quinta-feira, 23 de maio de 2019

Doom Patrol s01e13: "Flex Patrol" - "Who's Flex Mentallo?"


Tem algo muito apropriado no fato de estar escrevendo o texto sobre "Flex Patrol" alguns minutos depois de ter visto o trailer do filme novo do Tarantino, "Once upon a time in hollywood". Digo isso pq vi alguns textos e vídeos comentando sobre o fato de Sharon Tate ser uma das personagens do longa. Pelo tom da obra, pelo que ela parece representar, acho seguro dizer que a noite em que a família Manson faz sua trágica visita à casa de Polanski, vai ser o clímax emocional do longa. Meu ponto aqui: Tate muito provavelmente vai representar o espírito vivo do sonho dos anos 60 e sua subsequente morte, o fim desse sonho, desse ideal esperançoso de paz e do futuro como idealizado pelos hippies. Não é pra menos que a morte da atriz é um dos marcos do fim da visão otimista que o flower power pregava, junto com outros trágicos símbolos como a guerra do Vietnã e o show dos Rolling Stones em Altamont, quase um anti-Woodstock. 
Só pra efeitos de perspectiva, se os senhores jogarem 1969 no campo de busca do spotify, a primeira lista de músicas com hits desse ano vem com coisas como "sugar sugar" do The Archies, "aquarius/let the sunshine in" e outras pérolas do otimismo. No entanto, se vcs procurarem por listas de 1970 e 71, o que vem são músicas com títulos como "only the good die young", "joy to the world" (nesse caso, mais um clamor do que uma celebração), "how can you mend a broken heart", "smiling faces sometimes (dont tell the truth)" e outras nesse mesmo tom. Things got dark, meus ímpios. 
Novamente, meu ponto aqui: Fascinante como esse episódio usa essa mudança de tom no tempo, esse processo de desesperança sistemática pra mostrar como a sociedade lida com seus filhos "deviantes". Como fomos de exploradores para caçadores. Pra isso, dá o mesmo uso que Grant Morrison deu para Flex Mentallo quando o criou: ele é aquele espírito vivo do melhor da humanidade e, portanto, imutável. Tal qual o Superman. As pessoas acusam o último filho de Krypton de ser inocente demais mas o lance é o inverso: a sociedade é que ficou excessivamente cínica a ponto de condenar quem pensa diferente. Pq é assim que é e é assim que sempre foi. Só que não. A idéia do Superman é que dá pra ambicionar um pouco mais, querer ser um pouco mais, não é preciso se conformar com injustiças. O mesmo vale pro Flex. 
O problema, e o fascinante com ele - e creiam-me, gastei uma quantidade obscena de tempo e energia esmiuçando isso nos meus artigos sobre a minissérie do Flex - é que o que queremos e esperamos de nossos heróis mudou. A questão é: o que isso diz a nosso respeito, enquanto sociedade?
Sintomático que Flex seja capturado usando o "ato de heroísmo" arquetípico de qualquer super herói, o básico do básico, lição encontrada na introdução do livro "superheroism for dummies": tirar um gatinho da árvore. 



Nada é mais era de ouro dos super heróis que isso. E o fato de terem corrompido isso para capturar Flex é muito carregado, simbolicamente falando.
Nunca existiu uma "era melhor".
Qualquer um que disser pra vcs, meus ímpios, que "antigamente era melhor", fala isso de uma posição de privilégio. Sim, se vc é filho de um homem branco nascido no baby boom dos anos 40, provavelmente pra vc, era uma era idílica. E mesmo assim, é preciso uma conjuntura de fatores absurda pra isso, mas vá lá, façamos um exercício hipotético. Mas se vc era qualquer coisa diferente de um homem branco com $$$, meu amigo...... Talvez suas memórias sejam um pouco mais cruéis. Negros, homossexuais de todo o espectro, mulheres. E mesmo o tal homem branco "ideal", vivia sob o peso e a pressão de ser um bom representante desse sonho americano da casa amarela com cercadinho e a família com mulher e dois filhos esperando em casa. E pressão é a palavra chave aqui. 
Nunca houve um "tempo melhor". Por isso heróis como Kal-El e Flex funcionam tão bem: pq o ideal que eles almejam sempre foi difícil de se alcançar, nos anos 30, 60 e nos 2000. Por isso eles funcionam tão bem como símbolo de suas épocas: o que mudou foi todo o entorno. E essa é a graça deles: como manter seu ideal quando as bases desses mesmos ideais mudaram tanto em sua  essencia, conceitualmente? 

uau.... isso é um preambulo, né? Jesus.



Enfim: peguem uma água, um suco, um guaraná, um toddy, que o texto vai ser longo.

O lance do Bureau e da mudança do foco não é uma coisa só acentuada nesse episódio, mas vem pela temporada inteira. No começo do século, quando o mundo ainda era um local misterioso, éramos exploradores. Daí vem figuras como Gunga Din, como Doc Savage, como Tarzan. Sim, okay, sempre o olhar era o do homem branco e sempre daquela perspectiva de quem enxerga sociedades inteiras da mesma forma que uma criança usando um galho pra cutucar algo desconhecido pra ela. Sim, de forma exploratória em muitas vezes, condescendente em outras, imperialista na maioria delas. Mas pelo menos na ficção, a coisa era uma troca mútua de culturas: Savage e Tarzan conheciam criaturas extraordinárias mas se permitiam mudar com esse contato. É aquela coisa do Doctor Who ou de Tom Strong: quando eu vejo o incomum, meu olhar é de encanto, de "caralho, que coisa legal". No entanto, duas guerras mundiais e uma quase-guerra entre EUA e URSS mudaram o olhar: antes, a porta pro desconhecido prometia mundos maravilhosos e aventuras. Agora, a porta esconde um monstro nas trevas, esperando uma oportunidade pra pular pra cima da gente e nos devorar. O estranho deixa de ser um amigo em potencial e passa a ser o inimigo. De novo: me concentro na ficção e nos nossos heróis. No mundo real, eu sei que o olhar pro "outro", pro "estranho" sempre vem acompanhado de certo medo, historicamente falando.
O Bureau of Normalcy nada mais é que o sonho molhado de todo fascista que tem em Don Draper seu "homem ideal", independente do quanto Mad Men passa um tempo imenso mostrando a dor de ser o tal "Cary Grant type of guy" do qual Tony Soprano sentia falta. Terno alinhado, cabelo idem. Normal. Darren Jones é um desses homens e sua cruzada contra os "abnormals" que encontra vem do fato de que a própria existência desses é uma afronta desse sonho, não apenas pq prova que existe gente diferente desse ideal. A afronta suprema vem do fato de que existe gente que NÃO QUER TER esse ideal, a negação desse sonho de pureza e homogeneidade. 
Não é pra menos que o episódio começa em 64, ano pivotal pros americanos (e aliás, pra gente tb aqui na parte de baixo do continente): Um ano antes, Kennedy é morto. Os Beatles invadem os EUA via Ed Sullivan show, trazendo todo o boom da cultura jovem com eles.  Rolling Stones lançam seu álbum de estréia. Dylan, sempre um visionário, grita: times, they are a-changing. Começam os race riots no Harlem. Lyndon Johnson assina o Civil Rights Act tornando crime qualquer forma de racismo, como resposta ao assassinato de 3 ativistas negros pela KKK. Luther King ganha o nobel da paz.
Sim, os tempos estão, de fato, mudando. E, como testemunhamos recentemente, sempre que os tempos mudam, tem o backlash. As minorias ganham força? A "maioria" chora. Quer pegar os direitos "de volta". Quer tomar a bola e parar de jogar.  A história é um ciclo, né?



Depois de ser capturado, Flex é mantido preso após ver sua mulher, Dolores, cativa. Numa tv. Em branco e preto. A mudança tonal se mostrando de novo: saltamos das insossas novelas americanas dos anos 60 pra imagem em p&b de uma mulher sendo torturada, uma forma bem eficaz e sutil de falar da espetacularização da violência na cultura pop. E se não ficou claro, Jones afirma com todas as letras: 







Cultura pop sempre foi um meio de passar idéias imperialistas. Eu adoro o Superman, mas entendo quando pessoas rejeitam o personagem como uma ferramenta pro governo americano colonizar crianças culturalmente. Diabos, não dá pra falar do uso de cultura pop como ferramenta ideológica sem lembrar o "you can slap a jap" ou do uso de hqs como ferramenta contra comunistas na época do Macarthismo. 



Ou do cinema, ou da tv, etc. etc, etc. Watchmen e Civil War (a hq, nunca vi o filme) falam exatamente isso: os heróis sendo alistados como a mão opressora e regulatória do estado. 
Eu falo de percepção (demorei pra usar o termo, né?) e é isso. Existem dois "vilões" na série até agora. O BoN e Mr. Nobody. O último é mercurial, ainda não está claro o que ele quer. Nos quadrinhos a linha é ainda mais turva: o personagem é menos um vilão e mais um trickster, alguém que não quer dominar o mundo, que não faz o que faz por crueldade, mas por querer balançar as crenças e percepções da sociedade, o que ela tem de estrutural, seus dogmas, botar uma lente em cima disso e perguntar pra gente, enquanto grupo, pq temos tais regras como pétreas e se não dá pra querer algo melhor. Via caos, via choque, mas ainda assim. Falo mais das hqs no futuro, já que quero escrever aqui sobre os gibis da Patrulha, quando essa temporada acabar. 
Sobra o Bureau então no papel clássico do vilão. A anti-Doom Patrol. Se os filhos adotivos de Niles são o bizarro, a corporação representa o apego ao normal, a voz da nostalgia por um "tempo melhor" que, como já afirmei nesse texto, nunca existiu. Percepção. A deles, os fascistas, sendo corroída por dentro. A nossa, dos estranhos, dos weirdos, das "aberrações", lutando pelo lugar ao sol. Por isso a Patrulha, em minha relativamente humilde opinião, funciona melhor que os X-Men ou a JLA como heróis e, mais ainda, como símbolos. Pq eles são os Morlocks, a periferia do universo de super humanos. Eles são quebrados, ocasionalmente patéticos, imperfeitos até a medula. Mas ainda assim, lutando o bom combate, mesmo quando o mais natural seria desistir. 
"Normal é superestimado"
Mais do que isso: Normal nunca existiu. 



- Rita finalmente tem seu segredo sombrio trazido à luz. Mr. Nobody tem um plano. E eu não faço idéia de qual é. 
- Inicialmente, admito, eu não entendi, considerando tudo que tava rolando no episódio, qual é que era da trama do Larry, já que o conflito nunca existiu de fato, posto que era óbvio que o espírito negativo iria voltar e salvá-lo. Mas na segunda "assistida", ficou claro que o lance é deixar claro que o conflito entre ambos acabou e agora eles convivem em harmonia. No ep. passado, Larry abraçou seu inner passenger. Nesse, a criatura voltou por vontade própria. 
- A piada envolvendo soap operas e o fato de Cliff e Jane terem acreditado tão rapidamente nas palavras de Flex parece apenas uma tiradinha engraçada, mas tem algo muito honesto naquilo: novelas são ridículas. Novelas americanas então, fazem até novela brasileira parecer Shakespeare. E quadrinhos, por sua vez, apesar de tudo que o fandom pensa, também, cheios de sense of wonder, mortes e ressurreições, clones evil e os cacetes. E. Tudo. Bem. Com. Isso. Doom Patrol abraça o weird de um jeito que as hqs fazem desde que surgiram e essa é uma das coisas que fazem os gibis minha mídia favorita. O uniforme dos super heróis não funcionam na vida real e sabe pq? PQ ELES SÃO RIDÍCULOS. E TUDO BEM COM ISSO. Homens capazes de mover montanhas tem como inimigos cérebros dentro de jarros, vermes sencientes e criaturas saídas de livros de contos de fadas. Planetas sencientes. Devoradores de mundo usando saias. PATOS DE TERNO. E tudo bem.





- Linda a cena de Cliff finalmente, FINALMENTE, tirando a cabeça de dentro do próprio traseiro e pedindo desculpas pra Jane. Demorou mas o Robot Man entendeu que se aproximar de alguém como ela demanda paciência e, sobretudo, tato. Não se trata de "salvá-la" mas de ouvi-la e simplesmente estar lá pra ela.
- Que foda, que foda, QUE. FODA. ter visto Ed Asner aparecendo na série. Ele apareceu em zilhões de coisas. Talvez, a mais famosa delas, recentemente, tenha sido sua interpretação como a voz original de Carl Fredericksen em UP. Mas sério, o currículo do cara é algo impressionante. E ele esmerilhou aqui. 
- Sério, desculpa, eu preciso retomar um ponto da trama principal que eu já falei e falei falei horrores acima: 



Vejam bem, eu acho o corpo humano um treco asqueroso. Mas mesmo eu nunca entendi essa neurose de gente "normal" com relação ao corpo alheio, pudor, "defesa da decência" e os caralhos. 
- Ainda sobre o agente Jones: "o preço da liberdade é a vigilância perpétua". Eu critico a direita direto, e de fato, fascista bom é fascista morto, mas a esquerda, como o mundo viu nos últimos anos, também tem seus pecados, sendo o pior deles, a crença confortável em achar que suas conquistas são definitivas. Não são. Semana passada, vimos estados americanos recriminalizando o aborto. No Brasil - aliás, em qualquer país sofrendo essa maldita onda reaça que tá tomando o mundo feito um câncer - direitos conquistados a duras penas estão sendo derrubados em defesa dos direitos das elites. A cada nova conquista é preciso lembrar: 







Jamais devemos ficar confortáveis. Esses párias sempre consideram avanço de minorias uma concessão e quando eles acham que "não nos portamos bem" ou que os grupos que hostilizam não estão "suficientemente invisíveis", eles vão tentar desfazer o que foi conquistado à base de muito sangue, suor e lágrimas dessas mesmas minorias. Ainda sobre essa cena, uma leitura alternativa: o óbvio efeito imbecilizante da TV. Irônico, já que Doom Patrol é um exemplo muito bom do efeito oposto que o entretenimento traz, questionando o status quo vigente e provocando empatia por gente diferente do branco médio hétero cristão padrão. 



- Aparentemente os discípulos remanescentes de Von Fuchs não gostaram muito do Animal Vegetal Mineral Man abrindo o bico sobre FUCHSTOPIA e decidiram passar o infeliz, pq, como todos sabemos, lugar de x-9 é no microondas. Por sorte, o..... "super-humano" sobreviveu e aparentemente passa bem. 



- Vai se foder a direção dessa série, né? Olha essas imagens se contrapondo: a primeira, "o bebê de Marybeth", um demônio atormentando a alma de Rita. Na segunda, ela soberana, ciente de que absolvição não é algo que vc ganha depois de fazer algo, tipo um achievement de games que vc destrava, mas um processo pelo qual ela vai passar pelo resto da vida. 
- Aqui eu vou totalmente pro lado pessoal: vcs sabem o quanto eu amo Flex Mentallo. Eu demorei literalmente ANOS reescrevendo aqueles textos que fiz, uns anos atrás. É, provavelmente, a coisa de que eu mais tenho orgulho daqui do groselha. So, vcs devem imaginar o quanto eu estava com medo e ansioso e...e... tudo de bom e ruim, a respeito da potencial aparição do man of muscle mystery na série. Correspondeu as minha expectativas? Não. As superou. Com folga e tranquilidade. :-)
- That's it. The final showdown is coming. O maior fã do grupo, Mr. Nobody, está pronto. Como diria John Cena: "You want some? Come get some!!!"





A seguir: o fim se aproxima. E all hell breaks loose. 

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