segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Divina comédia - um relato em 3 atos ou "como em 4 dias zerei meu karma"

"Every man has to go through hell to reach his paradise"
                                                                 Martin Scorsese

"The only way to prepare for a trip like this, I felt, was to dress up like human peacocks and get crazy"
                                                                 Hunter Thompson



Ato 01: Highway to hell

tudo começou como sempre começa, com uma pergunta absolutamente daquela que será, a partir deste ponto, referida como minha "Beatriz". Por motivos que não cabem ser mencionados neste texto, Beatriz me perguntou se eu estaria disposto a ir passar 4 dias num lugar chamado Praia Grande com 3 outras pessoas, conhecidas dela. Pensei um pouco e, naquela que vai ser perpetuamente vista como a decisão mais equivocada de toda minha existência, respondi afirmativamente. Oras bolas, depois de décadas e décadas investido em filmes, quadrinhos, séries e semelhantes, seria legal sair um pouquinho da toca e viajar. E uma praia? Desde os 6 anos de idade eu não entrava no mar. Seria legal ver como as pessoas normais se divertem, correto?


......correto?


nope. Nada correto. De fato, o inverso. eu não poderia estar mais enganado. Mas enfim, malas prontas, vamos para o terminal rodoviário. Encontramos nossos 3 amigos e, já devidamente colocados dentro de nosso ônibus, rumamos pra praia.
Aqui, as teorias divergem.

Beatriz e seus amigos acreditam que chegamos vivos e bem em nosso destino. Eu, no entanto, creio piamente que em determinado momento, o veículo sofreu algum acidente ou algo parecido e um acidente ocorreu. e o resultado? eu fui parar no inferno.



os sinais eram claros: primeiramente, calor. muito, MUITO calor. Segundamente, um bando de gente seminua carregando coolers, cadeiras de praia, sacos e sacos de farofa. Um ventilador de teto tão ineficiente, no local onde iríamos passar os 4 dias seguintes, que, se fosse substituído por uma tela de lcd com um MPEG em 240p. de um ventilador girando, não seria notada diferença.

E por fim, ficamos perto de um lugar conhecido como praça das cabeças, com gigantescas estruturas de metal com os rostos de pessoas famosas (irreconhecíveis, salvo Jesus Cristo e apenas por causa da coroa de espinhos na testa). E, quem já leu o livro clássico escrito por Dante Alighieri, sabe que no inferno, ele descreve, no circulo dos traidores, um lago de gelo com cabeças humanas. Meu círculo favorito do inferno. Quem quer que havia me enviado pra esse lugar, tem um senso de humor particularmente cruel.

No apartamento, algumas camas e móveis, dois ventiladores de teto (um deles, já citado acima) e uma televisão

"hey, nem tudo está perdido"

somente tv aberta. Novamente; TV ABERTA. Não parece ruim? que tal o fato de que o primeiro comercial que vejo na tv em questão é o Danilo Gentili anunciando que naquela noite, o convidado de seu talk show seria o Latino?

.....pois é.

33 graus com sensação térmica de 50000. Dormir? Quem precisa, não? Dormir é supérfluo quando vc está há horas com uma capa de suor sendo incessantemente produzida por sua pele, quase que o tempo todo.



Depois de 20 minutos de sono, provavelmente, todos acordamos cedo e vamos para a praia.
Escolhemos um lugar aos pés de 3 palmeiras e não consigo não notar os presentinhos deixados pelos usuários da praia que passaram por lá: poucas coisas me fizeram sentir tão seguro nessa viagem como os gigantescos cacos de vidro enterrados na areia do local, verdadeiras minas terrestres esperando pelo pé de um turista mais incauto. Corajosa ou estupidamente, deixo que a história me julgue, deixo meu chinelo ali e vou entrar na água. Preciso mencionar: usava uma regata creme e uma bermuda azul fluorescente, o que faria meu eu adolescente gótico que enfrentou dias quentes usando roupa preta e coturno ter um AVC ou, pelo menos, uma úlcera nervosa. 

Preciso dizer: o mar é provavelmente uma das duas únicas lembranças positivas que tirei dessa experiencia. O amor surgido ali era, aparentemente, não correspondido, considerando as inúmeras vezes que as ondas me acertaram feito uma porrada (e nem comento as vezes que meus olhos e narinas queimaram com o sal do mar pq, afinal, quem sai na chuva...). Tough love.

Umas duas horas se passam até que minha Beatriz me chame de volta pra voltarmos pro apê.

Areia. Areia everywhere. Um sol escaldante, areia e sal do mar fazem com que eu pense em abraçar o vegetarianismo, ciente que estava das dores existenciais de ser um bife de sol, salgando diante da impiedosa luz do começo de tarde naquele lugar.

Um dos vários banhos do dia tomados, bora explorar o local. Varias barraquinhas com produtos de origem duvidosa, cópias de marcas famosas por preços mais acessíveis financeiramente falando e comes e bebes que seriam melhor aproveitados não fosse o calor senegalesco que me impedia de querer consumir qualquer coisa que não estivesse numa temperatura ártica.



Caminhamos um pouco e voltamos pro prédio.

Ato 02: Purgatory and back to hell

O dia começa me lembrando pq o Inferno não é um lugar que permite confortos: dois cismas me causam um puta mal estar com o restante dos meus acompanhantes no submundo infernal.
O primeiro, culpa minha e da minha tendência mutante a pegar uma situação ruim e torna-la centenas de vezes pior.
O segundo foi mágico pq, pela primeira vez na vida, eu causei um celeuma gigantesco por ter ficado parado e imóvel no mesmo lugar por horas. O problema é que o "mesmo lugar" era o interior do mar e, enquanto, realmente, eu permaneci sem me mover, as marés não o fizeram e me jogaram na casa do caralho, a uma distancia considerável de onde eu deveria estar e do meu ponto de referencia pra me encontrar com as demais pessoas.
Por sorte, me encontraram antes de precisarem entrar em contato com a guarda costeira mas vcs podem imaginar a tensão resultante. Num momento, paz e comunhão com o oceano. No seguinte, sou questionado por pessoas que achavam que eu já era um corpo decomposto no fundo das águas, provavelmente já coberto por corais e com meu crânio servindo de lar pra algum peixe procurando por refugio. O suficiente pra estragar o dia? Hell yeah, boys.



mas quando tudo estava perdido e eu achei que tudo que me restava era tentar segurar a respiração até morrer como forma de passar o tempo, veio a noite de Natal e, sem entrar em detalhes demais, foi bem agradável, com trocas de presentes, champanhe aberta e momentos de contato interpessoal que beiraram o recompensador.

Tudo perfeito até alguém decidir colocar no especial do Roberto Carlos onde ouvi o "Rei" cantando com Ludmilla (quem quer que seja). Ainda era o Inferno, afinal das contas.

Ato 03: Stairway to heaven

Já localizado no segundo quarto, com um ventilador de teto mais eficiente, acordo de uma noite de sono relativamente tranquila. Os demais acompanhantes questionam se eu não estaria interessado em revezar e deixa-los dormir ali enquanto eu volto pra sala. A resposta deles vem na forma de um sonoro "não, se fode aí"

O espirito natalino sempre trazendo o melhor de nós, não?



Penúltimo dia no local, e a jornada segue parecida. Uma chuva forte, trazida por nenhuma outra força senão a pura piedade de Deus para com os condenados ali, torna o dia um tiquinho menos "jesus amado, eu quero morrer".



Já utilizando um dos meus dois presentes de Natal, uma camiseta dos New York Yankees (que vai me obrigar a acompanhar baseball pra não pagar de poser) a jornada segue mais ou menos normal: café da manhã (e preciso dizer, um de nossos acompanhantes era uma cozinheira de mão cheia, o que tornou nossa estadia no Hades um pouco mais suportável), praia, banho pra tirar as duas toneladas de areia e sal da pele, uma jornada exploratória pelas lojinhas e feirinhas da cidade e voltar pro apê. Algumas horas de exposição à tv aberta (os escolhidos foram a sessão da Tarde que passou um filme do Leandro Hassum que tnha uma piada com Flashdance que me fez rir pelas razões erradas - "JESUS AMADO, que ridículo, tão fazendo referencia a um filme de quase 40 anos de idade que 80% das pessoas vendo essa droga não assistiu" - e aqueles desenhos educativos do "Futura", tão interessantes quanto assistir a tinta secar numa parede) e fomos comer fora.
Mesmo sendo noite, o calor castigava. Decidimos ir pra uma pizzaria local. Big Mistake.
O dono do lugar aparentemente já havia se adaptado ao clima local de tal forma que, no momento da construção de seu estabelecimento comercial, decidiu investir seus recursos em telas de TV ao invés de ventiladores ou um sistema de ar condicionado central, o que cobrou seu preço do publico ali instalado. Ajuda tb que ainda era feriado e, portanto, nosso leque de opções de locais pra comer era bem limitado.
Ok, então vamos decidir, que pizza comer? Pedimos o cardápio e, sem brincadeira nenhuma, depois de quase 5 minutos de discurso do garçom sobre como os refrigerantes funcionam como uma ferramenta a favor dos interesses da industria farmacêutica, começamos as deliberações: 

"Que tal 4 queijos?"
"não gosto de catupiry"
"que tal manjericão?"
"NÃO CURTO"
"que tal de frango com ...."
"odeio frango"

sério, eu vi uma situação que não devia nada as grandes negociações da ONU condensada microcósmicamente naquela mesa, que ameaçava ser virada e jogada violentamente em direção ao chão a qualquer momento.
Espetro que sou, me escondi no meu celular, acessando twitter e quando solicitado para que me envolvesse na discussão, sabiamente respondi com um "eu só quero um Gatorade".



Enfim, uma meia 4 queijos e meio frango com catupiry foi a decisão da maioria. Já alimentado e com meus níveis de hidratação satisfatoriamente altos, voltamos pra casa.

Mais uma noite de sono complicada e por fim, chega o dia de voltar pra SP.

Mas claro, o Inferno tem seus meios de desmotivar espíritos fujões: Enquanto estava na água do mar numa ultima incursão oceânica, este humilde blogueiro tem seu pé machucado ao pisar num galhinho ou numa latinha ou algo do gênero, mas retomo esse ponto depois*. 
Depois de um ônibus infernalmente quente e cheio demais e mais algumas horas de atraso, pegamos a estrada de volta.
como vcs podem ver nas imagens abaixo, a viagem foi tensa, perpassando por cenários infernais paradoxalmente bonitos e assustadores.







Duas horas depois, chegamos na capital. Uma rápida viagem de metrô e busão depois e enfim.....LAR DOCE LAR.



Juro, eu queria dormir abraçado com o Sr. Fofinho, meus livros e meu PS3. E meus dois ventiladores de 3 velocidades. Serião, eu nunca mais vou pra nenhum lugar com perspectiva de temperaturas maiores que 30 graus sem a companhia de pelo menos um deles.

Dois dias se passaram desde meu retorno ao mundo dos vivos e não sei quais forças permitiram que eu, seguindo o exemplo de heróis como Doctor, Hércules, Spawn, Motoqueiro Fantasma, Demolidor e tantos outros, pudesse voltar depois de rumar em direção ao coração do próprio Inferno mas voltei transformado, com todo meu peso kármico deixado pra trás e com uma certeza: céu e inferno são conceitos relativos. enquanto estava lá, tive os momentos no mar, a noite de natal, a companhia de minha Beatriz  e algumas situações que QUASE fizeram tudo valer a pena.

E aqui, de volta ao lar, existem os dias quentes, a falta d'água, a estupidez coletiva cada vez mais massacrante e todos os problemas que alguém que mora em grandes centros urbanos experimenta vez em sempre. Mas ainda assim, não existe lugar como o lar. Sabe aquele bla bla bla cafona que os viciados em viagens turísticas adoram vomitar sobre como sair de casa pode fazer vc aprender a dar o devido valor ao local que chama de lar? Odeio admitir mas esse clichê vagabundo tem sua cota de razão. Jornada paradisíaca rumo à praia, calor e gente bonita? Nah, Paraíso é o lugar de onde eu saí e pra onde eu voltei.

Pensei em trazer algum dos badulaques vendidos pelos hippies nas feirinhas de lá. "Lembrancinha?"

Nope, mais um tipo de cautionary memento. "Never forget". Mas nem preciso de nenhum objeto físico. pros momentos em que eu estiver pensando em "matar saudades da praia"
tudo que preciso é recordar das milhares e milhares de gotas de suor derramadas quase O TEMPO TODO.

"never forget"

"never forget" indeed.



Ps: sabe o galhinho que eu citei acima? que pisei no ultimo dia de praia? Pois é, galhinho porra nenhuma, era um maldito inseto que me picou. Resultado: fiquei todo empelotado e me coçando. Já estou a base de anti-histamínicos e anti-anafiláticos e em processo de recuperação. Eu posso ter terminado meus negócios com o Inferno, mas aparentemente o demônio tem uma opinião divergente a esse respeito.
Ps II: sim, eu sei que quem acompanha Dante ao Inferno é Virgílio e que Beatriz só aparece já na metade do Purgatório. Dane-se, ok? Liberdade poética. 
Ps III: Fui convidado para dois eventos sociais desde que voltei pra SP. NÃO. Absolutamente NÃO

Eu não tenho como reiterar o suficiente o quanto eu NÃO quero sair de casa pelos próximos milênios, ok? Eu absolutamente ODEIO dormir fora de casa e me inserir em situações sociais que não ocorram em circunstancias controladas. 
Entendam, eu esgotei minha cota de socialização por pelo menos umas duas ou três encarnações. Ok? Vozes discordantes podem tentar a sorte enviando mensagens para o e-mail morrammalditosbastardos@ursomail.com e seus pedidos de interação social serão enviados para o setor responsável (área de spam e lixeira) e devidamente analisados. Eu recomendo que a espera por resposta seja feita com seus respectivos traseiros devidamente posicionados em uma cadeira ou assento particularmente confortável, ok? 
Ps IV: Meras 6 latas de cerveja e meio copo de champanhe consumidos em todo esse tempo fora. Isso é digno de loas e medalhas e todas as condecorações possíveis. Caso Deus seja particularmente cruel comigo e eu tenha que incorrer em uma segunda viagem rumo ao coração do Seol, esperem um diário de viagem escrito por minha cara metade, já que eu só passo por uma experiencia dessas, de novo, sob efeito de toda e qualquer droga, legal ou ilegal, de álcool a chá de pilha, já concebidas pela mente humana. Medo e delírio é isso aí....

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