terça-feira, 2 de maio de 2023

Em rumo a Krakoa: "Inferno"

 Yo, dogs.


Esse vai ser um texto mais curto que os demais nessa série cobrindo a longa estrada dos mutantes, de sua fortaleza na Escola Xavier até a ilha nação de Krakoa. E isso por um motivo simples: eu não gosto dessa saga. 

Inclusive, cogitei pular esse arco e ir direto para o período dos mutantes sendo derrotados pelos Reavers e passando pelo portal do destino , mas decidi não fazê-lo apenas porque existem alguns tópicos que são abordados nessa trama que me são queridos e que são importantes por englobarem os macro-temas que Claremont vem desenvolvendo por todo seu período nos x-títulos. 

Publicado entre final de 88 e começo de 89, a parte que nos interessa aqui é a que pode ser encontrada no gibi dos X-Men (239 a 243) e X-Factor (36 a 39). Esse arco pode ser considerado outro dos pontos de catarse do período Claremont nos roteiros mutantes.

Primeiramente, preciso dizer que é impressionante como não tem um respiro entre o arco anterior, dos mutantes em Genosha, e esse. Eu posso não gostar de Inferno, mas reconheço suas qualidades e, principalmente, como ele é outro argumento a favor do nível de excelência desse título e da sua equipe criativa nesse período histórico. 

Meus problemas com essa história giram mais em torno do fato de eu nunca ter me conectado emocionalmente com Maddie Pryor e, no geral, não gostar do tom geral do arco.

Recentemente, no entanto, li alguns textos sobre Inferno que me fizeram ter certo respeito pela trama. 

Se ela parece meio que vir do nada, do mais absoluto nada e tem uma premissa relativamente básica - personagem que é secretamente mutante faz pacto com demônios e fica ainda mais poderosa - é porque, de acordo com o que vi, Chris Claremont tinha tanto apreço pela idéia que girava em torno dessa história quanto eu, ainda que por motivos diferentes: Madelyne Pryor deveria ser o plot device que permitiria que Scott Summers pudesse abandonar de vez a vida super heróica e ter seu final feliz.

Quando o editorial da Marvel decidiu não só ressuscitar Jean Grey mas dar um novo título para os 5 alunos originais de Charles Xavier, o roteirista ficou PUTO. 

"Inferno" nada mais é do que a literalização do mau estar que ele sentia não só com a decisão tomada, mas também com certa desilusão com os quadrinhos de super heróis em geral.



Pra quem nasceu mais tardiamente, isso pode não ser tão claro, mas é preciso lembrar que o que hoje em dia chamamos de "a era Image" não começou do nada. O tal processo de "Imagecomiczalição" dos quadrinhos dos anos 90s obviamente antecede a editora de McFarlane, Jim Lee e Liefeld. Ela é um sintoma, o resultado final de um processo que vinha de dentro da própria Marvel. Temos um grupo de artistas sendo alçados a posição de superstars e absolutamente cientes do próprio valor.

Temos uma editora, a Marvel, que pretendia mante-los sob o mesmo parâmetro a respeito de royalties e participação criativa, que já vinha praticando a décadas.

E além disso, temos o tom geral das histórias mudando em virtude do envelhecimento do seu grupo de leitores mais fiéis. Quem tinha 10, 15 anos lendo gibis nos anos 70, agora tinha 20 e poucos, indo pros 30 e tantos. Com seu envelhecimento, vem o aumento do poder aquisitivo. E claro, historicamente, não podemos desconsiderar o contexto geral do mundo. Inferno é uma típica história filha dos anos 80 e seu cinismo pós-moderno desconstrutivista.

Desta vez, o adversário dos heróis mutantes é o próprio universo ao redor deles. De humanos, passando por vilões e agora, literalmente, até os objetos inanimados, de elevadores à caixas de correio. Os desafios vinham de todos os lados. Isto é o grande tema da era Claremont sendo transformado em plot point.


Porque, afinal, os mutantes já tem o fato de serem personagens de quadrinhos como seu maior adversário. Os tropes típicos de quadrinhos são exatamente o que os mantém em perpétuo estado de alerta. 

A diferença é que Madelyne tem o poder e a habilidade de perceber isto e do alto de sua auto-consciência, se rebelar contra este estado de coisas. 

Ela deveria ser apenas uma coadjuvante, o final feliz para Ciclope, sua esposa e a mãe de seus filhos. Quando isso lhe foi negado, ela foi se unir ao time principal de mutantes, onde deveria ser apenas o olhar "civil" para aquelas aventuras. Mas ela acabou se tornando algo muito maior. 

Na trama, Maddie, inicialmente uma vítima dos planos do demônio N'astirth, consegue superpoderes e decide usa-los para se vingar não apenas de Scott Summers, o marido que a abandonou e que levou o filho dela com ele - supostamente - mas do mundo que tão cruelmente trata os mutantes (novamente: este arco vem IMEDIATAMENTE depois dos horrores testemunhados em Genosha). 


Não é de se estranhar que a conclusão lógica da vilã neste momento é simplesmente queimar tudo e deixar que algo, com sorte, melhor cresça das cinzas. 

Claremont, com a clareza de alguém que está não só dentro da indústria mas escrevendo o gibi que mais vendia nesse período, sentia que os quadrinhos pós-Dark Knights Return e Pós-Watchmen tomavam uma direção potencialmente complicada. Não me entendam mal: X-Men era um gibi BEM violento. Mas ele não era um gibi adulto PORQUE ele era violento. Ele era adulto porque tratava de temas difíceis e com a devida sensibilidade. Essa confusão entre a maturidade dos quadrinhos e a presença de sexo e violência nestes como causa ou consequência era uma linha difícil de ser trilhada e facílima de se perder. 


Com o ganho de status de Lee, Liefeld, McFarlane, Erik Larsen e Marc Silvestri e seu crescente poder sobre os rumos dos roteiros das histórias que desenhavam, as tramas acabavam perdendo em qualidade e ganhando em "massaveíce". Páginas belamente desenhadas (isso é discutível no caso dos gibis do Liefeld) com tramas com um fiapo de evento ocorrendo nelas. Splash pages com cenas violentíssimas ocorrendo apenas porque elas podiam render belas páginas. Uma cobra mordendo o próprio rabo. Liefeld ativamente tentando diminuir a importância de Louise Simonson no título dos New Mutants. 

Algo não cheirava bem no reino da Grã Bretanha. Vou me permitir uma digressão aqui: a Sequart tem um documentário bem legal sobre o período Claremont e nele, tem uma passagem com Rob Liefeld que eu JAMAIS vou me esquecer. Em um momento EXTREMAMENTE masturbatório, ele diz que o gibi dos x-men precisava de "renovação" e usa como exemplo disso as edições 244 e 245 de Uncanny X-Men. Pra quem não lembra, essas são duas edições de respiro, pós-Inferno, em que vemos, respectivamente, as meninas mutantes e os caras do time, saindo para uma noitada como forma de relaxar após todos os horrores enfrentados. São dois gibis EXTREMAMENTE divertidos e, de fato, um momento de relaxamento antes do arco seguinte que vai quebrar de vez o status quo do time e encerrar o período do título no deserto australiano. 

Que o homem famoso por ser o autor do "clássico" YOUNGBLOOD e por sua incapacidade de desenhar pés utilize exatamente uma trama ousada exatamente pelo aspecto fora de caixa de ser um "bottle episode" dos mutantes, despretensioso ao extremo, como um exemplo da fase "ruim" do gibi já denota muito da qualidade dessa primeira geração da Image enquanto storytellers. 

Voltando para Inferno, os poderes de Madelyne, agora a Goblin Queen - lembremos que o comics code ainda existia nesse período e não permitiria o uso de DEMON Queen - iniciam um processo de "infernalização" de Nova York, não apenas afetando seus moradores e objetos inanimados, mas também os heróis. 


Aqui, os autores aproveitam para ressaltar os efeitos que a vida heróica tem nos personagens, mesmo - e principalmente - nos mais inocentes entre eles. Longshot e Dazzler acabam cedendo sob efeito de toda a "bad vibe" acumulada. Alex Summers, por sua vez, tem que conviver com o fato de ter usado seus poderes de forma letal - ainda que em legítima defesa e em uma circunstância de escolhas impossíveis - contra alguém. E este é um dos principais pontos do personagem: ele é extremamente poderoso, mas a incapacidade de controlar a potencia de seus disparos faz com que ele prefira não utilizar seus poderes, já que sempre há o risco de danos colaterais indesejados no processo. 



Colossus, o homem de metal, escapa incolume apenas porque seu corpo de aço o protege dos efeitos "mágickos" influenciando seus colegas. Já naqueles com tendências sinistras como Ororo, Logan e Rogue... well....

O custo da vida heróica nestes personagens é algo que vemos sendo discutido desde o período em que Claremont e Byrne co-escreviam juntos. A primeira incursão contra o Clube do Inferno, a saga da Fenix Negra, a luta inicial contra Nimrod, o Massacre de Mutantes e tudo que veio depois, todos estes arcos trazem alguns momentos de reflexão individual dos personagens sobre o efeito "endurecedor" que isso teve em seus corpos e almas. E de fato: eu conheci vários ativistas na vida, desde gente trabalhando com moradores de rua até galera trampando com comunidade LGBT e alguns grupos que iam interior do país adentro tentar achar fazendas com trabalho ilegal de menores e análogo à escravidão e meio que um tema comum entre toda essa gente era como eles precisavam de períodos de desintoxicação entre um dia de trampo e outro porque o que eles viam... Bom, no processo de tentar criar o melhor dos mundos possível, você vai, inevitavelmente, ter que testemunhar o pior que a humanidade tem a oferecer. 

Os X-Men, e este é um ponto que eu bato desde o primeiro texto desta série de artigos, se enfraquecem toda vez que tentam assumir uma postura super heróica. Pior: falham com aqueles que deveriam proteger e, na melhor e mais gentil das análises, terminam em uma situação de soma igual a zero. 

Mas, o outro polo disso é: o que acontece depois de testemunhar o pior da humanidade? Magneto terminou se radicalizando ao extremo (ainda que, convenhamos, ele nunca tenha passado frio porque sempre esteve coberto de razão).

Quando a pressão chegou ao seu extremo, mesmo Charles Xavier, o "pai celestial" se viu quebrado e com seus piores aspectos aflorados e voltando para atormentar seus protegidos.

A gradual demonização no visual dos X-men durante inferno nada mais é do que a exteriorização das sombras que estes personagens carregam internamente, fruto da guerra travada. Nada mais é do que o ódio que eu e você carregamos e que é criado pelo simples fato de existirmos em um mundo quebrado e extremamente injusto.


Interessantemente, temos esse contraponto entre os X-Men e o X-Factor, que permanecem "puros" durante a trama. Mas a conclusão, ao final da história, não é que o X-Factor está lutando de forma "melhor" que o time australiano. Ao final, os dois grupos reconhecem que ambos estão lutando o bom combate, apenas "de formas diferentes". Seria muito fácil uma discussão moralista sobre nos mantermos puro e "tomarmos cuidado para não usarmos o método do inimigo a ponto de não podemos nos distinguir deles". Essa é uma discussão MUITO presente atualmente, em que conseguimos identificar o jogo sujo dos fascistas em nossa sociedade enquanto, ao mesmo tempo, nos perguntamos se deveríamos ou não usar dos mesmos métodos. 

Na nossa sociedade com fortes influências cristãs desde sua formação, existe um discurso meio "dar a outra face" e de combater nossos inimigos - NÃO oponentes, mas inimigos - "no campo das idéias" e tals. Eu sempre vou me lembrar da pessoa criticando Jean Willys naquele episódio em que o então deputado mandou uma catártica cusparada na cara do também deputado Jair Bolsonaro. "Erraram ambos".

Porque sentir raiva e ódio é algo PROFUNDAMENTE rejeitado na nossa sociedade. Só recentemente que geral começou a difundir a idéia do ódio justificado e da raiva como meio de transformação social contra um sistema cruel e massacrante. 

Scott Summers, o "messias" mutante, o "filho original" de Xavier, ao dar seu selo de aprovação para a geração seguinte de X-Men está, talvez pela primeira vez, reconhecendo que existem métodos e métodos de lutar o bom combate. 


O X-Factor é a cara sociável, "limpinha", do sonho de Xavier*. O atual time dos X-Men, é a face oculta, disruptiva, punk as fuck, desse mesmo sonho. Não faces opostas desse sonho.

Mas complementares. 



Outras idéias

- As ultimas 20 edições de UXM vem num ritmo de crescendo, construindo em tom de tensão ascendente, preparando para falar também de "expiação" e de um "acerto de contas". Todos os líderes mutantes em um determinado momento vão ter que se ver julgados por seus erros e talvez, condenados por suas decisões na luta pela raça mutante. Começa com Magneto, na clássica edição 200. O julgamento vem para Xavier ao final da era Claremont, na saga da Ilha Muir. Inferno é um gigantesco acerto de contas para Scott Summer por seus pecados não apenas como líder mutante - como DEMÔNIOS demorou tanto tempo para os alunos da escola X descobrirem a existência de Genosha? E o quão alienados eles estão da própria causa a ponto de não terem ciência disso? - mas como pai ausente e marido falho. De fato, ele abandonou Maddie. Okay, posteriormente ele pensou que ela estivesse morta, mas nada disso teria acontecido se essa decisão inicial não tivesse sido tomada. Summers é brutalmente confrontado com sua decisão e termina com sua cota de cicatrizes. Os julgamentos de Tempestade e SOBRETUDO Wolverine, líderes do time australiano, estão logo ali e vão cobrar sua cota de sangue. Por fim, o arco envolvendo o portal do destino é a hora do julgamento dos membros restantes do time, eles também líderes da causa e, portanto, passíveis desse processo. 

- *Mencionei o X-Factor como a face "social" do sonho de Xavier, mas eles não estão alheios a sua cota de sombras e cicatrizes. Warren Worthington se tornou, literal e metaforicamente, um anjo sombrio. Bobby Drake perdeu o controle de seus poderes após uma viagem a Asgard. E sabemos, do alto de nossa posição aqui no ano de 2023, que o futuro vai ser ainda mais cruel com Jean Grey (tem pelo menos mais uma morte esperando ela nos anos vindouros), Scott Summers (eu nem sei onde começar com Scott. Começa com ele perdendo o filho novamente e daí pra diante é ladeira abaixo) e SOBRETUDO, Hank McCoy (que teve a trajetória traumática de começar como o "nerdão gente boa" e mais sociável dos mutantes - favorito de um monte de fã dos X-Men e dos Vingadores - para a atual posição de criminoso de guerra, pária Krakoano e "Henry Kissinger" da comunidade gene-x).

- Preciso dizer que uma parte do meu mau-estar com esse arco vem muito do fato de ele se dividir, majoritariamente, entre os títulos do x-factor e dos x-men. Enquanto eu vejo méritos em ambas as partes, individualmente, preciso dizer que quando você pensa neles como uma história só, algo se perde. Não há muita coesão, até em termos de tom, incluindo visualmente, nesses saltos de um título pro outro. O que, lendo agora, eu racionalizei como sendo apenas o fato de que os dois títulos tem tons diferentes. X-Factor inicialmente tinha de fato, o objetivo de ser um gibi pra quem cresceu lendo o time original e queria algo com um tom mais de "velha guarda" e "clássico" enquanto o título principal, era pra molecada e pra todo mundo cool que se identificava com aquelas figuras punk. 

- Também tenho que mencionar que Inferno é o primeiro grande arco - porque em "Massacre de Mutantes" ele só operava nos bastidores do evento - em que Nathaniel Essex, o Sr. Sinistro, é o grande vilão e o "final boss" a ser combatido. Essex, junto com Amahl Farouk (o Shadow King) e os Reavers, viria a ser "O" grande vilão da era Claremont. Um personagem com altos e baixos até cair nas mãos de Kieron Gillen e virar uma das figuras mais interessantes do lore mutante. Ele próprio um constante lembrete para Xavier a respeito dos riscos de se sentar à mesa - ainda que "em nome do bem maior" - com um fucking nazi e eugenista. Porque, afinal, certos pecados estão além de qualquer perdão. 

A seguir: "talento, coração puro e um tiquinho de sorte"

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