terça-feira, 13 de junho de 2023

Em rumo a Krakoa: "A paixão de Logan"




Efeito borboleta: "Expressão segundo a qual uma alteração mínima nas condições iniciais pode ocasionar grandes diferenças na evolução de um sistema."

Uma das coisas mais legais de revisitar a era Claremont para a confecção destes posts é poder perceber como é uma trama coesa e como os eventos se interconectam de forma suave. Admito que este era o episódio de Rumo a Krakoa que, junto com o episódio sobre a primeira incursão dos mutantes a Genosha, me deixou mais ansioso. Porque, apesar de ainda ter certo chão até o final de fato do período Claremont nos títulos mutantes, esse é o payback de tudo que ele construiu aqui, não apenas em seu período solo, mas desde a época em que co-escrevia a série com John Byrne. 

De fato, falando da minha experiência com o gibi, esse pra mim é o momento em que eu me sinto confortável para deixar a era Chris Claremont e seguir adiante aqui no "em rumo a Krakoa". Não no fim da fase, mas no simbólico momento de catarse. Principalmente se considerarmos que é mais ou menos a partir daqui que começam os choques entre o roteirista e o editorial, personificado na figura de Bob Harras, que vão forçar o autor a mudar os rumos que ele via para o gibi. Aqui é o último momento dele, puro, sem filtros, sem estar batendo cabeça com Harras ou com Liefeld, Jim Lee, e outros artistas que entrariam para a história como a primeira geração da Image, com cada vez mais poder criativo dentro da Marvel e com, por sua vez, opiniões distintas a respeito do futuro dos x-comics.

E mais longe, tematicamente, este é o ponto em que vemos o julgamento final dos X-Men e o culminar de seu sua escalada em rumo a posição não mais de superheróis, mas de líderes entre sua comunidade.

Acabemos de sair de Inferno, que por sua vez, vinha imediatamente depois dos mutantes tomarem ciência dos horrores Genoshanos. Espertamente, o time de criadores concede duas edições de respiro com os personagens andando por shoppings e indo relaxar a noite. É um raro momento de relativa tranquilidade tanto para os personagens quanto para a gente.

Passado esse período, no entanto, os golpes vem sem clemência. Primeiramente, o time perde Vampira, que é forçada a se sacrificar, atravessando o portal do destino (finalmente chegou a hora da "chekhov gun" apresentada lá atrás, no final de "The fall of mutants" ser colocada pra jogo), para derrotar um super sentinela. Depois, Longshot discretamente deixa o time. Por fim, Ororo é aparentemente morta em batalha contra a Babá e o Orphan maker. 



O gibi continuamente nos deixa com um tom de final, de conclusão. As perdas do time vem, ao mesmo tempo que vemos Donald Pierce e seus Reavers espreitando (e a coisa chega ao extremo de, no final da edição 247, vermos os vilões espionando os mutantes, enquanto eles próprios eram vigiados sorrateiramente pela Babá e seu Orphan-Maker. E isso enquanto todos eles são vigiados por nós. E em algum momento eu vou provavelmente mencionar o papel da gente, enquanto leitores, como vilões do lore dos X-Men. Caixas dentro de caixas, kemosabe. :-) Bem vindos ao pós-modernismo).

Constantemente, Psylocke é bombardeada com visões de um futuro onde todos os membros do time são massacrados pelos Reavers. Ao mesmo tempo, há a tensão a respeito do local que eles usam como base, ameaçador e cheio de aparentes segredos que impedem os heróis de se sentirem totalmente confortáveis ali.

Depois das "mortes" de Rogue e Storm e da partida de Longshot, finalmente o tal final preconizado vem. E o estranho é como, ao invés do tom grandiloquente das tragédias recentemente enfrentadas por eles, esse fim é sereno.

Psylocke e o time são trazidos por Gateway - a revelia da telepata - de volta para a base australiana. Lá, o time, seriamente desfalcado e exausto, emocional e fisicamente - são esperados pelos Reavers, que preparam um ataque definitivo.




Sentindo a presença dos inimigos, ciente das visões de futuro e do fato de que o time se encontra longe de seus dias de glória, onde poderiam fazer frente a um exército tão preparado, só resta a Elizabeth tomar a decisão pelos colegas e força-los, telepaticamente, a atravessar o portal do destino.

Há alguma resistência, mas ela não precisa ser particularmente enfática para convencer os aliados a cruzarem o portal mágico. Apesar do artefato prometer um novo começo, para efeitos práticos, não deixa de ser uma forma de morte. Eles sabem que vão ser julgados por forças cósmicas e que se considerados dignos, um futuro promissor os espera. Mas eles só tem a palavra de Roma a esse respeito.


Para todos os efeitos, aquele é um salto de fé rumo a um futuro desconhecido. Em outras palavras, os x-men estão partindo em uma jornada rumo "a um lugar melhor". Percebem a gravidade da coisa?

Com um último olhar para seus inimigos, Psylocke atravessa o portal em rumo a...??? E deixa a base para trás.

Os X-Men foram submetidos a um julgamento onde não se consideraram dignos de continuarem a batalha em prol do sonho de Xavier. De certa forma, a decisão não deixa de ser uma espécie de aposentadoria com tons de suicídio coletivo. Paralisados diante do clima de desespero crescente, só resta uma quebra total de paradigmas, mesmo que seja sem certeza dos possíveis resultados disso.

Todos ali foram julgados.

Todos? Oh, não, kemosabe. Resta um deles a ser submetido a esse processo. E se tal julgamento foi relativamente indolor para os demais membros do grupo mutante, os algozes não terão a mesma misericórdia na hora de impor juízo para James Howlett. O martelo vem em direção a Wolverine. E sem nenhuma piedade.

Parte II

Como eu já disse "n" vezes por aqui, entre todos os adversários dos X-Men durante a era Claremont, um que não pode ser desconsiderado é a própria natureza deles enquanto personagens de quadrinhos.

Os tropes típicos de super heróis NÃO são aliados dos mutantes, pelo contrário, mas barreiras, impedindo que os homo superior possam alcançar a posição de liberdade e segurança pela qual lutam, sangram e constantemente morrem. 

Façamos um breve estudo de caso aqui: Wolverine. 

Durante a recente história dos heróis, Wolverine é uma presença inconstante, pra dizer o mínimo. Por motivos extra-quadrinhos, há o fato de que é o começo de sua era de frama, onde ele ocupava o lugar de, provavelmente, personagem mais famoso da Marvel no mundo inteiro. Por causa disso, ele acabava tendo aventuras por todo título da editora, além de também ter o seu próprio, narrando suas aventuras pelas selvas e desertos americanos e canadenses, além de incursões pelo Japão e em Madripoor. 

Dentro da trama das hqs, novamente, Claremont sabia trabalhar os tropes dos quadrinhos e usa-los como um elemento orgânico. Dessa forma, ao contrário do que ocorreu a partir dos 90 e que vem até hoje, onde um mesmo personagem aparecia em 3, 4, 5 títulos ao mesmo tempo, sem grandes explicações, essas aventuras solo do mutante canadense o forçavam a deixar o time. Time esse que ele, em tese, liderava. Ou co-liderava, junto com Tempestade. 

Um dos mutantes mais experientes da equipe, não apenas por ser, tal qual Ororo, parte da segunda geração de alunos de Xavier mas também por sua idade e por todas as suas aventuras pré x-men, ele, em tese, é a pessoa ideal para servir de norte para os demais. No entanto, isso não ocorre.

Quando confrontado, ele deixa claro sua visão a respeito dos demais membros, mais jovens e inexperientes, além de mencionar também suas obrigações com outros personagens, parte de seu conjunto de ideologias e "código do guerreiro". 




Perfeito. Brilhante. Mas isso tudo ainda significa que o time, formado em sua maioria por personagens com pouca experiência de batalha e em uma condição de símbolos e protetores de uma raça inteira, vai ter que se virar sozinho. 

Podemos brisar aqui sobre aquele sempre difícil momento de mudança de liderança geracional dentro de grupos. A hora que os mais velhos precisam passar a tocha pra geração seguinte. Inevitável mas ainda assim assustador. Ninguém quer admitir que chegou o dia de pendurar as chuteiras e que é o momento de deixar sangue novo assumir a linha de frente (não é pra menos que essa fase da hq pós-Inferno abre com a estréia da Jubileu). Principalmente um personagem que, para todos os efeitos, é imortal. Ou seja, alheio aos efeitos mais óbvios da passagem de tempo.

Pensemos em outro personagem visto como durão e edgy: Dredd. Dredd é um juíz em um futuro distópico onde esses agentes do estado, em um futuro onde a Inglaterra se tornou uma nação-policial fascista, tem função de juízes, juris e executores. Dredd é um personagem com um profundo código moral e de conduta. E ainda assim, sua retidão moral não faz dele alguém melhor, mas o mais perfeito agente desse estado fascista.

Morais e valores éticos não necessariamente são libertadores. Eles podem ser também correntes, grilhões te prendendo e te limitando. 

É o caso de Logan. Quando seus colegas de equipe mais precisaram dele, ele simplesmente não estava lá. E isso lhes custou tudo.


Quando a justiça "divina" veio para os líderes mutantes, ela foi cruel. Magneto foi julgado previamente, na clássica edição 200 de UXM, mas sua pena "real" foi substituir Xavier e tentar liderar a nação mutante em direção a um sonho que é o extremo oposto do que ele próprio acredita.

Ciclope sofreu toda sorte de miséria em Inferno.

Tempestade foi morta, supostamente, contra a Babá.

Indo mais além, o próprio Charles Xavier perdeu a própria vida, mais de uma vez. Seu sonho foi estraçalhado, suas falhas, trazidas a público (Legion, os Morlocks, a Fenix Negra...). Seus protegidos, massacrados na guerra que ele mesmo criou. E outras punições viriam para atormentar Charles, nos dias vindouros (Fall of X tá aí pra não me deixar mentir).

Só restava um para ser punido. E como a capa dessa edição não sutilmente deixa claro, a hora de sua punição chegou.

Parte III

A edição 251 abre como um gigantesco "previously on uncanny x-men" mas onde Logan (e a gente) testemunha juntos o fim do time principal dos filhos do prof. X. 


Gateway, inclemente, expõe para o canadense o fim do grupo ao cruzar pelo portal do destino. 

O título "Fever dream" é preciso: deixado ao sol, crucificado e constantemente torturado, Logan foi inquestionavelmente derrotado pelos Reavers. As emocionalmente massacrantes quase 30 páginas dessa edição são o mutante passando pelas fases do luto até chegar ao nível da aceitação, onde finalmente vai começar um rascunho de ofensiva contra seus inimigos.

Mas não sem antes ser confrontado por seus pecados passados. 




O simbolismo aqui é tudo menos sutil, a começar com a crucificação de Logan. Com a diferença de que Jesus, em tese, pagou por pecados que não eram dele, exceto como representante da raça humana. Já Wolverine, esse sim tem coisa pra expiar.

É preciso lembrar que esses eventos, da morte de Vampira até o fim dos X-Men, ocorrem de forma muito rápida dentro da trama. É através do sonho febril que ele tem, fruto dos poderes de Gateway, que ele descobre, por exemplo, que Ororo morreu.

Além disso, observemos seus adversários. Um trope - e já falamos aqui sobre como eles são também barreiras a serem superadas pelos heróis - comum em histórias de super heróis é aquilo de "deixar o vilão fugir para lutar outro dia". Outro: ninguém se importa com os minions do final boss que são deixados mortos ou gravemente feridos no caminho.


Aqui, ambos os tropes vão se combinar para cobrar seu devido quinhão do mutante de adamantium. É o motivo pelo qual menciono o efeito borboleta no começo desse texto. Atos e consequências. Três membros do time de Reavers são soldados do Clube do Inferno que tiveram o azar de serem deixados para morrer na primeira vez que os mutantes enfrentaram os vilões burgueses. 

Três (número cabalístico?) também é a quantidade de membros do time original dos Reavers que fugiram e não foram forçados a passar pelo portal do destino na primeira vez que os ciborgues cruzaram o caminho dos protagonistas. E que agora, voltam para uma revanche. O ultimo trio importante aqui é formado por Donald Pierce, o líder do grupo, que foi gravemente ferido por Logan no passado. Lady Lethal, filha de um inimigo morto pelo canadense. E por fim, nas sombras, mas não menos importante, Spiral, responsável por transformar a maioria dos membros do grupo - incluindo o próprio Pierce - em ciborgues super poderosos. 



Novamente, tropes típicos de aventuras dos quadrinhos, subvertidos e utilizados dentro da trama, como limitadores dos heróis. Quando os inimigos passados de Logan se reúnem e voltam, eles retornam muito mais fortes e capazes de trazer os heróis abaixo.

A arte de Marc Silvestri durante essa edição é algo espetacular, conferindo a devida gravitas aos eventos ali narrados. Não apenas na imagem mais famosa dessa edição e uma das mais famosas de toda a história dos personagens que é a capa, mas em momentos muito particulares como a página de abertura, ou a forma como a morte dos x-men é mostrada nos devaneios febris de Logan. Tudo isso em um crescendo até a tensão atingir seu pico com Wolverine se libertando da cruz em meio a tormenta que se aproxima. 





Enfim, não foi preciso muito tempo para quebrar o principal time gene-x do planeta. E o que isso diz a respeito do grupo? E principalmente, o que isso diz sobre seus líderes?

Esta é uma das várias mortes do sonho de Xavier, onde ele vai "mutar" para algo diferente. Não a primeira e nem a última delas. 

E toda morte é traumática, seja ela literal ou simbólica. 

Mas não coincidentemente, esse é o time que teve como um de seus membros a Fênix. "Evolua ou morra". 

É hora dos X-Men renascerem das cinzas.

Provavelmente uma das minhas edições favoritas de UXM e um dos pontos de virada da série como um todo. Considerando toda a jornada até aqui e os rumos que ela ainda virá a tomar, é um milagre que esse gibi exista da forma como foi publicado. Mas não é pra menos que a era Claremont é um dos nortes que todos os roteiristas depois dele usam como molde-mestre no processo de redefinir os personagens e criar algo novo.

E algo novo e profundamente ousado foi esse período que conhecemos como "the outback era". Se não por nada, esses foram os MEUS X-Men, a era que eu pulei pro título e meu primeiro contato com os personagens, de fato. Assim como foi para uma geração inteira. 

Um dos melhores momentos da longa e rica história mutante. E que termina aqui. 

Outras reflexões

- Outro efeito borboleta: se Jubileu não tivesse ido escondida até a base dos mutantes, não haveria ninguém para ajudar o canadense após este fugir da cruz, depois de dias e mais dias de tortura e, provavelmente, ele terminaria morto pelos Reavers.

- Eu mencionei como a história não é simpática com os líderes mutantes. Vou me adiantar aqui: isso não perdoa nem mesmo Psylocke que, após a morte de Ororo, acabou tomando pra si a função de líder do grupo. Se o portal do destino é gentil com alguns dos x-men (Dazzler e Colossus) e menos com outros (Havok, merecidamente), ele é particularmente sádico com a britânica, que termina caindo nas mãos do Mandarim, arqui-inimigo do Homem de Ferro, e com sua mente presa em um corpo estranho (que seria sua morada por décadas, até a era Krakoa separar Betsy da Kwannon, a dona original do corpo que ela tomou) e sendo usada como assassina em seu exército. 

- Ignorei solenemente as duas edições passadas na Terra Selvagem porque é uma historia menor. Mas preciso mencionar que tem algo profundamente satisfatório em ver Alex Summers se provando mais uma vez como um dos personagens mais incompetentes que já passaram pelas fileiras mutantes, se enfiando em uma missão de resgate e terminando tendo que ser resgatado pela mesma pessoa que ele pretendia salvar. Classic Havok. 

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É isso crianças.

Existe uma parte 2 desse texto, focado principalmente nos vilões dos X-Men durante esse período, mas, por hora, não sei se ainda passo por algum gibi da era Claremont ou se vou para águas ainda mais estranhas (e algumas até apócrifas, se me permitem o pequeno spoiler) e deixo essa época para revisitar futuramente.

Anyway, vocês vão descobrir isso logo. 

Hasta.

A seguir: ???

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