quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O dia em que eu desisti de Cerebus (ou "Dave Sim é um machista babaca")

Segundo "a outra rede social", há um ano eu postei essa página de Cerebus, série de mais de 300 edições publicada de forma autoral por Dave Sim (responsável por roteiro e arte da série). 

Preciso dizer:

1º) Raras vezes uma hq me fez rir tanto como nessa cena, em que Cerebus, alçado à posição de papa da igreja local, resolve demonstrar "o amor de Deus" diante de uma multidão de pessoas implorando por parábolas e demonstrações miraculosas.
2º) "Cerebus" é um gibi incrível, algo tipo "Game of Thrones" meets "The West Wing", com um tiquinho de Conan e "The Wire".....e tb é uma das experiências mais densas e decepcionantes do universo. "Densas" (e isso é um elogio) pq seu autor Dave Sim (tb o desenhista da série) não tem o menor pudor em afundar de cabeça tanto na parte mais política do universo que criou (com um cenário político cultural misturando baixa Idade Média com o aspecto de quebra de paradigmas do final do séc XIX) e usar questões como taxas de cambio, impostos, religiões e intrigas políticas como plot points importantíssimos e sem o menor didatismo.
Somemos a isso o fato de que Sim adora brincar com a narrativa, experimentando com os enquadramentos de página e as vezes, adotando a escrita em prosa por edições quase inteiras e vcs podem imaginar que não é o tipo de hq que vc lê no buzão, voltando pra casa depois de um dia de trabalho, certo? 
E decepcionante pq..... bom, pq a partir de um certo ponto (depois do absolutamente soberbo arco "Melmoth"), Sim se enfia numa espiral de proselitismo misógino digna de comentarista do UOL.
Numa das primeiras sessões de carta da série, o autor já declarava "não gostar de feministas" e como isso era um direito dele e tals, o que já me fazia crer que ele não era das figuras mais agradáveis mas isso nunca tinha vazado dessa forma dentro da série. Resumindo bem resumidamente: no mundo de Cérebus existe um Deus e duas facções dentro desse mundo, os que acham que esse deus tem aspecto masculino e as Cirinistas, que vem esse deus como uma deusA. E aparentemente, as Cirinistas vem manipulando os eventos nos bastidores políticos de forma maquiavélica e se tornaram as grandes vilãs do arco que eu estava lendo. 
Lembram que eu disse que Sim curte alternar as passagens em quadrinhos com textos em prosa? Pois é, em alguns momentos vemos os textos sagrados das Cirinistas e é aí que o autor vomita suas impressões sobre como mulheres são manipuladoras e insensíveis e...... vcs podem imaginar.
O assustador é que estamos falando de um autor com uma sensibilidade notável: num dos arcos anteriores, Cérebus, o PROTAGONISTA da série, nosso principal canal de empatia e elemento de identificação do gibi, estupra uma oponente política que tinha em cativeiro. E a cena não é explícita mas mostra a coisa da perspectiva dela, sem o menor pudor de pintar o evento terrível ali descrito pelo que realmente é: um homem em posição de poder usando o sexo forçado como meio ferramenta de opressão e humilhação para com uma mulher que é, em todos os aspectos, melhor que ele. Seria de se esperar que alguém com uma repulsa tão gritante da parcela feminina da humanidade fosse escrever e desenhar tal cena até com tons fetichísticos, mas não. O ato é repulsivo, as consequências não são omitidas e nunca mais a história olha pro seu principal personagem da mesma forma.
Mas chegou num ponto em que a bandeira levantada pelo autor de que "Feministas são evil" ficou tão gritante que não deu mais pra mim e, depois de mais de 150 edições, eu só joguei a toalha.
O gibi é bem desenhado, bem escrito, mas carregado de um "subtexto" tão claro e vomitado que não dá pra fazer aquele exercício de separar o criador da criatura, o autor de sua obra. 
No final, Cerebus, de uma puta história de fantasia e alegoria política, virou um palanque pra Dave Sim gritar suas crenças à plenos pulmões.
Vcs eu não sei, mas eu só decidi parar de ouvir e deixei o maluco gritando sozinho....

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