sexta-feira, 24 de maio de 2019

John from Cincinnati: Segue a onda....


Como já estabelecido previamente e com mais ênfase ontem, no post sobre Brockmire, eu não sou uma pessoa espiritualizada. Mas, eis-me aqui, novamente, usando termos como "sublime" e "experiência religiosa" pra descrever uma obra de arte.
Okay, David Milch, uma das mentes brilhantes que geraram a era de ouro da TV, junto com Alan Ball, David Chase, David Simon, Matt Weiner, dentre outros. Um dos pais de NYPD Blue (a lendária "Nova Iorque contra o crime"). Ele vinha de uma série foda, FODA, mas de moderado sucesso (a igualmente lendária Deadwood). Qual o próximo passo lógico?
Um novo drama de época? Outro procedural policial?
Hã...... nope.... Que tal um slice of life com toques de realismo fantástico sobre Deus vindo ao mundo como um surfista austista?

......

Pois é.
"E sobre o que é John from Cincinnati, tio Urso?"

Oh boy.... hã...... vejam o vídeo abaixo até os 2min34



Pois é. Traduzindo pra geral: Em uma entrevista com Craig Ferguson na época do lançamento, indagado sobre qual o tema, sobre o que é a sua nova série, Milch manda.

Milch: "Então.....se Deus quisesse falar conosco....e ele tivesse certa urgência...."

....."..... a série é sobre isso"

Ferguson: "E surf"

Milch: "Vem de bônus"

So..... nem o criador da bagaça consegue explicar sobre o que é o show. Ou pelo menos, não de uma forma direta, reproduzível em um tuíte.
E se ele não consegue, que chance tenho eu? Bom, isso não vai me impedir de tentar, kemosabe.
A série, uma produção de 2007 da HBO, teve apenas uma temporada de 10 episódios.

"Uau, deve ter sido muito ruim, né?"

Então......hã..... não.
Não, não foi. Não era simples de entender, na real, e isso a matou.
Não, vou mais além. Não era "difícil" de entender. Era impossível. Beirava o hermético, aqui e ali.
O pouco que dá pra pegar da trama: numa cidadezinha litorânea da Califórnia, a vida da família Yost segue aos trancos e barrancos. O patriarca, Mitch, uma lenda do surf esportivo, saudoso dos dias de glória. E ocasionalmente, flutuando de forma espontânea. Literalmente. Ele flutua. 
Seu filho, Butchie, tinha todo o talento pra ser seu sucessor. Aí as drogas vieram e zoaram o rolê.
No final da linhagem, o jovem Shaun, descobrindo que também leva jeito com a prancha e com as ondas. Toda a série gira em torno da família Yost e todas as relações entre os demais personagens naquele contexto são, em maior ou menor grau, afetadas pelo cisma entre as 3 gerações de atletas. Tudo segue em seu caótico ritmo....até a chegada de John Monad, um rapaz sem memória e com visíveis sinais de deficiência cognitiva. Que pode ou não ser Deus em pessoa, Jesus reencarnado, ou, pelo menos, alguém com habilidades super humanas. A série é sobre isso, sobre as interações entre aquelas pessoas, seu dia a dia comum e como esse elemento fantástico vai alterar a dinâmica entre eles.


Okay, daqui pra diante, deixamos o território do fácil, do descritível, e adentramos o sensorial. 
O que diabos faz essa série tão..... peculiar? Bom, quem acompanhou Deadwood até o final, sabe que Milch tem um talento pra criar diálogos .....como eu vou dizer....... "não ortodoxos"? Polissílabos, metáforas, analogias, eufemismos. Tudo, menos uma resposta direta, a+b=c. Poético, se vcs me perguntarem. Mas não exatamente acessível, num primeiro momento. Weiner tb faz isso, num nível mais controlado, em Mad Men. Mas Milch? Aqui ele trava o dial no 11. E o ritmo da série tb é todo entrecortado, com eventos se desenrolando sem que consigamos necessariamente entender o fio condutor conectando todos eles. E claro, tem o desenvolvimento de roteiro, em que pessoas planam, se recuperam de ferimentos gravíssimos sem nem cicatrizes e, em mais de um momento, voltam da morte. E em momento nenhum a série vende tais ocorrências como o foco do show. Não é, tipo, Lost em que o negócio é um puzzle e a gente tenta encontrar as respostas. Eles não levantaram perguntas que foram abandonadas posteriormente pq eles não souberam responder. A proposta nunca foi essa. Tá mais pra um slice of life onde pessoas quebram as regras da física e do que temos como tradicional pq...... pq.........pq sim. 

Eu sei que eu não estou fazendo um bom trabalho em vender a série pros senhores, mas creiam-me, tem algo muito mágico nela. Sim, os episódios vão avançando, personagens novos não param de chegar, desde os dois gangsters residentes no hotel da cidade até a mãe de Shaun, uma atriz pornô de sucesso, passando pelo dono da principal loja de produtos de surf local que vê no mais jovem dos Yost, a oportunidade de uma vida. Eventos estranhos ocorrem (já falei que gente ressuscita nessa porra?).
Mas.....o tempo todo, diálogos estranhos à parte, eventos fantásticos à parte, tem o lance do....eu vou chamar de "retrogosto emocional" que a série te provoca, durante e após vc assisti-la. E de novo... o lance é meio metafísico, manja? Deem uma olhada na abertura dessa bagaça.


Como vcs se sentiram vendo isso? Bom, é isso, é como cada um dos 10 episódios vai te deixar sentindo. Não é a toa: Milch teve como parceiro na criação do show Ken Nunn, escritor conhecido por ter meio que criado o gênero no qual, ainda que de leve, a série se encaixa: surf noir.
O gênero, cunhado por Nunn em seu "Tapping the source" é o que o nome indica: histórias de crime em que a ambientação abandona as noites urbanas dos anos 30, 40 e 50 e se volta pros dias e tardes quentes da costa litorânea dos EUA. E ao invés de cigarros e sobretudos, surf.

Agora vcs tão imaginando Casablanca e o Falcão Maltês nesse gênero, certo? Tudo bem, eu fiz o mesmo.

Shaun, Butchie e John
Mencionei isso não pq a série tem alguma ambientação noir, não, longe disso. Tem alguns crimes acontecendo aqui e ali, mas novamente, nem de longe são o foco da história. Falei do envolvimento de Nunn aqui mais pra ressaltar que tem a mão de alguém que realmente manja de surf nos roteiros, conferindo legitimidade pra coisa. E isso é importante aqui pq, PQP, é muito mágico como cada episódio me deixou como eu me senti da ultima vez que me vi sentado numa cadeira na praia, contemplando a infinitude do oceano ao por do sol, sabe? O sonho final de todo escritor é, através das palavras, provocar no leitor a sensação do contato com a experiência real, de fato, sabe? E é bem isso. Fechado no meu quarto, no meio de SP e sua natureza pétrea, eu conseguia me sentir à beira da praia, com a brisa nos meus (escassos) cabelos e com areia no pé.
Minha mensagem final pra quem for se aventurar pelo show: não tenta racionalizar, okay? Isso que eu quis dizer lá em cima quando falei que íamos nos encaminhar pra um lado sensorial.
Coisas acontecem, eventos se desenrolam, mas é isso, é o que os Coen falavam em seu "Um homem sério", é o que vc sente quando tenta absorver racionalmente a grandeza da praia e do oceano na sua mente humana: abraça a porra do mistério. Ride the wave. Vai na onda, manja? Aprecia a viagem, as boas atuações, os twists de roteiro, a trilha sonora maravilhosa (Tv on the Radio, Joe Strummer and the Mescaleros, Yardbirds, Kasabian), a cinematografia, sempre deixando as cenas com aquele clima gostoso de sol numa temperatura agradável, tipo como direto ocorre em clipes do Belle and Sebastian ou dos Smiths. Entender a real natureza de John é tão impossível quanto entender a existência humana. E tudo bem, pq em ambos os casos, isso não nos impede de aproveitar a viagem, nesse curtíssimo período em que passamos por essa vida. Então, não desliga o cérebro, mas deixa o lado emocional dos seus 1 quilo e pouco de massa cerebral, a metade esquerda, assumir o volante, okay?
Não se preocupa em tentar entender todos os processos físicos, químicos e climáticos que geraram aquela onda de água vindo na tua direção. Só abraça o mistério, relaxa e deixa ela te acertar.

Ah, pra quem curtir, dois textinhos legais relacionados à série: um revisitando o show e falando sobre tudo que faz dele algo único e outro, um guia de obras essenciais do surf noir

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