quarta-feira, 21 de agosto de 2019

"The last X-Men story": Uncanny X-men de Matthew Rosenberg


É possível que "Uncanny X-Men" seja o gibi mais auto-consciente que eu me lembro de já ter lido, tipo, na vida. Penso em Watchmen, penso em Cavaleiro das Trevas e, mesmo se formos singrar pelas turbulentas águas do universo mutante, posso citar os New X-Men de Grant Morrison como exemplos de obras que sabiam pisar fundo no elemento "meta" e olhar pra dentro dos tropes e vícios típicos do fato de serem obras sobre obras serializadas que existem há décadas e décadas. Mas isso posto, a série recente dos x-heróis tem o fato de falar de coisas que estão muito frescas na memória dos fãs. Pq a hq é meio que estruturada como uma elegia ao universo dos discípulos de Charles Xavier. A trama se passa após os eventos de "X-men disassembled", onde quase todos os genes-x do planeta são dados como mortos, sobrando uma meia dúzia de gatos pingados. Dentre estes, um ressurrecto Scott Summers que, vislumbrando o fim dos Homo Superior, decide que, se vão morrer, vão cair com graça, e decide eliminar os vilões mutantes ainda em atividade no mundo, uma forma de garantir algum legado positivo para a iminentemente defunta espécie. 
A partir daqui entramos fundo nos eventos da hq e eu vou spoilar o negócio sem dó nem piedade, então, fica o aviso: 


As cenas de ação meio que são detalhes aqui, com a "carne" da trama, de fato, mais concentrada nos diálogos e, principalmente, no tom. De novo: é uma história sobre finais, sobre extinção e sobre todos esses personagens absolutamente cientes da proximidade desse fim. O sonho está morto. So, essa hq é sobre isso tudo, mas não apenas: é sobre cada arco ruim e vilão tosco, sobre como os mutantes ganharam o universo com a popularidade adquirida nos anos 90, sobre como cada fase antológica da série foi seguida por trabalhos medíocres e, claro, sobre o processo de gentrificação Inumana promovida editorialmente pela Marvel, num momento em que conseguir de volta os direitos dos X-Men para inclusão destes no MCU parecia impossível. 
Esse gibi se passa bem depois de todo mundo ouvir sobre a compra da Fox pela Disney, portanto, todos sabiam que não era o fim de fato. Mas o tom vende bem a idéia de que poderia, sim, ser a última palavra a respeito daquelas criações e, se fosse, seria um final digno.
A série gira em torno, como já dito acima, de Scott e Logan reunindo o que sobrou da comunidade gene-x e caçar os traidores da raça o que, em tese, é o que os humanos estiveram fazendo durante sua vida toda. E o problema é exatamente esse.



Wooooow



I mean.... OUCH!!!! A verdade dói, né?

Parece algo cruel de se afirmar a respeito de uma mitologia tão rica, mas de fato, enquanto a maioria dos heróis caça vilões, os mutantes caçam mutantes, quer seja pra parar os desgarrados, quer seja pra assimilar os novos membros da raça, surgidos dia após dia, num ciclo de violência sem fim. De fato, alguém mais crítico poderia afirmar que os personagens parecem tão enfiados nesse ciclo perpétuo quanto o Batman, na DC, eternamente em sua cruzada de enterrar seus adversários no Arkham apenas para estes fugirem de novo e de novo e de novo. Eu entendo pq, num primeiro momento isso soa quase como desconstrutivista, como aquela crítica frequente de gibis de super heróis estarem presos contando as mesmas histórias de novo e de novo. Mas eu gosto de como o quadrinho foge do cinismo puro ao fazer o que a franquia faz de melhor: aproximá-los das minorias perseguidas da vida real. A metáfora do "se vc pudesse deixar de ser gay tomando uma pilula, vc tomaria?" é tornada plot point através da vacina anti-mutante. 
Tal qual no nosso mundo, existem reuniões anti-Homo Superior onde preconceituosos podem destilar seu ódio a céu aberto. Em determinado momento, uma personagem - e uma personagem feminina, isso é importante - é espancada até a morte, mesmo tentando viver à margem da sociedade, escondendo tudo aquilo que faz dela alguém extraordinária. 
A decisão editorial de silenciar os mutantes ironicamente espelha muito o que qualquer minoria que fuja da norma, no mundo real, experimenta dia após dia. Os discípulos do prof. X se perguntam mais de uma vez qual o melhor caminho: Se esconder dos "normais", uma possibilidade apenas para os que podem passar por "normais", aos demais restando apenas se juntar aos Morlocks e, literalmente, viver dos esgotos da sociedade. Se isolar, num gueto, como aliás já fizeram antes em Genosha ou Utopia. Ou cair lutando e deixar sua marca, nem que seja como uma cicatriz no mundo, um after thought coletivo. Em tese, essa ultima opção carrega certa bravura, até percebermos que, novamente, caímos no caminho viciado dos dedos de uma mesma mão lutando entre si


Não é uma coincidência que os mutantes, nesse momento em que escolhem voltar para as missões de combate, estão usando uniformes que remetem a seus dias de glória. Como toda história sobre morte, a raça tb vai passar pelos estágios que antecedem a morte e um deles é a negação. Esse caminho não funciona mais, mas eles precisam abraçá-lo uma última vez. 


Curiosamente, são os vilões que vão apontar a falácia na jornada dos heróis e destacar o quão, por falta de um termo melhor, vulgar é repetirem o traumático ciclo novamente, diante do fim. Lutando por visibilidade diante de um grupo que os odeia da única forma que podem: se vestindo de "super-heróis" e indo contra os "super-vilões". 


O curso de ação tomado por Shinobi Shaw vem menos do desespero e mais da rebeldia, tal qual ocorreu com Killmonger em "Black Panther", quando ele diz que era melhor enterrá-lo com seus ancestrais que pularam dos navios negreiros pq sabiam que "morrer é melhor que viver como um escravo". Quando ele afirma que matou alguns mutantes pra protegê-los do ciclo sem fim dos X-Men, soa, pra nós, leitores de longa data, como algo real. Num mundo de pessoas com habilidades espetaculares, viver em silêncio para não incomodar quem não as possui NÃO é uma opção. Viver escondendo tudo que faz de vc diferente apenas para não ofender quem te odeia não é vida de fato, mas um não-viver, apenas sobrevivência, letargia. Como disse Blindfold no começo da trama, profetizando os eventos vindouros, "This is Forever" e é dessa maldição que Shaw e seus associados (não coincidentemente, um bando de vilão bucha vindo de lá dos anos 90) está livrando os sobreviventes da espécie. 


Então....é isso? Tudo é amargura e só resta viver nas sombras ou a liberdade do suicídio?
Nope. Ao final, algo vai salvar os personagens, mas já já chego nesse ponto. Antes, no entanto, queria só comentar: caralho, eu entendo o papel de Alex Summers na trama, mas pqp, que personagem irritante. Okay, é de propósito: ele é a âncora da história, o personagem ainda preso dentro da mentalidade do "gibi de herói". Creiam-me, eu já fui em fóruns de hq uma ou duas vezes e já lidei com esse tipo de gente. Ele não é muito distante do cara que diz que "bom mesmo é o hulk verde antigo", que defende "menos política nas minhas historinhas", que acha que "bom mesmo é a série dos anos 90": o sujeito que não sabe como deixar o passado pra trás, sabe? LET IT GO. Não é pra menos que em um momento ele diz condenar a "revolução" que Scott promoveu, antes de morrer e em outro, ao final, ele se sacrifica pelo mesmo irmão que criticava edições anteriores. Ele é a personificação do tipo de mentalidade, dentro e fora dos gibis, que aprisionava a série, tolhendo o real potencial sci fi - revolucionário, de fato - que ela poderia ter. Ler esse gibi imediatamente antes de começar a nova e excelente fase de Jonathan Hickman é algo fascinante, já que a morte de Destrutor simboliza a série, meta linguisticamente rompendo seus grilhões e se permitindo ir além dos tropes de "gibi de heróis", unica forma de real liberdade daquele ciclo. 

So.... o fim... Emma e os mutantes, incluindo os que foram dados como mortos e que estavam num outro plano de realidade (um dia comum na vida desses indivíduos) tem uma opção. Continuarem em seu ciclo de lutar por aceitação apenas para serem cada vez mais odiados até que sejam efetivamente extintos ou..... tentar algo novo. 
Não sem assumir suas cicatrizes.


E não sem, ainda, repetir alguns vícios pq, afinal, pós-humanos ainda são falhos (o beijo entre Ciclope e Jean). Mas ainda assim, algo novo. 
Abandonar o confortável e se permitir desafiar de novo o fandom, mesmo sabendo que a rejeição parcial vai vir e tudo bem com isso já que toda nova idéia tem seus detratores. Pq, considerando que tudo tentado até aqui resultou em fracasso, que opção sobra senão tentar um caminho diferente?




O lance aqui é potencial. O real e o desperdiçado. Okay, isso vem como uma necessidade da Marvel e da Disney de reintroduzir esses personagens relegados à periferia do universo 616  num passado recente antes de introduzí-los no MCU. Mas ainda assim, se o efeito disso é finalmente vermos uma quebra de paradigmas, hey, muito bem vinda.
Os mutantes, desde suas origens na década de 60, sempre foram o maior ponto de conexão da Marvel com o mundo real e onde a casa das idéias permitia de forma mais aberta essa intersecção entre cultura pop escapista e política. Não coincidentemente, a série sempre foi abraçada por quaisquer minorias, como um porto seguro. Como sempre vai ocorrer com qualquer minoria, sempre haverá uma guerra pq sempre haverá gente querendo que os diferentes voltem para as sombras. Vemos todo dia isso nos jornais. O Brasil é o país que mais mata homossexuais no mundo. Todo dia temos notícias de pessoas negras sendo mortas em periferias. Muçulmanos (ou qualquer pessoa que tenha feições árabes) são hostilizadas. Todas as religiões não-cristãs são vistas como erradas pela escória neo-pentecostal. O fascismo ganha força novamente. E os governos de direita avançam, tentando desfazer conquistas que alguns dos grupos acima levaram eras para conseguir, não sem uma quantia obscena de suor e sangue derramado. 
O final traz um lampejo de esperança (reforçado pelos rumos de House of X/Powers of X) de um ciclo terminando e outro nascendo. Não mais super. Ainda em guerra pq, afinal, o preço da liberdade é a eterna vigilância e os dedos esqueléticos do reacionarismo e do obscurantismo sempre vão estar lá nas sombras, planejando um retorno. Mas dessa vez, contra os inimigos certos. 



Não sei o quanto o final de Rosenberg foi pensado já tendo em mente a fase de Hickman, mas gosto como o autor deixa a série com um final redondinho, em tabula rasa, tela em branco, pronto pras regras serem reescritas, o que já ocorre na primeira PÁGINA de House of X #1, numa transição completamente tranquila. Com um último olhar pro passado, antes de finalmente, os X-Men rumarem em direção à um futuro novo (sério, eu lembro do papel da Moira em HoX e abro um sorriso como isso dialoga perfeitamente com os conceitos desenvolvidos aqui). 


Sobrevivência é muito pouco. Existência harmoniosa idem. A evolução é agressiva e os personagens, tal qual a série em si, decidiram se adaptar diante da extinção. Chega de migalhas e de oferecer a outra face ao opressor. 
"Evolução ou morte". Summers e seus aliados fizeram sua escolha. 
Agora, o mundo que se adapte a eles. 

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