quinta-feira, 6 de julho de 2023

Em Rumo a Krakoa: X-men, body horror e a inveja do super humano...


Eu venho já há algum tempo aqui no blog falando sobre os X-men, seus tropes e grandes temas. Todo o tecido conjuntivo dos seus quadrinhos e aqueles aspectos que precisam de um olhar mais debruçado para que possam vir a tona. Aqueles detalhes que podem passar despercebido e que só se revelam lá pela terceira ou quarta revisita.

Dessa mesma forma, eu queria voltar o nosso olhar não mais para os heróis e protagonistas dessa série, mas para seus oponentes. "Todo herói é tão bom quanto sua galeria de vilões", alguns dizem. Então, nada mais natural que se concentrar neles e tentar entender o que os oponentes dos mutantes tem em comum e o que podemos perceber a partir desse olhar sobre tais antagonistas. 

O curioso, ao fazer isso, é notar que isso, por sua vez, acrescenta também novas camadas nos heróis, não apenas pelo contraste com tais vilões, mas também pelos elementos que eles tem em comum. 

Lembremos que nos quadrinhos, existem dois grandes tipos de vilões. O primeiro, é o que é a completa oposição ao herói. O herói é forte? O vilão então é inteligente. O herói é rápido? Seu inimigo é devagar. O herói é aquático? Provavelmente seu nêmesis é representado pelo elemento do fogo. 

O segundo tipo de vilão é aquele que é uma versão distorcida do herói. Não sua negação, mas uma versão deste que fez escolhas diferentes. Superman é um filho de Krypton que representa a esperança. Doomsday é um filho de Krypton que representa a morte. Batman é a epitome da perfeição física e luta por justiça. Bane é a epítome da perfeição física e luta por poder. O Flash é um herói velocista. O Flash Reverso é um vilão velocista. 

Me valendo desses exemplos, apliquemos ambas as situações aos personagens que são foco deste texto. Comecemos pela segunda: os X-men são mutantes "do bem". A Brotherhood of evil mutants é um grupo de mutantes "do mal". Charles Xavier é um telepata que usa seus poderes com responsabilidade (supostamente). Amahl Farouk é um telepata que usa seus poderes para dominar corpos e mentes alheios. 

No entanto, vamos pensar um pouco no caso do arquétipo do vilão que é a negação do herói. Eu sinto que não dá pra pensar nesse aspecto dos X-Men sem falar um pouco de suas origens, como forma de estabelecer as bases do ponto que eu pretendo defender aqui.


Quando Uncanny X-Men começa, em 1963, nosso primeiríssimo contato com aquele universo de personagens vem através do prof. X, sozinho, prestes a recepcionar sua primeira geração de estudantes. 

Em seus pensamentos, vemos um pouco das origens do próprio conceito de Homo Superior que, naquele primeiro instante, Xavier acredita serem fruto dos testes nucleares. O pai de Charles era um cientista envolvido na fabricação de armas nucleares e, supostamente, a proximidade com tais elementos radiativos teria alterado sua estrutura genética e permitido que o dna do professor viesse com o gene-x. 


Posteriormente, isso seria retconado e o gene-x seria algo arbitrário, sem nenhum ponto de origem histórico (até porque os primeiros mutantes tem milhares de anos de idade se considerarmos que Selene e En Sabah Nur são membros da raça). Ou seja: o que inicialmente aparentava ser um exemplo de atomic horror (o gênero de horror em que a energia nuclear, um conceito ainda novo para o mundo naquele momento histórico, era a fonte de monstruosidades e deformações de toda sorte) na verdade, muito rapidamente, se tornaria um exemplo de body horror.

A definição mais simples de body horror determina que o gênero fala de horror que advêm de alterações, espontâneas ou provocadas, no corpo humano, gerando deformidades e consequências imprevistas. Normalmente, há a húbris de se alterar aspectos do corpo humano visando aperfeiçoamento de algum tipo e, como consequência de se tentar alterar leis fundamentais da natureza, vem a punição na forma de mutações imprevistas e frequentemente, monstruosas. O primeiro exemplar de obra do gênero, segundo especialistas, é o Frankenstein da Mary Shelley. De lá pra cá, tivemos vários livros e filmes evoluindo o gênero. Dos lobisomens e do homem invisível, passando pelos filmes de sci-fi dos anos 50 e 60 aos filmes de David Cronemberg, Eraserhead e obras recentes como Titan, Slither, Centopeia humana, e Tusk, entre outros. 

Você poderia afirmar que fundamentalmente, os X-men sempre foram um body horror, desde a primeira cena em que vemos Scott Summers afirmar a dependência de seus óculos, Warren Worthington tendo que esconder suas asas ou Hank Mccoy constrangido por seus pés simiescos. 

Mas, como muito bem nos lembra Raphael Salimena em uma de suas tiras, alguns mutantes são mais mutantes que outros. 


Nestas primeiras edições, o exemplar mais significativo de body horror surge no lore mutante na primeira aparição de Blob. Eu sei, é complicado pensar isso em termos contemporâneos, mas nos anos 60 eles não tinham muitas preocupações a respeito de gordofobia e frequentemente o personagem é apontado como uma monstruosidade ou uma aberração (não coincidentemente ele é introduzido na trama como parte de uma caravana circense). 


A "força" de Blob vem exatamente da súbita percepção de que aquilo que o definia como um monstro aos olhos alheios na verdade era uma fonte de poder. Por mais que o personagem tenha motivações egoístas, você não consegue não sentir certa justiça no ódio que ele tem por aqueles que lhe apontavam o dedo e o recriminavam como monstro. 


Esse é, inclusive, um elemento estrutural de histórias de super heróis. Aquilo que é visto como algo monstruoso, o elemento que é fonte de alteridade e que, portanto, é destacado como algo vil e condenável, na verdade é algo especial e mágico. Meio que aquilo do patinho feio, que na verdade, é um cisne. 

Os membros originais da Brotherhood of evil mutants também tem sua cota de traumas físicos. Desde Pietro e Wanda, malvistos pelas origens ciganas, passando por Grouxo e o Mestre mental, fisicamente repugnantes. 

Voltando ao body horror como metáfora: em um vídeo recente do canal do prof. Phillipe Leão, ele, por sua vez, reage a um vídeo do canal da Carissa Vieira onde ela fala sobre body horror e os exemplos históricos do uso do corpo da mulher como fonte do horror. Resumindo bastante o que os dois dizem: o corpo feminino é transformado no objeto do próprio horror. O que gera empatia e repulsa. 

Por sofrer as alterações decorrentes da gravidez, o corpo feminino já naturalmente gera certa fascinação e asco. Ao mesmo tempo, é a mulher que controla o sexo, é ela que escolhe o parceiro e que determina o consentimento. Isso gera inveja masculina, a tal "ameaça da castração". No body horror feminino, o elemento aflitivo da coisa vem do fato da personagem não ter autonomia sobre o próprio corpo, onde ele é uma "coisa", usada, fetichizada ocasionalmente e deformada, não raramente como consequência das ações de personagens masculinos.

Em Teeth, há o caso de uma garota que literalmente tem uma vagina com dentes. No já mencionado Titan, uma garota engravida de um carro. E para o olhar masculino desacostumado, as alterações físicas que a personagem sofre durante seu período de gestação não são muito mais estranhas e alienígenas do que as que uma mulher sofre em um processo de gravidez normal. Em Martyrs, o meio de alcançar o sagrado é expondo o corpo de jovens garotas a uma brutal (sério, BRUTAL) tortura.

O corpo feminino é ao mesmo tempo, fonte de repulsa, curiosidade e desejo. 

Agora, voltemos aos X-men. O que os torna "monstruosos" a ponto de coletivamente causarem medo social, feito literal nas páginas da hq por meio de seus poderes e mutações?

Qual o elemento em comum entre todos eles?

Simples: eles são JOVENS. Estamos falando da década de 60, onde temos a primeira geração do pós guerra chegando a idade adulta e pedindo por mudanças sociais. Feministas, grupos lgbt, os panteras negras. Malcolm X e Luther King, para ficar em nomes (incorretamente, é preciso dizer) associados aos mutantes. 

Os mais velhos sempre tiveram medo dos mais jovens, mas agora essa juventude foi transformada em arma e combustível para pedir por mudanças sociais significativas. Se o body horror feminista é sobre a falta de poder das mulheres sobre seus próprios corpos, aqui, o lance é como o potencial real e transformador desses jovens é frequentemente podado para que o status quo atual se mantenha intocado. 

Do mesmíssimo modo que, no mundo real, governos e burgueses frequentemente usam seus poderes e o maquinário estatal que tem sob seu controle para calar vozes e focos de dissenção ainda em seus estágios mais larvais.

Eu já vi gente condenando o uso de mutantes, aliens e tals como metáforas de minorias sociais, e eu entendo a origem de tais críticas. Mas é preciso lembrar um detalhe importante: pra um homem velho, branco, hétero, cristão, rico e conservador, um nome como Fred Hampton ou Malcolm X surgindo como líder social É tão perigoso quando um jovem que pode partir edifícios ao meio com raios surgindo de seus olhos. 


Mudanças sociais significativas, como redistribuição de renda, reforma agrária e outras, são impensáveis sem a possibilidade de se pegar em armas. Ou vocês acham que, se amanhã o país se tornar socialista e formos começar redistribuição de terras ociosas para criação de pequenas fazendas, os grandes pecuaristas e especuladores imobiliários vão simplesmente concordar e ceder tais espaços pra quem precisa? Não, kemosabe. 

Eles vão se armar. Ou seja, reformas sociais, pro tipo de parasita que vive se alimentando e se fortalecendo a partir dos aspectos mais grotescos do capitalismo, podem representar MORTE LITERAL, de fato. Ou pelo menos, uma morte simbólica de sua posição de domínio absoluto. E mesmo isso é perda demais para eles. 

Lembremos que nesse primeiro momento, mesmo os adultos que guiam a trama, não são tão mais velhos assim. O prof. Xavier mal deve ter chegado aos 30. E considerando, ainda que isso tenha sido um retcon introduzido anos depois, que Magneto apresentou seus poderes nos últimos dias da segunda guerra, já durante o período da "solução final", e que adolescentes mutantes demonstram seus poderes lá pelos 11, 12 anos, parece razoável concluir que ele tenha nascido mais ou menos em 33 ou 34. Ou seja, nesse momento em que ele enfrenta os X-Men pela primeira vez, ele deve ter 30 e poucos anos, no máximo. E mesmo ele e Charles são frutos direto de eventos relacionados a segunda guerra, então nada mais natural que seja estes "novos homens" que venham a guiar as mentes da primeira grande geração de gene-x que viriam a surgir nos anos seguintes. 


Jovens querem o poder e mudar o status quo. Com suas vozes e mentes. Com suas mãos e habilidades. 

O que Lee e Kirby fazem não é nada mais do que tornar literal o mal estar social que a elite conservadora tinha diante das novas gerações. 

So, voltando ao tópico deste texto, ou seja, falando dos vilões dos X-men, temos a Irmandade. Posteriormente, os Sentinelas. Criados por um cientista chamado Bolivar Trask.

Trask. Um anagrama para Stark. O homem que criou o Homem de Ferro. 

Os sentinelas nada mais são do que a humanidade externalizando seu preconceito e o medo do futuro através de homens mecânicos cuja principal função é deter tal futuro de se tornar real e impedir que os mutantes herdem a terra. 


Robôs são frequentemente utilizados na ficção como metáforas para o fascismo, para a padronização mental e uniformização de pensamento típicas de regimes fascistas, assim como também do processo de desumanização tipica do capitalismo. O robô é o homem perfeito sob a perspectiva corporativa: sem vontade própria, medos ou ansiedades. Sem necessidade de descansar, perpetuamente focado em sua programação e em produzir resultados. 24 horas por dia. E, ao mesmo tempo, um simbolo vivo da humanidade em suas imperfeições. O robô só precisa existir pra suprir as carências tipicas da corporeidade e das "imperfeições" humanas. 

Eu poderia me focar em mais vilões desse primeiro período, mas acho mais interessante avançarmos até a fase que é de fato o foco dos textos aqui do blog: o período solo do Claremont nos roteiros, depois da sua aclamada fase em que co-escrevia os gibis mutantes com o também desenhista principal da série, John Byrne. 

Nesse período de co-autoria, Byrne e Claremont estabeleceriam dois grupos de vilões que retornariam futuramente, na era solo de Claremont e seriam brilhantemente utilizados: o Hellfire Club e a Ninhada. 

Enquanto o Clube do inferno desempenhava esse papel de serem "os X-men do mal", usando seus poderes para guiar os rumos da humanidade de forma não ética, uma espécia de brand ultra-liberal da Escola Xavier, a Ninhada (ou The Brood), tal qual os sentinelas, eram sobre eliminação da alteridade em prol de um sonho de uniformidade, de pensamento de colméia. 


Enquanto a ninhada e sua proximidade com os xenomorfos do filme de Ridley Scott retomam o elemento do body horror no grotesco processo dessa raça alienígena de reprodução e assimilação dos corpos e identidades humanas, quase uma espécie de estupro ao mesmo tempo físico, mental e "espiritual", também é dessa época que temos Proteus, uma criatura "conceitual", sem um corpo físico carnal e que sobrevive parasitando corpos alheios. 


Já sozinho escrevendo os x-comics, bem no começo desse período, temos Claremont narrando o primeiro contato dos protagonistas com os Morlocks. 

Tais mutantes, inicialmente antagonistas dos X-men, também são "vilões" por contraste. Enquanto os alunos de Charles tem uma fortuna a sua disposição, os Morlocks vivem na miséria. Enquanto os alunos da Xavier's School podem se passar por humanos, seja pela natureza discreta de suas mutações, seja pelos privilégios de ter acesso a fortuna do Professor (como no caso de Kurt que tinha sempre a mão seu indutor de imagens), os Morlocks não. Suas mutações eram gráficas demais para poderem ser discretos e, vitimas do ódio dos humanos, só restou a eles se voltarem para as sombras e viverem nos esgotos. 

Em sua primeira aparição, os Morlocks raptam Warren, o anjo. Um mutante bonito, rico e que tinha privilégios a ponto de poder assumir sua identidade mutante publicamente sem grandes consequências. Lembremos que, sem o arcabouço do estado a seu favor, isso não era uma opção viável pra nenhum mutante. Não é coincidência que os outros casos mais famosos de mutantes com identidades publicamente conhecidas eram Pietro, Wanda e Hank. Em todos os casos, gene-x positivos que eram tolerados por terem se "alistado" e decidido trabalhar para o tio Sam junto com sua força policial na comunidade super heróica, os Vingadores. "Don't ask, don't tell" e/ou  "Don't say mutant", imagino. 

É meio que um consenso entre o fandom dos X-men que seria IMENSAMENTE difícil que Xavier não soubesse da existência de alguns dos Morlocks. Então, é razoável imaginar que o prof. tenha CONSCIENTEMENTE decidido não alistar nenhum deles por eles não terem "a cara ideal" para serem seus símbolos, seus porta-vozes, os embaixadores da raça mutante.

Lembremos que é meio que outro consenso entre o fandom que Xavier é um assimilacionista. Ou seja, o tal sonho mutante do professor é que os gene-x positivos sejam não-confrontacionais e quietos o suficiente para poderem passar por humanos e serem "tolerados" por estes. 

Nenhum dos 5 membros originais representa qualquer risco, fisicamente falando. Diabos, são todos brancos. Mesmo Hank e Scott não são ameaçadores, fisicamente.


Agora, compare isso com a própria Callisto. Ou Masque, mutante com as habilidades de mudar as feições alheias com a mesma facilidade de alguém manipulando argila. Mas que, ironicamente, é deformado e incapaz de usar os seus poderes no próprio rosto. 

Para os Morlocks, mais do que para os X-men, o corpo é uma prisão (mas notem: apenas quando esses corpos e seus poderes são vistos dessa forma sob a perspectiva humana. É sempre o olhar externo que coisifica, que deforma, de fato, esses indivíduos). E eles merecidamente se ressentem dos discípulos do prof. X. E eles querem um pouco do que estes tem e que eles só tem porque eles se encaixam nos critérios estabelecidos pelo seu mentor. 

Quando, a seguir, os mutantes entram em novo confronto com o Clube do inferno, temos o elemento de classe ainda mais aos olhos, como na clássica capa da edição 208.


Contraponham o estilo quatrocentão, clássico e, sendo franco, tipicamente cafona das classes mais abastadas, representada pelo Clube do Inferno com o dos X-men, mais urgente, punk, jovem e sem concessões. 

O Hellfire Club sempre simbolizou a tolerância quieta dentro de um contexto capitalista. De certa forma, o grupo É a personificação do sonho de Charles. Mutantes que são tolerados pelos homo sapiens por terem o melhor super poder a seu favor: a aprovação de homens velhos ricos. Advinda de muito dinheiro, claro.

Quando estes, no entanto, são confrontados por Nimrod, a evolução dos sentinelas que veio do futuro para detê-los (é bem mais complicado que isso, acreditem), este não faz distinções. Porque é isso que a lógica fria do capitalismo patriarcal faz. Ela pode permitir pequenas conquistas, mas quando a demanda que grupos minoritários fazem é considerada excessiva ou simplesmente estes se tornam impossíveis de serem ignorados, é hora de lembra-los de seu lugar. Existem coisas que mesmo dinheiro e berço não conseguem comprar. 

Isso posto, chegamos no momento em que podemos falar dos 3 grandes vilões desse período de Claremont nos roteiros e tentar entender como eles funcionam quando colocados nesse perfil estabelecido nos parágrafos anteriores: São eles Donald Pierce e os Reavers, Nathaniel Essex e seus Carrascos e Amahl Farouk, o Rei das Sombras.



De certa forma, você poderia agrupar esses 3 grandes antagonistas dentro do macrotema do body horror sobre o qual falamos aqui (e dá inclusive pra adicionar ao grupo o Mojo, apesar dele ser um vilão do Longshot mais do que um antagonista do time-X, pelo menos nesse primeiro momento). 

Essex, o Sr. Sinistro, é um eugenista que se tornou mutante a partir de experimentos que fez nele próprio. A partir daí, ele vem se mantendo imortal por meio de manipulação genética e clonagem. 

Pierce, por sua vez, não é um mutante, mas um humano "aumentado", um ciborgue, com alterações mecânicas em quase 100% do seu corpo. 

Por fim, Farouk, o Shadow King, é um parasita telepático sem um corpo físico, que vive forçando sua presença em corpos alheios (é, em alguns casos, a metáfora é mais sutil que em outros). 

Em comum entre os 3, temos o fato deles serem todos quase imortais mas inumanos em aspectos morais, quase como se o preço a se pagar por sua super humanidade seria perder tudo aquilo que temos de mais nobre e empático. 

Da mesma forma, os Reavers de Pierce e os Marauders de Essex tem sua vida aumentada, seja por clonagem ou cibernética e transumanismo, mas a ponto de se tornarem criaturas monstruosas e sem qualquer traço de humanidade (não quero me perder em devaneios aqui, mas poderíamos nos perguntar se eles eram pessoas cruéis que aproveitaram suas novas habilidades para demolir qualquer freio social que eles tivessem ou se é a condição pós humana deles que lhes deixou mais bestiais. Also: Os X-Men continuam com uma base moral forte mesmo depois de terem vencido a morte, na atual era de Krakoa. E existem outros imortais no universo Marvel que são heróicos em essência então....??).

A principio, parecia que os Carniceiros eram criações de laboratório de Sinistro e só recentemente, já na fase de Krakoa, tivemos outras camadas dos personagens sendo trazidas a tona, na figura de Greycrow, anteriormente conhecido como o Caçador de escalpos (Scalphunter). 

Também recentemente foi estabelecido que Sinister meio que era o Hyde (de "o médico e o monstro") da terra 616, na verdade o lado mais sombrio e "sinistro" do Nathaniel Essex original em suas primeiras "aparições públicas".

Por fim, Farouk tem o mesmo efeito corruptor, dominando as mentes das pessoas próximas e trazendo os piores aspectos delas a tona. E sempre com a nuance de que isso é contra a vontade destas mas.... não exatamente. Farouk não apenas força as pessoas a se tornarem destrutivas, mas aflora o lado sombrio que todos temos e a tal ponto que elas acabam não conseguindo resistir a seus instintos mais negativos. Há sim um elemento de perda do auto-controle, ainda que existam nuances ali. Mas o resultado final é o mesmo. 

Perda de autonomia, abandono da humanidade e barbárie. 

Enquanto Sinistro é responsável pelo Massacre de mutantes e pelos eventos que vão desencadear em Inferno (o original, dos anos 90) e Pierce, por sua vez, vai causar aos X-men a derrota mais significativa de suas vidas, a ponto de a única saída para os heróis ser atravessar o Portal do destino -  o que poderia ter os resultados mais imprevistos - , Farouk domina os heróis a ponto de quase conseguir concretizar seus planos de dominação mundial. 

É curioso notar que, nos 3 casos, falamos de personagens que não são Homo Superior exatamente, mas conseguiram seus poderes - e, no caso de dois deles, a condição de mutantes de fato - através de manipulação física, deles e de terceiros (no caso destes, quase que em 100% dos casos, sem permissão ou, pelo menos, sem total consciência das consequências reais do processo). 

Eu falei dos vilões dos X-Men mas eu convenientemente deixei um deles de fora. Um dos piores.

E eu me refiro a você, meu caro. E eu. As pessoas lendo esse texto. E os leitores dos X-men.  Eu me refiro aos malditos HUMANOS. 

Como eu disse no começo, uma parte substancial do que faz o body horror fascinante é o lance da húbris, da iniciativa de alteração corporal vir por parte de indivíduos com o conhecimento cientifico de como fazê-lo, de como alterar tais corpos, mas sem a inteligência o suficiente pra ter consciência do que pode dar errado no processo. Ou a ausência de um centro moral a ponto de se importar com tais consequências. 

Eu mencionei Nimrod, um sentinela com consciência humana que, por sua vez, ao atravessar o mesmo portal do destino mencionado acima, "evoluiria" para a forma de Bastion, sentinela humanoide. Quase humano, mas não exatamente, um gigantesco "uncanny valley" ambulante. 


Percebam como partimos do humano (Trask) para o mecânico (Sentinelas) chegando a algo que é um produto de ambos (Bastion). Ou o mesmo pode ser dito de Donald Pierce. Ou de Essex, ainda que o caminho aqui tenha sido diferente.

Eu falei dessa mistura de cobiça, desejo de controle e inveja lá em cima como alguns dos motores do body horror e eles se fazem presentes aqui. Uma parte substancial do body horror nos X-men vem de humanos tentando usar dinheiro e tecnologia para conseguirem uma fração daquilo que faz as pessoas-X especiais. Enquanto o body horror no caso dos gene-x não é uma escolha, mas algo determinado geneticamente, seus adversários se destacam por OPTAR por tais manipulações corporais.

A evolução dos sentinelas chegando a Bastion ou Pierce perpassa também por um grupo de vilões de New X-Men, agora na fase de Grant Morrison escrevendo e vários nomes nos desenhos, entre eles Frank Quitely, Igor Kordey, Marc Silvestri e Phil Jimenez.

Neste run de histórias, uma nova ameaça surge na forma dos U-Men, um grupo de pessoas que captura e disseca mutantes para vender suas partes para que homo sapiens normais (e ricos, sempre válido lembrar #eattherich) possam tê-las implantadas em seus corpos. A inveja do outro aqui ganha ares ainda mais macabros. 







Quando vemos o resultado de tais operações, é sempre algo grotesco, errado, fisicamente repulsivo. O processo de comodificação supremo: o corpo alheio transformado em coisa que você compra e assimila (alguns poderiam dizer que essa é uma definição perfeita do capitalismo em si).

Não que forças externas roubando a autonomia dos X-Men sobre seus próprios corpos seja um conceito novo para eles: desde a força Fenix possuindo Jean Grey, passando pelos nano sentinelas e o coletivo Sublime, chegando ao Dia M, onde Wanda Maximoff eliminou os poderes de mais de 95% da nação mutante.

Já mencionei aqui antes os eventos de Inferno (de 2022) como uma quebra de paradigma dentro do universo Marvel, já que estabelece que no futuro, existirá uma guerra entre mutantes e máquinas pelo domínio da Terra e ambas as raças se encontram em situação de mútuo extermínio nessa luta por dominância: os Homo Superior não podem herdar a terra por causa da ação de Nimrod e das máquinas e vice versa (também já mencionei isso aqui antes, mas eu gosto como este novo fato coloca todo o universo Marvel sob novas cores, desde suas origens com o Tocha Humana, uma forma de A.I. ele próprio, como a pedra fundamental da Terra 616). 

Nesse aspecto, a verdadeira guerra por dominância é entre o orgânico e o sintético, ou o natural e o engenhado. Ou, como as gêmeas cuckoo afirmam em dado momento, a verdadeira e unica guerra é entre In vs Out. 

O artigo genuíno vs os wannabes. Os trend setters vs os trend whores. Ação e reação. Revolução e Contra-revolução. Progresso e backlash. 

Morrison, voltando pra New X-men, não é nem discreto. U-Men? YOU-Men? Porque, afinal, o sistema percebeu que matar líderes sociais pode ser um tiro no pé, já que você pode acabar criando mártires. Muito mais eficiente é comprá-los, assimilar sua ideologia e torná-la parte do sistema.  Esquartejar o que pode ser utilizado e comercializado dela e ignorar o resto (o punk foi de um gênero fundamentalmente anti-establishment para algo mercantilizado). Independente do resultado ser um Frankenstein apodrecido, uma colcha de retalhos bizarra e sem qualquer relação real com o artigo genuíno que lhe deu origem. 


O Projeto Orchis, os grande antagonistas da atual fase dos x-gibis, é a resposta final da humanidade contra as demais espécies na guerra por dominância. 

Ao mesmo tempo, fora dos gibis, você vê uma parte do fandom pedindo pelo fim da era de Krakoa e querendo os mutantes de volta na condição de heróis temidos e odiados, bla bla bla. Nem todo hater da atual fase é um cretino preconceituoso que tá puto porque percebeu que X-men nunca foi sobre ele, mas sobre o menino preto que ele chama de "m*caco", sobre a menina pra quem ele assobia de forma nada discreta na rua ou sobre o menino que ele chama de "veadinh*" porque tá de cabelo preso.

Nem todo.

Mas um monte deles é. Um grande exército de U-Men, que lê o gibi, pega a parte que lhes interessa das tramas e ignora todo o subtexto restante. 

Inveja é o combustível do body horror. Inveja do corpo perfeito. Imortal. Mais rápido. Mais apto para certas funções.

Já preconceito, por sua vez, é sobre cobiça e poder. Sobre o que eu quero ter e não posso. E que, portanto, também não quero que ninguém mais tenha. 

O homem branco, rico, cristão e com mais auto-estima do que deveria ter de fato roubou o poder para si próprio e vive com medo de quem quer que queira se sentar na mesa e queira uma parte do banquete pra si e seus iguais. 

E ele não é discreto a esse respeito. Dentro E fora dos gibis.

Mas novamente, nem tudo você consegue comprar com dinheiro. E esse é um dos aspectos fascinantes da evolução: ela vem de onde menos se espera e sem aviso. 

Os X-Men perceberam isso dentro dos gibis e formaram uma nação-estado pra si, finalmente atingindo todo o potencial, ainda que sob constante ataque e pressão, tendo que manter o que conquistaram com muito sangue, suor e lágrimas.

Aqui do lado de fora, tentamos conquistar um lugar na mesa. Um lugar que nos foi negado por causa de classe, raça, gênero e etnia.

O patriarcado ouve e se pergunta "por quem os sinos dobram?"

Um mar sem fim de vozes de todas as cores, classes sociais e gêneros, ciente sobre o próprio potencial, responde de volta "for you, man"

Por fim, Phillipe, no vídeo mencionado acima, cita que existem formas como o drama lida com a ameaça de castração em filmes femininos de body horror e uma delas é tornar a figura feminina, esse ser "ameaçador e ambíguo", inofensivo. 

Acredito que possamos estender essa idéia para obras do gênero que usam o horror para falar sobre outros tipos de corpos que também representam, para os poderes reinantes, ameaça a sua hegemonia. 

Eu mencionei o punk acima em sua trajetória, de algo anti-sistema para algo que é parte dele (existe um gênero comercial cujo nome é literalmente pop-punk, uma contradição em si própria). O mesmo viria, alguns anos depois da saída de Claremont do título, a acontecer com os mutantes. Eu poderia me debruçar sobre outros exemplos de oponentes dos alunos de Xavier, desde a Falange até a Children of Vault, que também são sobre alterações corporais e perda da autonomia. E não se enganem, eu PRETENDO falar deles no futuro. Mas se vamos falar de eventos traumáticos na história dos personagens e, ao mesmo tempo, nos manter no tema levantado neste texto, só tem um lugar que pode servir, de forma apropriada, como nossa próxima parada.

No próximo episódio de "Em rumo a krakoa", vamos dar um salto temporal (mas depois a gente volta, não se preocupem. Ainda tenho que falar de NXM do Morrison. Até porque seria no mínimo negligente falar de X-men, body horror e não mencionar o run que deu ao mundo personagens como Beak, Angel Salvadore, Ernst e Glob) e vamos falar de quando a Marvel editorialmente decidiu que era hora de castrar a raça mutante quase inteira porque, afinal, não havia dinheiro a ser feito ali. 

Um dos momentos mais sombrios da história dos X-men (dentro e fora das hqs) e um dos eventos mais fascinantes da história dos quadrinhos (pelos motivos errados, valido lembrar).

A seguir: 

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