quinta-feira, 25 de maio de 2023

Lucifer #01: "The fall from grace and down the stairs"


E no princípio, havia o silêncio.

E então, fez-se o som. 


As mãos do anjo caído tocando "Endlessly Rising Modulation Canon" de Bach são nossa porta de entrada para o estranho e sinistro novo mundo que é a terceira encarnação do título "Lúcifer", concebido por Dan Watters e os irmãos Max e Sebastian Fiumara, publicado em 24 edições e posteriormente compilado em 4 TPBs. 

A música, como o personagem comenta, é uma composição que se destaca por sua estrutura cíclica em constante ascensão e modular. 

Rápido contexto, até porque eu não sou o maior especialista em notação musical: modulações são quando obras musicais mudam de tom. Simples assim. A obra segue com sua estrutura em um tom e em um certo tempo e aí, em algum momento, ela muda o tom. Nesse momento, ocorre uma modulação. 

Acho que o exemplo mais simples de todos: "My heart will go on". No final, pra efeitos dramáticos, rola uma modulação, visando um efeito bombástico. 

Outros exemplos de música onde isso rola: "Good Vibrations" dos Beach Boys. "Bohemian Rhapsody". "Layla", do Clapton. "Só Hoje" do Jota Quest. A estrutura da música e seu tempo se mantém os mesmos, mas há uma súbita alteração na nota em que ela é interpretada.

Agora, e antes que algum músico profissional entre meus leitores venha me apontar esse detalhe: isso não é um consenso. Alguns textos e vídeos que eu vi dizem que modulação e mudança de tom não são a mesma coisa. Pra alguns depende da posição em uma música. Pra outros, depende do tempo que dura e se retoma o tom original em algum momento (ou seja, modulações teriam, nesse caso, um aspecto finito dentro da canção).  Mas enfim, independente de discordâncias, a grosso modo, é isso.

Como eu disse, você  pode fazer isso em uma canção por vários motivos e pra tentar provocar as mais diversas reações no ouvinte. Desde esse efeito de "crescendo", de tentar aumentar o impacto e conferir caráter épico em um momento da composição, até o inverso. Também, dependendo do quão harmônica (ou não) é essa alteração, o efeito almejado pode ser o choque, a surpresa ou mesmo o desconforto. 

Imagine uma canção em notas mais altas, visando alegria e tals e aí, subitamente, há uma alteração para notas mais soturnas, entende?

Em UMA página e com algumas palavras sobre música, o time criativo já dá o tom da trama: esperem o inesperado. 

Considerem também o seguinte: independente do caráter perpétuo da composição de Bach, existe um limite de notas que podem ser atingidas. Ou seja, em determinado momento, a composição vai ter que retornar ao começo. Então, estamos na verdade enfiados em um ciclo perpetuamente se repetindo.

Also: considerem que a promessa no título da canção é, obviamente, uma mentira. Porque mesmo que um homem se pretenda a tocar a peça por toda sua vida, ela não vai ser infinita porque... bem,... porque ele vai morrer. 

E mesmo se um segundo interprete mantiver o ciclo se repetindo, ele também vai ter seu fim. E mesmo que sucessivos músicos se predispusessem a manter o ciclo se renovando... Bem, em um determinado momento o universo vai morrer. E aí, finalmente, o ciclo vai terminar

Novamente, tudo isso em UMA PÁGINA da série. Já estão animados?

O título da primeira edição da série "the fall from grace and down the stairs" ("caindo em desgraça e escada abaixo") já nos introduz ao aspecto mais marcante e significativo a respeito do lore cristão e do papel do anjo caído nele: sua queda. 

Lúcifer é um anjo rebelde, que em determinado momento desafiou seu criador e foi derrotado e posteriormente expulso do paraíso por sua arrogância. 

Claro, Lúcifer também é um homem distante de sua glória no momento em que o vemos em tempo presente na história. Magro e cabeludo, ele está há milênios de distância do anjo descrito como o mais belo já criado por seu Pai. 


Paralelo a essa trama, temos outra que nos introduz ao ex-policial John Decker.

Uma pausa, porque nomes são importantes: John. Decker. John = João, o mais jovem dos apóstolos. Este é um nome recorrente na bíblia, remetendo também a João Batista, o homem que batizou o messias. Decker. Deck of cards. Um baralho de cartas. Decker = o homem que embaralha e distribui as cartas.

Ainda nesse tópico Deck = níveis. Camadas. Andares, como os de um prédio (ou de um labirinto? Ou de uma prisão?). Visitando sua esposa, Penélope (nome da esposa de Ulisses, protagonista da Odisséia). A mulher vive seus dias finais, morrendo em virtude de um tumor no cérebro. Atormentado, depois de lhe ser negada a possibilidade de ser representante legal de sua mulher, o que lhe permitiria abreviar seu sofrimento, ele simplesmente foge com ela de carro, o que resulta em um acidente onde ele desperta, ferido, mas vivo e ela morta. Um acidente ou uma tentativa frustrada de suicídio? 

No mundo (reino, plano dimensional?) onde Lucifer se encontra, outros homens debatem sob destino. Dá pra reconhecer figuras como Robert Johnson, Hitler e alguém, o líder do grupo, chamado simplesmente "Jack". 


Não é difícil conceber que são homens que, por suas ações (definitivamente Hitler) ou pelas lendas a seu respeito (no caso de Johnson, perpetuamente associado àquela fatídica e hipotética noite onde conversou com o diabo na encruzilhada) foram condenados ao Inferno. 

Então, estamos no inferno? Ainda é cedo pra saber. 

Depois de um pesadelo cheio de simbolismos, onde é visitado por seu cunhado, John decide ir até a casa de repouso "Gately House", último local em que o rapaz, Robert, viveu. 

Neste estranho local, somos apresentados a outro personagem aparentemente importante: Caliban. Aquele mesmo da peça "A Tempestade". Filho de Sycorax, tornado escravo por Próspero. Na trama da peça de Shakespeare. Próspero é deixado pra morrer no meio do mar com sua filha, Miranda. No entanto, no barco em que foram deixados para morrer, um aliado escondeu comida, água e alguns livros de magia, o que permitiu que os dois sobrevivessem no mar por alguns dias, até chegarem na misteriosa ilha. Lá, Caliban se aproxima dos dois, mas é escravizado pelo mago depois de tentar estuprar sua filha. 

Existem várias interpretações a respeito da natureza simbólica de Caliban dentro da trama. Desde mais óbvias, como o fato de seu nome ser um anagrama para Canibal, passando por mais sutis. Uma delas, fala que Caliban ataca a filha de Próspero por ciúme. Sem a mãe - que, quando a história começa, já está morta - ele vê no mago uma figura paterna de autoridade. Deformado, ele sente ciúme de Miranda, como se ambos disputassem o amor do homem, com ele, por sua aparência, em posição de desvantagem. 

Um filho que, confrontado com o fato de que seu pai está dando atenção para o filho mais novo, decide se rebelar contra o irmão/irmã e termina rechaçado no processo. Familiar?

Sigamos. 

Terminamos a primeira edição com o anjo caído, cavando, cego, atrás de algo e encontrando o que parece uma estátua. Mais importante: a estátua de Caliban. A quem Lúcifer acusa de ter sido o responsável por sua prisão naquele lugar desconhecido.

Não sabemos o que Caliban pretende, se ele de fato é o responsável pelo cativeiro do diabo ou não. Mas o estrela da manhã promete que, quem quer que seja seu captor, ele será reduzido a cinzas. 

Excelente primeira edição, instigando curiosidade no leitor. O roteiro de Waters é profundamente elegante, com temas e tropes que se repetem (o papel de irmãos, biológicos ou não, dentro da trama. a idéia de "quedas transformadoras", entre outros).

A escuridão espreitando ao fundo do painel e onde Lucifer termina, vencido.

Enxergamos essa cena do ângulo que é conhecido no cinema como "God's eye" ou "O olhar de Deus".

E a arte dos irmãos Fiumara. Okay, se vocês já viram imagens dessa série ou quando vocês forem ler o gibi, vocês devem ter notado (ou irão notar) que os Fiumara tomaram decisões bem interessantes a respeito do character design de vários personagens, sendo o protagonista a mais interessante delas, já que claramente a fonte de inspiração foi David Bowie. 


E não qualquer persona da mitologia Bowieana, mas o aspecto mais soturno, a ovelha negra dentre eles, o Thin White Duke


Nascido no final dos 70, anos depois da morte de Ziggy Stardust, o Duque magro e pálido é seu oposto. No que Ziggy era passional e uma explosão de cores, o duque é frio e monocromático. No que Ziggy era apolíneo e solar, o duque é dionisiano e noturno. Sua primeira "aparição" ocorre em "Station to Station", música que batiza o álbum de 1976 de Bowie, décimo disco de sua carreira e um dos últimos trabalhos do tipo que o artista lançou na década de 70 (antecedendo a trilogia de Berlim, "Low", "Lodger" e "Heroes". Tecnicamente, por ser um LP lançado em 80, "Scary monsters e super creeps" ainda é um disco da década de 70, mas ninguém se importa. Eu sei que a década começa no ano 1 e termina no ano com zero, mas símbolos, tal qual nomes, são importantes). 

Esse era um momento de transição pra Bowie. Sua passagem em solo americano, pra gravar o soul álbum "Young Americans" rendeu ao cantor o vício em cocaína. Pra fugir dele, ele decidiu uma mudança drástica e foi morar em Berlim o que, em retrospecto, não foi a mais inteligente das decisões. 

De acordo com o próprio, Bowie se enfiou em uma espiral de decadência onde se mantinha vivo com uma dieta a base de cocaína, pimenta, leite e paranóia. É desse período que vem os flertes com o nazi-fascismo que renderam aquela imagem onde ele aparece publicamente mandando o "sieg heil" nazista. 

Esse foi o momento da "noite sombria da alma" bowieana, que vai render não só "station to station" mas, a partir da parceria com Brian Eno, a trilogia eletrônica. Os temas quentes dos discos anteriores vão dar lugar a canções frias (mas boas pra cara***, não me entendam errado, eu adoro a trilogia de Berlim). As letras com simbolismo vão dar lugar a músicas instrumentais, tentando transmitir suas idéias através de texturas sonoras. 

Vai ser um tempo até David Robert Jones voltar a ter dias mais solares, já na sua fase como cantor de "arena" e capaz de encher estádios (de seus discos mais bem sucedidos financeiramente: "Let's Dance" e "Tonight").

....

Só agora eu me toquei que eu estou há 5 parágrafos falando de David Bowie e não mais do gibi que deveria ser o foco desse texto. Mas enfim, o contexto tá dado. Esse Bowie, o duque pálido, é a versão perfeita para ser a face do demônio em pessoa. 

Esse texto sobre o primeiro número da série fica por aqui.

Eu ia falar de TPB por TPB mas essas histórias são BEM densas, cheias de símbolos e referências e eu acho que, honestamente, vai ser bem mais divertido pra mim e pra vocês se formos juntos, edição por edição.

Tão comigo crianças? Então bora, que, como diriam em um filme do Scorsese, "todo homem tem que descer até o inferno se quiser chegar ao paraíso...."

A seguir: "Of Red Death and ginger tomcats"

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