eu disse no twitter, é como se Harry Potter começasse direto em "O cálice de fogo", em que as trevas sobre Hogwarts roubam a escola de seu papel como "lugar seguro". 



 O que nos traz ao segundo grande tema de New Mutants, que dialoga lindamente com o anterior: a relação daquelas crianças com Deus. Como eu comentei no twitter, NM é sobre adolescentes, o que faz com que também seja sobre pais. E Deus é o ultimate pai, não? Dizem que a imagem que temos de Deus é diretamente consequência da relação que tivemos com nossos pais. Filhos de lares estáveis imaginam Deus como uma entidade de amor. Filhos de lares complicados, como um Deus como o do velho testamento, austero e assustador. De fato, principalmente com a chegada de Bill Sienkiewicz como desenhista regular da série, essa metáfora vai ser usada direto, principalmente na forma como o artista retrata Xavier. É curioso notar essa dicotomia: se nesse momento do título principal, Charles é um homem fragilizado depois de um ataque sofrido, aqui, ele sempre aparece como uma força da natureza soberana. Só que um Deus ausente e falho. Primeiro, introduzido como ameaça. Depois, ausente por causa de eventos que o forçam a se refugiar com Lilandra no espaço. E por fim, como um deus quebrado, no arco mais famoso destes personagens: a saga de Legião. 

As metáforas cristãs já estão aqui desde o começo: os Novos Mutantes são crianças recrutadas num contexto de guerra, quase pré-apocalíptico e serão submetidas a horrores indescritíveis pelo bem de sua raça, quase como cordeiros de sacrifício, retomando a idéia do sacrifício da inocência que vem da história de Abraão e Isaque. Legião, na verdade David Haller, manifestou sua esquizofrenia depois de atacar terroristas que visavam mata-lo e a sua família. Ou seja, o filho de Xavier sofreu por toda uma vida por um ato de heroísmo que lhe custou tudo. Familiar?

Quando o prof. X, confrontado com a própria morte, transfere o comando do Instituto Magneto, ele aparece como uma voz no céu, novamente retomando imagens que remetem ao Deus do velho testamento. 

Esse elemento que vem como tema se manifesta literalmente quando os jovens vão para Asgard, em decorrência de eventos desencadeados por Loki. Nessa utopia, nessa terra de fantasias, eles são tentados - como Cristo no deserto - com tudo aquilo que mais querem. Pertencimento, amor, companhia. Ser parte de um todo. Pelo bem da causa, obviamente, eles terminam negando isso, e o espectro de tudo que perderam vai atormenta-los pelo resto da série.

O que nos traz ao clímax de NM: o encontro com o Beyonder. Na época, a Marvel publicava a saga Secret Wars II que mostrava o personagem - Beyonder significando "the one beyond" ou "aquele que está além" - como a manifestação senciente de um universo inteiro. Tendo adquirido consciência e como consequência do seu contato inicial com a humanidade nas Guerras Secretas originais, ele vem até a terra tentar entender a idéia de "existência" e as particularidades da humanidade. Com a consciência, vem as frustrações e não demora muito para a entidade abandonar a postura de curiosidade. Como eu disse outro dia: Ele NÃO é um deus de amor. 

Sem rodeios: todos, exceto Roberto que nesse momento não fazia mais parte do time, são mortos e apagados da existência. Posteriormente, são trazidos de volta, mas com a memória dos eventos sofridos.

Jovens na guerra. Jovens expostos a um trauma absurdo. E obviamente, jovens com síndrome de stress pós traumático. 

Eu não sei como era a relação de Claremont com o editorial da Marvel na época, mas acho curioso olhar que a idéia do Beyonder é representar o próprio criativo da Marvel e, ao mesmo tempo, a gente. Secret Wars II é um momento meta em que aqueles heróis percebem a fragilidade da própria existência, onde toda sorte de dor e sofrimento existe para nossa satisfação, num ciclo sem fim de violência para nosso deleite e diversão. 


Num dos twists particularmente sagazes da série, é curioso notar que num cenário cheio de homens com fala mansa e postura educada mas que não demoram a se revelar como os lobos em pele de cordeiro que são, são dois "vilões", Magneto e Emma Frost, que vão funcionar como âncoras emocionais e tratar os traumas emocionais dos jovens heróis. Yin e Yang. "Aftermath", o arco que narra tais eventos, termina com a possibilidade dos jovens de ingressarem de vez no colégio dirigido por Frost, na verdade, uma fachada do Hellfire Club. E se, sim, ela é de fato um oponente e usa de meios excusos para garantir que os guris terminem sob seus cuidados, sua preocupação com eles parece legítima, principalmente porque em um determinado momento, ela é a unica pessoa que de fato sabe a o que aqueles jovens foram submetidos, iniciando aí o processo que vai culminar, anos depois, com a Rainha Branca trocando de lado e assumindo seu papel no Instituto Xavier. Claremont sempre foi incrível nesse processo de longas storylines com pay offs lá na frente e é extremamente satisfatório - como no caso do arco de redenção de Magneto - ler o gibi sabendo como isso vai ser retomado futuramente. 

 

Que Chris Claremont tenha conseguido fazer tudo que fez nessa HQ ENQUANTO escrevia Uncanny X-Men, é algo absurdo de se pensar. Conceitos fascinantes sendo criados, personagens novos, velhos personagens sendo definidos pra sempre a partir da caracterização que ele adotou. Loas também, obviamente, para a equipe de arte. Óbvio, ÓBVIO que Sienkiewicz é um monstro, mas os demais artistas que passaram por estas 40 edições da série também merecem elogios, considerando que muito da nossa empatia pelos NM vem da forma como a arte os retrata, como cada desenhista (Bob  McLeod,o sempre brilhante Roger Stern na minissérie "Magick") soube retratar a montanha russa emocional que é estar nessa posição, neste não-lugar entre a infância e a vida adulta e sendo expostos a pressões insanas. As expressões e principalmente os olhos desses personagens tem que exprimir uma quantidade absurda de emoções com a mesma velocidade que elas são processsadas pela mente de um jovem, cheia de inconsistências e mudanças súbitas e não é qualquer desenhista que consegue transitar entre emoções e estados de espírito de forma tão ágil, então, é incrível como todos aqui mantiveram a barra o mais alto possível. 


New Mutants é uma série que oscila entre o horror existencial e o coming of age com a sensibilidade um filme do Miyazaki. Horror e fascínio, dor e alegria, altos e baixos. Um retrato profundamente adulto da adolescência. Um feito para poucos. Num universo em que coisas sobre e para jovens geralmente nivelam o mais baixo possível, como se a adolescência fosse um constante episódio de série da CW ou um capítulo de Malhação, é fascinante observar como Claremont, McLeod, Stern e Sienkiewicz souberam retratar as luzes, trevas e tons entre um e outro dessa fase com tamanha maestria.

Ah, um último comentário:  


Pobre Rahne!!!. 


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